Tricas e psicodramas DE UM ATENTADO
O autor não esconde o entusiasmo que sentiu quando viu uma reportagem numas fotocópias e depois encontrou um velho processo-crime com mais de 80 anos. O atentado a Salazar tem todos os ingredientes policiais que adora
Francisco Moita Flores, de 67 anos, fala do seu último romance, Os Cães de Salazar, com o entusiasmo de quem ainda está a ver a história em primeira mão em fotocópias e de quem fotografou todo o processo-crime e o guardou no telemóvel. E fala do tema – o atentado contra o ditador António de Oliveira Salazar, em 1937 – e do fim da história com um prazer extremo. “O que me dá gozo neste romance é a trica, o psicodrama de haver pessoas com poder que convenceram inocentes de que eram culpados; e, por outro lado, convenceram culpados de que eram inocentes.”
O escritor explica ainda como o foco por si dado à narrativa lhe causou estranheza, e até uma certa apreensão. “Escrevi o livro com algum receio: o de ver a ditadura pelos olhos da ditadura, pelos olhos dos homens da ditadura e não escrever só mais um livro de protesto ou denúncia. É com o olhar frio sobre aqueles homens, o teor daquelas diligências, aquela estrutura de pensamento e aquela forma de agir, que me debruço sobre aquela época.”
Na base da obra de 296 páginas, que a editora Casa das Letras agora deu à estampa, está a curiosidade sempre fervilhante do também ex-inspetor da PJ, cronista da TV Guia e comentador da CMTV. “O que me despertou a curiosidade foi o artigo do jornalista Valdemar Cruz”, reconhece, documento com o qual se “estampou” quando fazia a investigação para o seu penúltimo romance histórico-policial, O Mistério do Caso de Campo de Ourique.
Das fotocópias do jornalista ao pedido de acesso ao processo-crime arquivado, desde o final dos anos 30 do século passado sobre o atentado, foi um tirinho. “E ainda por cima, além de lá estarem os costumes e as regras da época, existe uma investigação à investigação da polícia política feita por um juiz. E isso é muito interessante”, acrescenta à nossa revista.
Questionado sobre quem são os heróis do livro, Moita Flores responde de rajada: “Este livro não tem heróis! O tempo que se vivia em 1937 era tão ruim, cercados de fome, vivendo o ambiente da Guerra Civil espanhola, com as liberdades cerceadas... O ambiente é tão negro que ninguém consegue ser herói”, defende, para logo de seguida apontar um, que tem mais de anti-herói do que de ilustre. “Talvez aqui o herói seja o Agostinho Lourenço (fundador da PVDE, antecessora da PIDE), porque, com isto tudo, conseguiu criar a estrutura repressiva mais poderosa que o Estado Novo teve. E é ele quem vai organizar a rede de informadores do Estado, formais e informais, omnipresente, que funciona como um mecanismo complexo e extraordinário de perseguição política.”
Este episódio esquecido da história do Estado Novo, que o escritor ressuscita com este livro, relata o episódio vivido em 1937 quando Salazar seguia na sua viatura Buick, numa das avenidas novas de Lisboa, e dez quilos de dinamite rebentaram, com a orientação de projeção errada, num esgoto da artéria. Safa-se o ditador, mas a história mudou o rumo da ditadura em Portugal, endurecendo-a e enegrecendo-a.
“Tive acesso ao processo todo e tenho-o todo fotografado no meu telemóvel e lá li que, no meio da desorientação, surge a informação de um bufo que dizia ter sido um grupo do Alto do Pina, que eram uns pedreiros que se juntavam para beber copos e jogar à sueca, que tinha cometido o atentado. Em 4 ou 5 dias prenderam os desgraçados, a toque de cacetada, e de copos, porque estavam todos bêbados. E conseguiram as confissões de que precisavam para proclamar que tinham resolvido o problema. O caso teve repercussões internacionais: Churchill, Hitler, Mussolini e Franco deram os parabéns a Salazar.”
Só que, dias depois, dois dos três verdadeiros “bombistas” reclamaram a autoria do atentado. E aqui começa o enredo trágico-cómico de Os Cães de Salazar.
“Este livro não tem heróis! O tempo que se vivia em 1937 era tão ruim que ninguém o consegue ser”