“Já fiz de tudo menos ser PROSTITUTA”
Desde a infância que vinha a Portugal de férias e ficava instalada em casa dos tios, no Barreiro. Encontrava outros amigos angolanos e, em 1991, não regressou a Luanda. Ficou em Lisboa para concretizar o sonho de ser bailarina e conseguiu. Mas as dificuld
AAida, da novela Alma e Coração, é um trabalho muito desejado. Como é que tem corrido? Tem sido bom, uma experiência muito boa. Principalmente pela personagem que é um desafio e, inicialmente, confesso que achava que não ia conseguir. Não é muito fácil e tive de ter ajuda de uma pessoa, que lê búzios, que me ensinou a ter uma ideia de como colocar as mãos, de como ler os búzios, para parecer real.
Ela é uma mulher com poderes. A Cleo aprendeu mesma a ler búzios? Isso não, porque são coisas pelas quais tenho muito respeito. A pessoa que foi à SP Televisão queria ensinar-me, mas eu disse logo que não precisava de saber essa parte.
Quando chegou a Portugal, começou por ser bailarina.
Comecei no Maxime e depois fui para o Parque Mayer, que naquela altura ainda tinha uma grande mística. Naquele tempo, era uma honra trabalhar no Parque Mayer e fazer teatro de revista. Tenho a sorte de ter trabalhado com os grandes atores do teatro de revista, que sempre tiveram um carinho muito grande por mim. O Fininho [Carlos Miguel] cismou que eu havia de ser atriz. Um dia olhou para mim e disse: ‘Vou fazer de ti a maior atriz negra de Portugal’.”
E como é que acontece a viragem para a representação?
Escreveram para lá uma coisa pequena e disseram-me que era só para ensaiar, porque depois viria uma pessoa para fazer. E aceitei. Eu não falava alto, pediam-me para falar mais alto. Comecei a perceber que aquilo não era como tinham dito e que era
para eu fazer. Na altura, estava a Noémia [Costa], que adoro também, e que tem uma gargalhada muito própria. Naquela altura, quando estava a fazer aquela coisa, ela, de vez em quando, soltava uma gargalhada. Lá fiz o meu primeiro papel, mas como não falava alto, fiz de muda. Entrava muda e saía calada [risos]. E continuou a insistir nessa faceta? Sim. Entretanto, surge a TV Zimbo, fiz uma sitcom, Makamba Hotel, onde tinha só uma participação especial. Um dia, o realizador, o Renato Martins, perguntou quem eu era e disse que era para eu ir todos os dias. Fiz uma festa! Depois, comecei a fazer castings e houve uma novela que fiz quase toda, mas que não deram por mim, porque estava sempre na cozinha a passar de um lado para o outro, que foi o Amor Maior.
Antes de emigrar, vinha muito a Portugal? Tínhamos cá família, a minha mãe trabalhava na TAAG, e as nossas passagens eram mais baratas. Por norma, era quase obrigatório vir a Portugal de férias. Além da família, era aqui que a malta se encontrava toda: os meus colegas da ginástica, da escola, da dança, encontrávamo-nos todos cá.
Até que ficou?
Foi! Vim de férias e um deles já trabalhava no Maxime e foi assim que surgiu oportunidade. No regresso, não voltei e a minha mãe quando foi ao aeroporto viu que faltava um ET naquela nave [risos].
Como é que a sua mãe reagiu? A minha mãe? Primeiro esperneou! Quase que me vinha buscar agarrada pelos cabelos. Mas há uma coisa que ela sempre disse: ‘Vocês nunca hão de dizer que não fizeram o que queriam por minha causa.’ Ainda por cima, naquela altura, havia a ideia de que bailarina era p...! Comecei a enviar fotografias minhas, no trabalho, mas havia sempre um maço de cigarros ao pé de mim. Foi assim que ela desconfiou que eu fumava [risos].
E que memórias tem de Luanda? Era uma vida confortável. Fazia tudo de novo mas tenho muita pena pela minha mãe. A vida de emigrante é completamente diferente. E a vida que nós tínhamos nunca mais tivemos. Havia a guerra, mas estava localizada nas províncias. Em Luanda ainda tratávamos o vizinho como família e as portas ficavam abertas. Hoje não. A última vez que lá fui foi em 2015 e está pior do que quando havia guerra. É muito inseguro, é estranho, e o vizinho do lado já não é família nem as portas podem ficar abertas.
