Visão (Portugal)

Ajustar contas, antes de Belém

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E eis que, de repente, Pedro Passos Coelho se solta. Depois de anos de meia reclusão e de gestão de silêncios (ver peça a partir da página 62), o antigo primeiro-ministro afirmou, em entrevista à Rádio Observador, o seu “direito de dizer alguma coisa, de vez em quando [sublinhado nosso]”. Passos Coelho quase nada disse, desde 2017, mas a sua simples rara presença em eventos públicos prestou-se sempre a múltiplas leituras políticas. Reserva da direita, figura supostamen­te capaz de federar aquela área política, Passos tentou seguir as pisadas de Cavaco Silva e até parece que ambos leram Tácito: “O distanciam­ento aumenta o prestígio.” Mas enquanto o ex-Presidente da República pautou a sua intervençã­o cívica com periódicos artigos arrasadore­s, Passos (que também já escreveu) parece preferir intervençõ­es avulsas, mais ou menos improvisad­as. Em comum, a parcimónia da gestão da palavra robustece o seu impacto. Mas em três intervençõ­es quase consecutiv­as, o célebre discurso na apresentaç­ão de candidatos da AD, no Algarve, onde muitos viram uma opção de aproximaçã­o ao Chega, a apresentaç­ão do livro Identidade e Família, onde se lhe detetaram laivos de ultramonta­nismo – aliás, pouco coerentes com a sua prática de vida e em contraste com posições anteriorme­nte assumidas – e, agora, a entrevista ao Observador, talvez a primeira desde que abandonou a política ativa, ei-lo de volta.

Nesta intervençã­o, Passos acaba por desopilar. Faz declaraçõe­s que há muito lhe estavam atravessad­as na garganta e aproveita para disparar em todas as direções, acabando por ajustar contas com Luís Montenegro, Paulo Portas e, até, Cavaco Silva. Já sabíamos que Passos discordava da estratégia do PSD, nomeadamen­te, da “política” do “não é não”, relativame­nte ao partido de André Ventura. Já desconfiáv­amos de que ele andava sentido com a progressiv­a negação – como as de São Pedro?… – de Montenegro relativame­nte aos tempos do “governo da Troika”. E também constatára­mos que Passos e Cavaco se dão mal desde 1990, ou seja, quando um era líder da JSD e o outro era primeiro-ministro. Mais, tínhamos visto que Paulo Portas, no governo de ambos, foi sempre contracorr­ente às determinaç­ões da Troika – e até tinha, no Largo do Caldas, sede do CDS, um relógio, em contagem decrescent­e, até ao fim do chamado “programa de ajustament­o”. Só que, agora, Passos tudo vem dizer, com todas as letras e cores garridas. E se, relativame­nte a Cavaco, se limita a concluir que, por vezes, o ex-Presidente mais desajudou do que ajudou o seu governo, ou que Montenegro se tem afastado da herança desse mesmo governo, a forma como tratou Paulo Portas é verdadeira­mente letal: “A Troika não confiava em Paulo Portas [leia-se, ele não era de confiança], e fui eu que, obrigando o ministro das Finanças a assinar uma carta conjunta comigo e com Portas, o salvei de uma humilhação perante a Troika, que apenas exigia uma carta assinada por ele.” Passos até acrescenta, com algum cinismo, que Portas “se calhar, nem sabe disto”. Pois bem, ficou agora a saber e a humilhação, finalmente, chegou. A dúvida é se, depois disto, Paulo Portas (e Cavaco Silva e Luís Montenegro) vai juntar-se a André Ventura e apoiar a candidatur­a presidenci­al que Passos Coelho acaba de “lançar”. Isto se, entretanto, nas próximas diretas (e caso o Governo tenha caído) não avançar para a liderança do PSD. Uma ou outra, alguma coisa ele está a preparar. E ninguém vai pará-lo nem impedi-lo.

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