CARTA AO PRESIDENTE MIGUEL ALEMÁN VALDÉS
Estritamente pessoal e confidencial Coyoacán, outubro, 29, 1948 Ao Exmo. Sr. Presidente do México Dr. Miguel Alemán Valdés
Miguel Alemán:
Esta carta é um protesto de justa indignação que quero fazer chegar as suas mãos contra um atentado cobarde e degradante que se está a cometer neste país.
Refiro-me à atitude intolerável e sem precedentes dos arrendatários do Hotel del Prado, que cobriram com tábuas o mural do Diego existente no salão de refeições do mesmo, obra esta que, por reproduzir a polémica, mas histórica frase de Ignacio Ramírez, “El Nigromante”, provocou, de há uns meses a esta parte, o ataque mais vergonhoso e injusto da história do México contra um artista mexicano.
Depois desse ataque publicitário, sujo e dissimulado, os senhores hoteleiros decidiram fechar com um “alfinete de ouro” a façanha deles, tapando com tábuas o mural... assim, sem mais nem menos! E não há no México ninguém que proteste! Como se costuma dizer vulgarmente: “Enterraram o assunto.”
Mas eu protesto e quero alertá-lo para a tremenda responsabilidade histórica que o seu governo está a assumir, ao permitir que a obra de um pintor mexicano, reconhecido mundialmente como um dos mais altos expoentes da Cultura do México, seja tapada, escondida dos olhos do povo deste país e dos do público internacional por razões sectárias, demagógicas e mercenárias.
Este tipo de crimes contra a cultura de um país, contra o direito de cada homem de exprimir o seu pensamento, estes atentados que assassinam a liberdade apenas foram cometidos por regimes como o de Hitler, e ainda hoje continuam a ser cometidos pelo governo de Francisco Franco e, no passado, na época obscurantista e negativa da “Santa” Inquisição.
Não é possível que o senhor, que representa, neste momento, a vontade do povo do México, cujas liberdades democráticas foram conquistadas pelo esforço incomparável de pessoas como Morelos ou Juárez e com o derramamento de sangue do próprio povo, permita que um punhado de acionistas, de conluio com alguns mexicanos de má-fé, tentem encapotar as palavras da História do México e a obra de arte de um cidadão mexicano que o mundo civilizado reconhece como um dos mais insignes pintores da nossa época. Envergonho-me só de pensar em semelhante atropelo.
Dirigi-me amigavelmente ao diretor do Instituto Nacional das Belas-artes, o nosso amigo comum Carlos Chávez, e ele, com todo o seu empenho, alertou oficialmente o Instituto do Património, entidade esta que parece ser a mais indicada para proteger as obras de arte em conflitos como o presente.
Todos estes trâmites burocráticos apenas têm como resultado o silêncio, apesar da boa vontade de amigos e funcionários. Sei muito bem que as leis, infelizmente, não asseguram como deve ser a propriedade artística de ninguém, mas o senhor, como advogado, sabe que as leis são, e sempre foram, elásticas.
Há uma coisa que não está escrita em nenhum código, que se chama consciência cultural dos povos, que não permite a conversão da Capela Sistina, de Miguel Ângelo, em apartamentos residenciais.
É por esta razão que me dirijo ao senhor, da maneira mais simples e chã, não como esposa do pintor Diego Rivera, mas como artista e cidadã do México, e com o direito que tal cidadania me confere, eu pergunto:
Vai permitir que o Direito Presidencial, que foi o senhor próprio a patrocinar com o objetivo de proteger as obras de arte em edifícios pertencentes à nação (como é o caso do Hotel del Prado, que pertence à Segurança Social, que é o mesmo que dizer que pertence aos empregados públicos deste país, embora, “legalmente”, uma sociedade simulada figure como sendo sua proprietária), seja espezinhado por uns mercadores imbuídos de sectarismo clerical? O senhor, como cidadão mexicano e, sobretudo, como Presidente do seu povo, vai permitir que seja silenciada a História, a palavra, a ação cultural, a mensagem de génio de um artista mexicano? Está disposto a permitir que se destrua a liberdade de expressão, a opinião pública, vanguarda de qualquer povo livre?
E tudo isto em nome da estupidez, do obscurantismo, da corrupção e da traição da democracia. Rogo-lhe que meta a mão na consciência e que responda honradamente a estas perguntas, e que pense no papel histórico que, como mandatário do México, tem perante um facto de tamanha transcendência. Coloco o problema à sua consciência de cidadão de um país democrático. Tem o dever de ajudar esta causa, comum a todos aqueles que não vivem sob
regimes de opressão vergonhosa e destruidora. Ao defender a cultura, estará a demonstrar a todos os outros povos do mundo que o México é um país livre. Que o México não é o povo inculto e selvagem dos Panchos Villa. Que, sendo o México democrático, tanto se respeitam as bênçãos do Sr. Arcebispo Martínez como as palavras históricas do “Nigromante”. Que tanto se pintam santos e virgens de Guadalupe como representações de conteúdo revolucionário nas escadas monumentais do Palácio Nacional.
Que o mundo inteiro venha aprender ao México a lição do respeito pela liberdade de expressão! O senhor tem a obrigação de demonstrar aos povos civilizados que não está à venda, que no México se lutou com sangue e que se continua a lutar para libertar o país dos colonizadores, mesmo que estejam carregados de dólares.
Está na hora de não fazer ouvidos de mercador e de fazer valer a sua personalidade de mexicano, de Presidente do seu povo e de homem livre.
Uma palavra sua a esses senhores arrendatários de hotéis será um forte exemplo na história da liberdade conquistada para o México. Não pode permitir que se pratique demagogia de gangsters com a dignidade de um decreto seu e com o acervo cultural do país inteiro.
Se o senhor, neste momento tão decisivo, não atuar como um mexicano autêntico e não definir os seus próprios decretos e direitos, então, que venha a queima de livros de ciência, de história, que se destruam à pedrada ou com o fogo as obras de arte, que se expulsem do país os homens livres, que venham as torturas, as prisões e os campos de concentração! E eu garanto-lhe que, muito em breve, e sem darmos por isso, teremos um flamejante fascismo made in México!
Uma vez, o senhor telefonou-me, precisamente para o ateliê do Diego Rivera, para me cumprimentar e para me lembrar de que fomos colegas de escola na Preparatória.
Agora sou eu quem lhe escreve para o cumprimentar e para lhe recordar que, antes de mais nada, somos mexicanos, e que não estamos dispostos a permitir que ninguém, e muito menos uns hoteleiros de tipo yankee, salte para cima do lombo da cultura do México, raiz essencial da vida do país, denegrindo e menosprezando valores nacionais de importância mundial e fazendo gato-sapato (Mexican curious) de uma pintura mural de transcendência universal.
Frida Kahlo
Nota: Os protestos de Frida deviam-se às agressões perpetradas contra o mural “Sonhos de Uma Tarde Dominical na Alameda”, fresco pintado na sala de refeições do Hotel del Prado, em 1947, e cuja frase “Deus não existe”, inscrita ao pé do retrato de Ignacio Ramírez, “El Nigromante”, fora raspada com facas por estudantes.