Uma pintora de uma modernidade contemporânea
Frida Kahlo (1907-1954) é a artista feminina mais identificável da História de Arte. Esta afirmação pode ser questionada, dirão alguns, mas é um facto indiscutível. A efígie do seu rosto, patente em múltiplos autorretratos, é imediatamente reconhecida em qualquer contexto artístico ou editorial, seja uma exposição, uma revista ou um documentário, na capa de um livro ou de um catálogo. A personalidade da artista é elogiada em todo o mundo; a sua pintura – por vezes crua e incisiva – é, ao mesmo tempo, provocadora e irresistivelmente atrativa. As suas fotografias e correspondência têm milhares de admiradores e leitores fiéis, prontos a esquadrinhar os pormenores da sua intimidade. O fenómeno em si não tem paralelo com nenhum outro artista na História de Arte ‒ exceto talvez Vincent van Gogh, em termos do impacto emocional das suas pinturas, ou, com algumas nuances, com a estranha e esquiva personalidade de Andy Warhol, o mestre do marketing.
A verdade, porém, é que nem sempre foi assim. Se tivesse levado por diante os planos da sua juventude, Magdalena Carmen Frida Kahlo y Calderón ter-se-ia tornado uma ilustre médica, em vez de pintora, e o mundo artístico teria perdido um dos seus ícones mais fascinantes ‒ pior ainda, nenhum dos seus quadros teria sido alguma vez pintado. Sabe-se que, em criança, era irrequieta e travessa, inconformista e rebelde, sempre desejosa de ser o centro das atenções e a protagonista – basta observar as múltiplas imagens captadas pelo pai fotógrafo para identificar a influência de Narciso. Vocacionada para o conhecimento e a aprendizagem, a adolescente Frida rapidamente revelou as suas faculdades criativas. Leitora ávida e atraída pela poesia, desenvolveu uma narrativa literária precoce através das suas cartas, algumas escritas muito antes de se tornar famosa. A arte fotográfica do pai deu-lhe acesso desde muito cedo à formação artística, pois, através do trabalho deste, compreendeu os segredos da máquina fotográfica, as formas de olhar diretamente para a objetiva e, assim, de libertar um potencial de sedução através do olhar. Como assistente de Guillermo Kahlo, Frida aprendeu os truques do ofício: como fazer o enquadramento de uma composição, como conseguir que a efígie da pessoa retratada surja da sombra, e como a luz pode tornar-se um recurso mágico para criar fantasias. As afinidades entre pai e filha começaram na infância, pois Frida costumava acompanhar Guillermo Kahlo em longas caminhadas ao longo da margem do rio, até o convento de Churubusco. Enquanto o pai pintava paisagens a aguarela, ela fazia os primeiros desenhos de paisagens imaginárias com arquiteturas irreais, saídas de contos e histórias que o pai certamente lhe lia.
Uma contribuição definitiva que o pai prestou para o nascimento da futura pintora foi dar acesso a Frida aos livros e revistas que lhe apresentaram a História de Arte e o panorama artístico do México. Guillermo apreciava a pintura europeia e admirava a arte de Van Eyck e de Dürer, mas também a modernidade de Max Liebermann e as pinceladas diáfanas de Anders Zorn, um artista cujas gravuras Frida já copiava, como aprendiza, no atelier de Fernando Fernández, por volta de 1925. Porém, as revistas da Belle Époque que o pai colecionava também mostraram à jovem Frida Kahlo a obra de modernistas mexicanos como Germán Gedovius ou Alfredo Ramos Martínez, pintores que despertavam a sensibilidade paterna e que o pai chegou a emular, como pintor diletante. No entanto, a influência mais decisiva que Guillermo talvez tenha tido sobre a pintora em formação foi ter-lhe ensinado a colorir fotografias. Apesar do rigor técnico com que o fotógrafo retratava os seus modelos, a clientela gostava de
retratos coloridos à mão, tarefa que exigia paciência, aliada à precisão, como se fosse a mão de um cirurgião a explorar as entranhas do corpo humano. Frida aprendeu este requinte da profissão com o pai ‒ aplicar pontos de cor a óleo com pinceladas tão finas como “um cabelo” ‒, o que transformava as fotografias num híbrido pictórico. Frida Kahlo estava longe de imaginar que estes retoques fotográficos iniciais se tornariam nas qualidades posteriores da sua pintura – aquelas pinceladas curtas e precisas que a identificavam com a arte dos pintores flamengos, que tanto admirava.
