TV Guia

“A palavra de ordem é CHOCAR”

Júlio Isidro nunca pensou ver o que vê na televisão

- TEXTO JOÃO BÉNARD GARCIA | FOTOS RICARDO RUELLA

O decano dos apresentad­ores revela que uma famosa atriz lhe encheu as medidas, aos 15 anos. Que vai ser ator de teatro aos 77 e que não rejeita um convite para um filme. Tudo porque é um homem de trabalho, sempre o foi. Aliás, na véspera do 64º aniversári­o da RTP, a estrela da estação pública confessa que foi por isso que se divorciou

Que sensação teve aquele rapaz de 14 anos, chamado Júlio Isidro do Carmo, quando, no coro do Liceu Camões, foi cantar pela primeira vez à televisão? A sensação foi algo estranha porque me disseram que tinha de levar um fato escuro e eu nem fato tinha. O tio Albano emprestou-me um fato para luto, para parecer um smoking. Estreei-me em televisão com um fato de ir aos funerais [risos]. O fatinho foi a grande preocupaçã­o? Foi, mas depois, quando me estreei a fazer o Mãos à Obra, na semana seguinte, na RTP, levei um blazer de um primo. As calças, vá lá, eram minhas, mas os sapatos também eram dele. E quando foi cantar no coro? Quando fui cantar, já tinha feito provas para a RTP e nem sabia o resultado. Depois, disseram-me que não entrava, porque era o mais feio, apesar de ter tido as melhores provas. Digamos que a coisa não me correu logo bem. Ia muitas noites assistir às emissões, na Feira Popular, não me passava pela cabeça um dia estar do lado de lá. Mas chamaram-no. Sim, chamaram-me, porque havia ali umas rubricas que me assentavam como uma luva. Uma delas era o Mãos à Obra, que era eu 20 minutos a falar sozinho, sem teleponto, com um guiãozito feito por mim. “Cortava” e “colava”. “Serrava” e “envernizav­a”. Tudo em programas juvenis? Sim, era no Programa Juvenil, das 18 até às 20 horas. Os apresentad­ores, além de mim, eram o João Lobo Antunes e a Lídia Franco. Lídia Franco seria uma jovem com os seus 14, 15 anos... Sim, tínhamos os dois a mesma idade. Fomos os únicos que enveredara­m pela chamada “vida artística” [risos]. A Lídia, que era bailarina. Aliás, ainda hoje diz ser bailarina. Sim, e tem toda a razão. Na altura, estava era lesionada. Já agora, em relação a Lídia Franco: sentiu alguma paixoneta por ela? Se disser que tive uma paixoneta por ela, é natural que seja verdade. Não lhe disse nunca uma palavra porque eu era de uma timidez... E ainda sou. Mas lembra-se de se ter apaixonado por ela? Não, nada. Lembro-me de olhar para ela e pensar: “Isto é que era uma boa namorada!” Mas nunca lhe disse nada, fomos só colegas de trabalho. Além de tudo mais, a Lídia tem um encanto especial, não é só bonita, tem charme. Olhe, tinha sorte, trabalhava com meninas bonitas. Suspirava, mas não me metia em alhadas [risos]. Se calhar, não avançava por sofrer do estigma do “fez boas provas, mas não entra porque é o mais feio”, ou não? Isso é uma coisa que me perseguiu toda a vida. Estou seriamente a pensar consultar um cirurgião plástico para me operar. Mas agora também acho que já é tarde [brinca]. Se hoje o desafiasse­m para entrevista­r o cão Dói Dói, ou manipular o Rato Renato, acha que conseguia? Sim, se não forem peças de muitas horas com os braços no ar. Hoje, até me doem de secar o cabelo com o secador. Tem saudades desse tempo em que fazia tudo no programa infantil, escrever os textos, manipular os bonecos? Tenho, muitas, lembro-me de estar lá a trás e de fazer os sobrinhos do cão Dói Dói. Eram um sucesso! Já assistiu à peça Avenida Q? Tem duas filhas adolescent­es, uma até já entrou na idade adulta... É aquela peça giríssima com o Rui, o filho da Júlia Pinheiro, certo? Vi excertos na televisão. É engraçadís­sima, tenho de ir ver. Vê-se a participar como ator naquele imaginário, ao estilo Marretas? Claro que sim, e com prazer. Olhe, posso-lhe adiantar, em primeira mão, que fui convidado para pisar o palco, pela primeira vez, em março de 2022. Não lhe posso dizer mais, é segredo. Pisarei um palco num teatro com prestígio na praça. Tenho é medo de lhe tirar o prestígio todo [risadas]. Qual é o papel? Será o protagonis­ta? Ainda não me mandaram o guião. Sei que terei muitas coisas para dizer. Foi um convite irrecusáve­l, mas é segredo. E fá-lo-á aos 77 anos. É verdade. Disse à minha mulher [Sandra Barros]: “Já plantei várias árvores. Filhas, ‘plantei’ três” [risos]. Livros, já escrevi vários. Em termos de televisão, já fiz tudo o que havia para fazer. Até fiz o terço ao vivo, com emis

“Se disser que tive uma paixoneta, aos 15 anos, pela Lídia Franco, é natural que seja verdade. Não lhe disse nunca uma palavra, porque eu era de uma timidez...”

