NÁUFRAGOS de nós mesmos
Neste dia, 22 de dezembro, em que escrevo este texto para a Varanda da Esperança, faz 31 anos que Samuel Beckett, grande escritor, dramaturgo e Nobel da Literatura, morreu. Na sua icónica peça de teatro À Espera de Godot, ele retrata, de uma forma absurda e metafórica, a condição humana, através das suas personagens, Vladimir e Estragão. Dois “vagabundos”, dois homens, que esperam e esperam e esperam por Godot. Esperam por alguém, ou de algo, para que alguma coisa aconteça. E, nesta peça, nada acontece, apenas a passagem do tempo. E, no final, quando se decidem ir embora, ficam no mesmo lugar e cai o pano. A natureza do Homem sempre me inquietou. Sentado na esplanada do café, deixo o meu olhar repousar num banco do jardim onde se sentam dois homens que me fazem lembrar Vladimir e Estragão. Também eles esperam que o tempo passe. São dois sem-abrigo, vagabundos, excluídos, marginais, pobres, alcoólicos, toxicodependentes… Quem são? Quem são estes seres estranhos, de rostos ásperos e arrasados, que convivem connosco, que atraem e desviam o nosso olhar, suscitando-nos pensamentos ecléticos? Mandriões, parasitas, falsos pedintes, drogados, bêbados, loucos? E o nosso olhar retrai-se e o nosso pensamento mergulha no nosso mais profundo interior, procurando razões. Procurando sofrimento, angústia e compaixão para esta visão, procurando desesperadamente soluções, mesmo que miraculosas, para solucionar, resolver, mitigar essa dor. Talvez mais por nós do que por eles. Queremos tentar perceber aquela tristeza, aquela solidão, queremos resgatar a dignidade humana… Ofereci uma esmola e senti vergonha. Portugal e nós, portugueses, estamos inscritos na lista de países desenvolvidos, mas um País e uma sociedade que tem cidadãos seus, ou à sua guarda, a viverem em condições materiais, culturais, afetivas, abaixo do limiar da pobreza… Enquanto não houver uma estratégia política para tentar eliminar as carências, os maus-tratos, a fraca instrução, a falta de afetos, sobretudo nos nossos velhos e nas crianças, não nos podemos sentir um povo e um País desenvolvido. O Presidente da República, o doutor Marcelo Rebelo de Sousa, a quem muito saúdo a sua tomada de posição em relação aos sem-abrigo, defende que, enquanto houver pessoas nesta situação, ninguém pode viver de consciência tranquila. O Presidente lançou um desafio e um possível objetivo: tentar erradicar o problema dos sem-abrigo até 2023. Ele próprio já fez um diagnóstico negativo e receia que a meta não seja atingida. Esperemos, pois, que, ultrapassado este sombrio 2020, possamos também trabalhar e esforçarmo-nos para encontrar vacinas para nos ajudar a vencer esta batalha. Que 2021 seja um ano onde muitos sonhos e desejos se possam concretizar.