Os MORTOS de Valpaços
Durante séculos, os conflitos que emergiam nas relações sociais de cada comunidade realizava-se através da justiça privada. As leis, conhecidas por Ordenações, eram vagas, sem tipificações penais, eram ditadas por direito consuetudinário e fundadas na moral religiosa. Só a partir do séc. XVIII, com a emergência dos pensadores iluministas, e depois ao longo do séc. XIX, foi estruturado o Direito Penal que tinha, na sua finalidade última, expropriar a violência á comunidade, entregando o monopólio ao Estado através do terceiro poder – a Justiça.
Só o Estado podia decidir da morte de alguém. Só o Estado poderia, através da Justiça, determinar a prisão de alguém, condenar a trabalhos forçados ou ao desterro. Todos os comportamentos violentos seriam controlados pelo poder judicial, graduando penas conforme a gravidade do delito. Aliás, crimes e penas que deveriam estar previamente tipificadas na lei.
É verdade que Portugal reagiu tarde a esta expropriação da violência e a sua gestão pública. Antecipou-se no que respeita à abolição da pena de morte, porém, o primeiro Código Penal com cabeça, troncos e membros é de 1886. Tem, apenas, 130 anos de existência, tempo que representa um grão de areia, na construção milenar das sociabilidades e gestão de conflitos. Por outro lado, os homicídios em Portugal, até meados do séc. XX, eram esmagadoramente determinados pelas relações de interconhecimento entre agressores e vítimas. Conflitos sobre a honra, sobre a propriedade, sob o efeito do álcool, são as circunstâncias que produzem a violência criminal. Ontem, tal como hoje. Não existe lei que consiga prevenir a violência assassina que se encontra na nossa memória mais profunda e normalmente explicada pela ideia de fazer justiça pelas próprias mãos. É o caso de Valpaços. Um duplo homicídio de agora, que cheira à memória mais profunda do ser humano a viver em comunidade. Na verdade, somos feitos de muitas memórias. De curta duração. De longa duração. Cientistas e crentes, idealistas e pragmáticos, incapazes de dominar a emoção para que não se transforme em fúria assassina. De facto, todos nós podemos matar. A vingança privada está nos nossos genes.