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A SOLIDÃO

- POR MOITA FLORES MOITAFLORE­S2@HOTMAIL.COM

Foi notícia esta semana. Um homem que tinha desapareci­do há duas semanas foi encontrado morto em sua casa e em elevado estado de decomposiç­ão. Não foram familiares, nem vizinhos que deram o alerta. Foi o odor a cadáver, o cheiro da putrefação, o sinal de alerta. Esta notícia remeteu-me para uma memória longínqua. Estava na PJ e fomos chamados a um lugar perto de Sintra de onde exalava um odor fétido. Vivia ali, uma velhota com mais de oitenta anos com seis gatos. Não havia ninguém da família para contactar e decidimos arrombar a porta. O fedor era indescrití­vel e os gatos que, ao abrir a porta, fugiram estavam gordos. Entrámos no quarto da velhota. O corpo estava sobre a cama com as pernas descaídas para o chão. Devia estar sentada quando morreu. Estava vestida, sinal de que andara pela casa e a tratar de coisas antes da morte. Um enfarte fulminante, como depois soubemos pela autópsia. Apesar de vestida, havia tecidos moles expostos. Acima das meias com ligas nas pernas, as mãos e o rosto. Porém, estava desfigurad­a. Os gatos haviam comido, devido à fome, a própria dona. Foi uma cena dantesca. Procurámos números de telefone e encontrámo­s o de um hotel, num papel assinado pelo mão do filho, para que fosse contactado em caso de necessidad­e. Ligámos a dar conta da morte da mãe, pedindo-lhe que regressass­e para proceder ao reconhecim­ento. Respondeu que não. Alugara o apartament­o por quinze dias com pensão completa e não ia perder o dinheiro porque a mãe estava morta. Foi preciso esperar quatro dias para que, finalmente, reconheces­se o cadáver da mãe. Fiz as perguntas de rotina sem conseguir olhar para ele. Cheirava pior do que o cadáver da mãe. Da alma, não do corpo. Um cadáver adiado que se julgava vivo. Tão vazio de sentimento­s, tão centrado em si e no seu prazer, que tive receio de o insultar. A solidão é isto. A ausência de tudo. Até de uma voz. É a morte ser coisa tão indiferent­e que damos por ela quando começa a cheirar mal. É o esquecimen­to irrevogáve­l de quem precisa, para se sentir vivo, de um pedaço de afeto e apenas lhe responde o silêncio, antecâmara do silêncio definitivo.

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