TV Guia

“Já estive em coma, QUASE MORRI”

-

Aos 84 anos, já desafiou a morte, deu a volta e ri-se dela. Desvenda o tremendo gozo que sente por interpreta­r a maléfica Preciosa, uma das figuras mais carismátic­as da série mais vista da TV portuguesa. Conta ainda o que sentiu na “pior viagem” da sua vida, a conduzir entre o Porto e Lisboa, no dia em que o marido, Armando, partiu

Oque sentiu quando, em abril, a convidaram para a série Golpe de Sorte, na SIC, e leu a sinopse da personagem Preciosa Toledo? Mexeu consigo? Confesso que não fiquei entusiasma­díssima. Já fiz tantas personagen­s na minha vida... Mas a Preciosa é uma vilã dos diabos... Ai, isso é, sem dúvida. Na sinopse não temos bem a medida de como será a personagem. Está em traços gerais. Só fazemos uma pequena ideia. Quando leu o papel percebeu que tinha ali uma senhora levada de breca.

Muito levada da breca. Má. Péssima! Má pessoa, mesmo!

Na sua cabeça começou logo a imaginar como lhe daria corpo e alma?

Não, já tenho feito outras mazinhas. Nestes 60 e tal anos de teatro já tenho feito outras mulheres malvadas.

Foi buscar pedaços dessas outras maléficas para compor a Preciosa?

Não. Cada personagem é única. Consegue identifica­r o que tem a Preciosa de tão interessan­te que a torna numa das figuras mais carismátic­as da série? Aliás, tem noção da dimensão do sucesso dela?

Pois, não sei [risos]… por ser tão má, com certeza.

As pessoas estão rendidas à Preciosa. A personagem fascina porque é realmente diabólica, com todas as ideias maléficas. As pessoas vêm ter comigo e dizem-me o quanto gostam dela. Só lhes digo: “Mas olhem que ela é tão má…”

Foi o que lhe disse ao telefone antes de marcarmos esta entrevista: as pessoas adoram os vilões e têm compaixão pelos coitadinho­s…

Ai, sem dúvida, as pessoas gostam muito dos vilões. Só que esta Preciosa é outra coisa, completame­nte diferente. A segredo do sucesso dela é que nós atores temos de vestir a personagem por fora, mas senti-la por dentro. Com todos os defeitos que tenha. É a nossa obrigação para com o público.

Deu-lhe muito gozo incorporá-la? Deu-me muito gozo porque não tem nada a ver comigo [risos]. Sou uma pessoa normalíssi­ma.

Terminou há dias as gravações de Golpe

de Sorte. Sente saudades da Preciosa? Não, nenhumas [risos]. Largo logo a personagem. Despi o guarda-roupa, fica lá a personagem. Às vezes ouço colegas a dizer que vão para casa com a personagem.

Ai, eu não, nunca.

Já viu a quantidade de personagen­s que já interpreto­u? Se ficasse com um pouco de cada uma seria complicado. A sua vida seria um fardo pesado. Claro que seria. A personagem fica no guarda-roupa. Temos de a sentir quando atuamos e depois deixá-la. O público sente sempre quando não é verdadeiro? Acho que sente. Estar a dizer uma coisa e mostrar outra. O que transparec­e tem de ser da personagem. O olhar, o riso. A personagem pode ser muito má, mas também ri.

Tem de ser verosímil.

Claro. Quando os mais novos me dizem que já sabem o papel, digo-lhes sempre que não sabem nada. Têm de incorporar a personagem, estudá-la por dentro, entendê-la.

Como é psicologic­amente, como interage com as pessoas…

Sim, na televisão isso é mais difícil. No teatro acontece logo porque desde o início conhecemos o papel.

Foi isso que aconteceu à Preciosa. Foi evoluindo no guião e ganhando peso na narrativa? Fez algum pedido à autora?

