Ruy de Carvalho escreve esta semana na TV Guia Vamos dar as MÃOS
Quando começou esta onda de destruição humana, pensei, de mim para mim, que as crises não têm historicamente só um lado perverso, e que, a despeito do sofrimento físico dos que adoecem, das dores de alma de ver partir os que amamos, acaba sempre por ficar nos sobreviventes um resíduo de comprometimento com alguma pureza de valores que a solidariedade e o humanismo sempre trazem. É prerrogativa dos atores olhar para as pessoas, sentir o seu viver, ler nos seus olhos e nos seus gestos aquilo que lhes vai na alma, e eis-me esvaído da esperança de ver uma sociedade mais amiga de si própria e mais atenta aos infortúnios que ceifam noutros cantos do mundo, homens, mulheres e crianças inocentes, apenas porque nasceram em terras desnutridas, em países amortalhados pelos grandes interesses da economia e da política mundial. A crise que vivemos não é só reflexo da pandemia, mas da decadência de um grupo de esbirros do mal que tudo comprometem a favor da influência sem limites, a favor da soberba das grandes nações, a favor da falta de qualidade de quem decide governar pelo medo, seja ele medo da fome, da guerra, da pestilência e sobretudo do pânico de se ficar sozinho. Dizer que as pandemias têm sido fabricadas, acrescenta pouco à limpeza desse medo. Dizer agora que as vacinas são paliativas não resolve nada. Encolher os ombros perante uma fuga forçada de milhares de pessoas de uma África arruinada não nos faz melhores do que aquilo que somos. Porque o que somos, ou o que devíamos ser, está infelizmente a traduzir o reflexo de uma democracia decadente e empobrecida, muitas vezes ajudada por um jornalismo colado aos desígnios dos poderosos, por uma medicina atacada por dentro, por uma igreja que, calada, tudo vai consentindo e por uma magistratura que se habituou a deixar andar a justiça ao correr do tempo, para que os compromissos se esbatam e atenuem as penas dos culpados. E de repente, encontramo-nos de máscara, ou sem ela, a fugir uns dos outros, a discutir questões indiscutíveis, como o racismo, o papel social da mulher, a homossexualidade, como se as raças tivessem que ter direitos diferentes, como se as mulheres tivessem que ter direitos diferentes e as opções sexuais pudessem gerar indignidade, perdendo dessa forma um tempo infindo que nos desvia das questões essenciais, trazidas à baila pelo sofrimento humano e escondidas capciosamente debaixo do manto fantasma, para que deixemos de ser atentos, para passarmos a ser venerandos e obrigados. Surpreende-me como há pessoas, com um nível cultural acima da média, que não conseguem respeitar a liberdade dos outros e lhes colocam rótulos com tanta facilidade. Não seria bem melhor apelar-se a uma espécie de senso comum, numa postura inteligente, sóbria e cuidadosa, onde cada qual cuidaria da sua segurança, procurando simultaneamente estar atento às linhas de sofrimento alheias, de forma a poder ajudar o seu semelhante, excluindo da nossa sociedade esta espécie de “talibanismo” que nos condena por discordarmos desta ou daquela ideia ou por comentarmos a pouca acuidade deste ou daquele ministro? É nestas épocas difíceis que devemos pôr em prática o respeito que devemos ter uns pelos outros, evitando sucumbir ao medo que se tem espalhado pelo mundo. Olhemos para os nossos mais velhos, cada vez mais velhos e mais doentes, e para os novos, cada vez menos novos, mas muito mais traumatizados, nesta onda de destruição que bem poderia ter sido evitada se, por detrás destes descalabros mundiais, não houvesse gente a ganhar fortunas e gente a servir o que de pior a imaginação pode conceber. Vamos crescer, meus amigos. Vamos dar as mãos e pensar que tipo de futuro estamos a deixar para os nossos filhos e netos.