sões a partir de Fátima. Rádio, fiz muita, que eu próprio inventei. Curiosamen­te, nunca fiz um filme nem uma peça de teatro. A peça chega agora, o filme ainda não aconteceu. Pode ser que, depois desta entrevista, o convidem para uma curta-metragem. Até pode ser uma micro-metragem. E fará com empenho, trabalho e cuidado, para nunca errar, certo? Sim, isso é essencial. A minha geração, antes da fama, quer o trabalho. A minha prioridade é sempre trabalhar. Isso remete-nos para os anos 60, uma época em que trabalhava imenso. Fazia horas e horas na rádio, fazia turnos de colegas que faltavam. Sentiu que por ter sido sempre precário... É verdade, sou o mais antigo precário português. Na época do Natal ou Ano Novo, a rapaziada que tinha família não queira fazer esses dias. Eu oferecia-me logo. Era pago à hora! Sentiu necessidad­e de trabalhar muito, em especial depois de ter sido pai? Sentia a responsabi­lidade de, além de pagar contas, ter dinheiro de parte para um imprevisto? Disse praticamen­te tudo o que ia na minha cabeça. Não era enriquecer, era não empobrecer. Era ter a certeza de que tinha um fundo de maneio para não pesar aos meus pais. Era precário, um dia podia trabalhar e no outro não. Casei-me cedíssimo e a única prenda que tivemos foi da minha mãe, que nos encheu a despensa com mil escudos de compras. O resto foi tudo feito por mim, até pintar as paredes de casa. Depois, mudámos de casa e forrei as paredes a papel. Comprámos móveis na Olaio. A primeira mesa de sala de jantar que tivemos foi o caixote de papelão do frigorífic­o... Ou comprava o frigorífic­o ou a mesa para comer... E o frigorífic­o era essencial. O facto de, na altura, ter estado tão empenhado em trabalhar fê-lo perder a vida familiar. Foi isso que acabou com o seu casamento? Não tenho dúvidas de que o meu divórcio foi resultante de eu ter atraiçoado o conceito de família em favor do trabalho. Já disse isso várias vezes à Inês [filha, de 52 anos]. Já lhe dei beijinhos. Já lhe pedi desculpas. Agora somos dois companheir­ões, mas eu vivia obcecado com trabalho. E valorizava muito o dinheiro. Não o esbanjava em festas ou roupas caras. Nada, sou completame­nte anticonsum­ista. Não confundir um não consumista, que é o meu caso, com um avarento. As minhas filhas brincam comigo porque vou sempre à prateleira

“Se sinto uma grande angústia em relação à minha partida? Não. Como alguém dizia, e com razão, ‘não tenho medo de morrer, tenho é pena’”

das promoções. Tenho alguma rejeição às pessoas que fazem do consumo, e da sua exibição, o seu modo de vida. Como e qual foi o momento em que o Júlio e a Inês fizeram as pazes? Nunca estivemos zangados. Nunca houve um corte radical. Não havia era a aproximaçã­o normal entre um pai e uma filha. Nunca lhe faltou nada, mas falhei na minha presença. Hoje em dia, temos uma relação bonita. Quando ela me liga, diz: “Olá, meu pai...” Adoro que me trate assim. Imagino que, às vezes, faça um esforço para não ser cáustico ou sarcástico. Sente-se hoje mais livre e solto para dizer certas coisas? Sempre me senti livre para isso, para o humor. Se gozo comigo, também posso brincar com as outras pessoas. Mas tenho-me apercebido que vivemos num mundo cada vez mais tenso, onde valores de cortesia, mesmo os do humor, e de relacionam­entos entre pessoas, desceram ao grau zero. Muitas vezes até em televisão. Bem, ao nível da televisão, ouço e vejo coisas que pensava nunca ver. Tem acontecido porque se vive um tempo em que a palavra de ordem é chocar. Vamos chocar! Se chocarmos, chamamos a atenção das pessoas. Acho que o podemos fazer com a sedução. Televisão é seduzir os espectador­es. Desacordo com muitas coisas, mas nunca me ouvirão falar mal de alguém. Omite as suas opiniões por medo, é? Não, nunca omiti pensamento­s ou limitei opiniões com medo de perder alguma coisa. Faço-o, sobretudo, por uma questão de comodismo. Odeio a discussão. Adoro o diálogo, mas odeio discutir, particular­mente agora que temos as redes sociais como vazadouro de tudo o que há de pior... Mas cala-se só por comodismo? Olhe, o meu horizonte de vida é curto, estou na curva descendent­e da vida. Felizmente não a intelectua­l... Sei que já pediu à Sandra e às suas filhas que o avisem caso comece a perder qualidades, memória... Sim, já lhes disse isso. E agora estou proibido de falar na minha partida. Fiz uma dissertaçã­o sobre essas questões e agora estou proibido de o fazer, por elas. Sente uma grande angústia em relação a esse momento? Uma grande angústia, não. Como alguém dizia, e com razão, “não tenho medo de morrer, tenho é pena!” Tem medo de sofrer? Isso sim. Mas equacionan­do o ser apanhado à traição e ter uma doença degenerati­va, venha o Diabo e escolha. Estou tão habituado a estar vivo que nem equaciono o resto.

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Fotografad­o na sua casa, em Cascais, o apresentad­or revela que a mulher, Sandra Barros, e as filhas, Mariana e Francisca, o proibiram de falar sobre a morte.
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Adoro que me trate assim.”
Sobre a filha mais velha, Inês, revela: “Falhei na minha presença. Hoje temos uma relação bonita. Quando ela me liga, diz: Adoro que me trate assim.”

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