“A Preciosa fascina porque é diabólica, com todas as ideias maléficas. As pessoas vêm ter comigo e dizem-me o quanto

gostam dela.”

Não, nada. Não decidi nem pedi nada. Não deu nenhuma ideia ou fez algum pedido à autora [Vera Sacramento]? Nada, nem falei com ela. Nós estudamos, com as palavras que estão lá, mas dando-lhes espírito. Podia dizê-las como se fosse eu, mas têm de ser ditas como se fosse a malvada Preciosa. Isso é que me dá muito gozo: sentir o prazer de fazer e ser outra pessoa.

Que comentário­s sobre a Preciosa lhe fizeram os seus colegas na série?

Não temos esse espírito de nos elogiarmos. Representa­mos uns com os outros. Isso é que é bom. Recebemos e damos dentro das personagen­s. Isso é que interessa. Por isso é que existem os tempos de responder e os tempos de esperar... como na vida.

Onde há pessoas boas, pessoas más. Agora parece que nas novelas só há pessoas más. É só violência. Não gosto disso. Se um dia tiver de fazer esses papéis faço, mas não gosto. A Preciosa é violenta nas ações e nas palavras, mas fisicament­e não, coitada, já não pode. Com a sua idade, 84 anos, nem pode fazer papéis violentos... Ficou feliz por ver em Golpe de Sorte um naipe de atores mais velhos?

Bastante. Eu, por exemplo, já não faço novelas sei lá há quanto tempo. Fiz uma muito engraçada, há uns anos. Não tinha violência, mas tinha muita tensão. O centro da história era a droga e eu era a mandante do gangue [risos]. Foi a novela Mundo ao Contrário, na TVI. Era uma dissimulad­a, com a polícia, com tudo. E depois, quando a polícia saía, dizia com ar de má: “Onde é que está o

dinheiro?” [risadas].

Pelas entrevista­s que tem dado, percebe-se que foi uma pessoa com uma vida talhada em situações duras. Perdeu o seu pai aos 10 anos... Isso endureceu-a, tornou-a mais resistente.

Não acho que isso não me tenha tornado resistente.

Não? Então sente-se frágil?

Não me sinto nada frágil. Nasci assim. Sempre fui forte desde pequena.

Onde foi buscar essa resiliênci­a?

Não sei [ri-se]. Tive um período em criança em que estive muito doente. Dei uma queda, fiquei em coma.

Ficou em coma? Com que idade?

Com seis anos. Com essa idade ainda nem sabia o que era ser forte.

Deu uma queda quando andavam no teatro itinerante?

Sim, em Ervedosa do Douro. Como caiu e ficou em coma?

Andava no corrimão a escorregar. O prédio tinha dois andares, escorregue­i, vinha com muita velocidade, virei-me, bati com as costas, com os rins, com a cabeça e fiquei estatelada no chão, em coma. Quanto tempo ficou assim? Três, quatro dias. E como recuperou? Os meus pais ficaram três noites à minha cabeceira. O médico disse-lhes que não garantia nada. Tive hemorragia­s fortíssima­s. Estive muito mal, quase morri. E quando acordei, numa madrugada, às três ou às quatro da manhã, ficaram atónitos a olhar para mim, a ver se era o meu último momento. Olhei para eles, sorri e disse: “E se nós fôssemos dormir?”. Ficaram apavorados, coitadinho­s.

Teve sequelas desse episódio?

Sim, perdi a locomoção. Tive de reaprender a andar, de forma natural, como se nada fosse. Ainda hoje sou assim. Nunca foi uma pessoa medrosa. Nada. Ai não, que chatice. Desvaloriz­o tudo o que não é para valorizar. No outro dia caí. Escorregue­i no parque de estacionam­ento da Casa do Artista. Pensava que era água e era gasóleo. Pareciam patins. Os seguranças, na receção, viram que caí e pensaram que tinha desmaiado. Não, estava era só a ver se me levantava. Bati em cheio, caí de lado. Bati com o fémur, não parti. Troquei as pernas, fiz um triângulo e levantei-me. Simplesmen­te o fémur não fraturou, só desloquei a anca e assim tem ficado. Só agradeci a Deus por não ter partido o fémur. Também já a ouvimos descrever o episódio da morte do seu marido, (o ator) Armando Cortez, e a forma corajosa como aguentou, a conduzir, numa viagem entre o Porto e Lisboa.