Aos 18 anos, depois de sofrer um terrível acidente que quase lhe custou a vida, Frida Kahlo abandonou os estudos e o desejo de estudar Medicina não se concretizou. Voltou então os olhos para a pintura como uma nova vocação assumida, a mesma que começara a praticar por influência paterna antes de ficar acamada. Assim, não é exato considerar o acidente como a causa de Frida Kahlo ter começado a pintar. A semente já lá estava, bem plantada desde a infância. Os anos de estudante na Escola Normal Primária e depois na Escola Nacional Preparatória alimentaram o seu interesse em aprender desenho, em ler sobre a vida de grandes mestres da História de Arte, como Giotto e Leonardo, e despertaram a ânsia de entender o que estava a acontecer durante o renascimento cultural que a Cidade do México testemunhou nos anos vinte do século passado. Frida aproximou-se das tendências de linguagens vanguardistas como o Estridentismo e o Movimento Muralista mexicano: na mesma altura em que Diego Rivera executava o seu primeiro mural no anfiteatro Simón Bolívar, a artista fazia parte de um bando de rapazes anarquistas, autodenominados “Los Cachuchas”. Quando passou a levar a pintura a sério, como possível modo de vida, Frida ampliou os seus horizontes e estudou artigos de revistas especializadas em estética, como a Forma e a Mexican Folkways, editadas por Gabriel Fernández Ledesma e Francés “Paca” Toor, enquanto abraçava a fotografia modernista feita por Edward Weston e Tina Modotti, e aderia em seguida à juventude comunista. Pouco a pouco, foi forjando um universo de diálogos e influências, de modelos e paradigmas, alimentando-se tanto da tradição dos grandes mestres como do clima de novidades artísticas que acontecia no México. Esta seria precisamente uma virtude da sua pintura: a capacidade de se manter sempre fiel a si mesma, enquanto explorava e se alimentava de tudo o que servisse para afirmar o seu discurso como pintora, por direito próprio.
Assim, se analisarmos a trajetória formativa de Frida Kahlo no início dos anos 1920 no México, e a que adquiriu na década seguinte, durante os quase quatro anos em que viveu nos Estados Unidos da América ‒ quando acompanhou Diego Rivera, com quem casou em 1929, durante o périplo de execução de frescos murais nas cidades de São Francisco, Nova Iorque e Detroit ‒, percebemos que se tornou numa pintora culta, sofisticada, com uma postura conceptual que a própria pulsação da pintura moderna no século XX estava a definir. Frida Kahlo concebeu uma arte pictórica afastada do dogmatismo, tanto estético como ideológico, preferindo centrar-se no eixo concreto da sua condição criativa: o de uma mulher que, apesar de estar casada com um dos mais importantes pintores da arte moderna, foi capaz de construir um universo estético próprio; o de uma artista que não se contentou com o facto de os homens lhe darem uma oportunidade, fazendo-se notar pela sua condição feminina e pelo rigor e singularidade da sua pintura, surpreendendo pessoas de todos os quadrantes, sem fazer concessões de modas ou mercados, marcando o seu próprio ritmo e impondo padrões de referência nunca antes tratados por uma mulher, na história da pintura. Frida Kahlo fez do próprio corpo e dos seus estados emocionais – ambivalentes, se os quisermos avaliar – o eixo do discurso da sua pintura. A partir da sua condição de mulher, pintou sobre o que lhe acontecia: o abandono do seu primeiro amor, que acreditava ser para toda a vida, destruindo os primeiros sonhos de uma existência feliz; a violência exercida sobre o seu corpo, abalroado e fragmentado por um elétrico que dividiu em dois o autocarro de passageiros em que viajava; o aborto, provocado ou não, de um nascituro, que destruiu o seu desejo de dar um filho a Rivera, por oposição ao desejo de não o ter, e interromper o caminho que percorria no mundo da arte com o seu parceiro de vida, colega, camarada – cúmplice de tudo o que viveram juntos como casal, na arte e na ideologia. Frida Kahlo concebeu a pintura como eixo da sua existência, dos seus projetos e anseios enquanto mulher e artista, dos seus compromissos e da ética de ação do seu pensamento político, até mesmo da sua afirmação individual, com toda a sua capacidade criativa – quer através dos seus desenhos e pinturas, incluindo gravura e litografia, quer da escrita das suas cartas e páginas do seu diário, das dezenas de fotografias que tirou, ou ainda dos seus pertences e do seu vestuário, bem como na construção dos espaços enquanto criadora. Um universo que abarcava todos os aspetos da matéria criativa. Assim, não é errado afirmar que Frida foi pioneira até mesmo do feminismo, nunca negando a sua condição feminina, assumindo a sua sexualidade e o veículo de seus desejos, fossem homens ou mulheres, de forma plena e aberta. Firme nas suas convicções, embora vulnerável na sua condição de mulher com um corpo destruído, Frida Kahlo abriu as portas para muitas mulheres criadoras no âmbito da arte contemporânea. O seu trabalho como artista continua a estabelecer padrões de referência, indicando o caminho para empoderar as mulheres com o seu próprio corpo, não procurando ser iguais, mas reconhecendo que são diferentes e, portanto, únicas. O seu discurso enquanto artista merece ser uma voz poderosa, que seja ouvida e escutada.
“NÃO É ERRADO AFIRMAR QUE FRIDA FOI PIONEIRA ATÉ MESMO DO FEMINISMO. FIRME NAS SUAS CONVICÇÕES, EMBORA VULNERÁVEL NA SUA CONDIÇÃO DE MULHER COM UM CORPO DESTRUÍDO, FRIDA KAHLO ABRIU AS PORTAS PARA MUITAS MULHERES CRIADORAS NO ÂMBITO DA ARTE CONTEMPORÂNEA”