Tem dez irmãos. Como é ter uma família assim tão grande?
É muito bom! O que gostava mesmo era de termos a casa cheia no Natal, isso é que era! Quando fui a primeira vez a Angola, depois de cá estar, havia uma mesa comprida com 20 pessoas, uma grande festa. Lá, o Natal começa a ser preparado dois dias antes, a fazer bolos, a preparar carnes. Eu parecia uma criança, toda contente!
Por cá, formou a sua família, casou-se e tem um filho.
É verdade! Fui pouco namoradeira, até porque como bailarina tinha horários à noite e só uma pessoa que compreendesse isso podia estar comigo. Entretanto, conheci o meu marido na Câmara de Oeiras. Ele também está ligado ao teatro e eu já sabia. Mas, na altura, trabalhava como cantoneira. Ai, já fiz de tudo menos ser p...!, como diziam que as bailarinas eram. Mulher a dias, jardineira... Até que foi mãe aos 43 anos. Como é que foi ser mãe nessa idade?
Foi bom, mas eu nunca fiz disso cavalo de batalha. Na família, como toda a gente sabe, nós, africanos, temos filhos muito cedo e eu própria já achava que poderia vir a ter ou não ter, mas não fiz disso um cavalo de batalha. Depois, lá está, conheci o meu marido e veio um pequenino. O universo encarrega-se de alinhar tudo. Graças a Deus, temos o Théo, tem 3 anos e é um menino muito querido, apesar de ter as suas birras.
Por cá, está muito na ordem do dia a questão do racismo, depois do que aconteceu no bairro da Jamaica. No seu caso, já sentiu o racismo?
É uma moeda com duas faces: a Polícia tem a sua maneira de atuar, que às vezes não é das melhores. Mas, do outro lado, também, às vezes, há um comportamento que não é o melhor. E no seu caso particular?
“Uma vez, estava à espera de uma amiga, apareceu um rapaz, vestido de tropa, olhou para mim e disse: ‘És tão bonita. Épena éserespreta’. Juro! Isto
aconteceu-me!”
Quando cheguei, em 90/91, acho que havia mais racismo do que agora. Acontecia um preto sentar-se numa cadeira e um branco levantar-se porque não queria sentar-se ao lado de um preto. Lembro-me bem disso, mas não era tão falado como agora.
Mas em relação ao trabalho isso não lhe aconteceu?
Quer dizer, fiz 500 entrevistas e muitas nunca me chamaram. Mas todas as que fui fazer para limpezas, para mulher a dias, isso alguém contactava-me sempre. Comecei a aceitar a realidade como era. Precisava era de trabalho, não era de estatuto. E como artista?
Como bailarina, ainda no Maria Vitória, houve um programa de televisão que tinha bailarinos: era o balé todo do Maria Vitória e eu não fui. Mas lembro-me de ter entrado num dos programas, porque tinha a ver com futebol e no futebol, claro, há pretos. Era muito estranho ser uma equipa só de branquinhas e então chamaram-me.
Como é que lida com o racismo, então?
Não lido nem bem nem mal. Paciência, é a realidade. Vou contar uma situação que me aconteceu, não sei se era para chorar ou para rir. Um dia, estava sentada no Cais do Sodré, à espera de uma colega, para irmos para o teatro. Aparece um rapaz, vestido de tropa, olha para mim e confesso que fiquei com medo. Quando vim para cá, diziam-me para ter cuidado, porque, às vezes, batiam nos pretos e assim. Ele olhou muito sério para mim e disse: ‘És tão bonita. É pena é seres preta!’ Juro! Isto aconteceu-me!
Pensa um dia voltar para Angola, ou prefere ficar por Portugal?
Não! Deus não me castigue, não sei o dia de amanhã, mas, assim de repente, não. Para trabalhar, tenho tentado perceber o que é que há lá, o que não há. Mas era ir, trabalhar, não digo que não ficasse um tempo, mas depois voltar.
Que projetos é que tem para este ano? Bom, por agora, da SIC, estou a fazer a novela Alma e Coração, e estou a aproveitar cada segundo, cada minuto, deste papel, porque tem sido mesmo muito bom. Ainda não sabemos se vai haver, ou não, uma segunda temporada, por isso não faço planos. É deixar a vida andar. Além disso, continuo a fazer trabalhos como coreógrafa. ●