Foi a pior viagem da minha vida. Passou-lhe quase tudo pela cabeça. Não me passou tudo porque era real. Sabia que era impossível estar vivo. Um dos filhos é médico e tinha todos os cuidados com o pai. Quando me telefona

ram disseram: “O senhor Armando Cortez sentiu-se mal e chamámos uma

ambulância” . Percebi logo tudo. Nunca lhe disseram que tinha falecido. Nem precisaram de dizer. O que se fazia, e faz aqui na Casa do Artista, é: “O senhor Armando sentia-se mal”, chamava-se o filho, nunca se chama a ambulância. Como aguentou a viagem a conduzir? Não sei. Não sei...

Fez a autoestrad­a em automático.

Não me recordo de nada. Só queria chegar... Só carregava no acelerador... A sua resistênci­a, a desvaloriz­ação das doenças e dos problemas ajuda-a a gerir a Casa do Artista? Acaba, com o seu otimismo, por contagiar os residentes. Claro. Há aqui uma placa que diz: “É

proibido envelhecer!”. Estou sempre a pedir-lhes que valorizem tudo o que têm de bom e desvaloriz­em os problemas. Onde foi buscar esse otimismo? Aos seus pais?

O meu pai não me recordo se era otimista ou não. A minha mãe era completame­nte diferente de mim. Um amor de mãe, mas muito pessimista. Eu sou muito otimista e foi com isso que erguemos esta casa para todos os artistas. Sempre disse que “o sonho tem de ser grande para não se perder de vista.”

“Caí, bati em cheio de lado com o fémur, não o fraturei. Desloquei a anca e assim tem ficado. Só agradeci a Deus por não ter partido o fémur.”

 ??  ??
 ?? TEXTO JOÃO BÉNARD GARCIA I FOTOS LILIANA PEREIRA ??
TEXTO JOÃO BÉNARD GARCIA I FOTOS LILIANA PEREIRA
 ??  ?? Já escolheu o sucessor para a Casa do Artista Está, há 30 anos, ligada ao processo de construção da Casa do Artista, em Carnide, Lisboa. Tem 84 anos, em breve fará 85, e, inevitavel­mente, terá de descansar. Já tem alguém em vista a
quem vai passar a pasta na Casa do Artista?, perguntámo­s. “Tenho, mas também tive outros em quem não acertei. Acho que já arranjei a pessoa certa. Sou uma mulher cheia de
esperança... Só não posso dizer quem é.”
Já escolheu o sucessor para a Casa do Artista Está, há 30 anos, ligada ao processo de construção da Casa do Artista, em Carnide, Lisboa. Tem 84 anos, em breve fará 85, e, inevitavel­mente, terá de descansar. Já tem alguém em vista a quem vai passar a pasta na Casa do Artista?, perguntámo­s. “Tenho, mas também tive outros em quem não acertei. Acho que já arranjei a pessoa certa. Sou uma mulher cheia de esperança... Só não posso dizer quem é.”
 ??  ??
 ??  ?? “Há aqui uma placa na Casa do Artista que
diz: ‘É proibido envelhecer!’. Peço-lhes que valorizem tudo o que têm de bom e que desvaloriz­em os
problemas”, defende esta otimista nata.
“Há aqui uma placa na Casa do Artista que diz: ‘É proibido envelhecer!’. Peço-lhes que valorizem tudo o que têm de bom e que desvaloriz­em os problemas”, defende esta otimista nata.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal