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CARTA A ELLA E BERTRAM D. WOLFE

Quinta-feira, 18 de outubro de 1934

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Ella e Boit,

Há tanto tempo que não lhes escrevo, que já nem sei por onde começar esta carta. Mas não pretendo dar-lhes longos e entediante­s pretextos e contar-lhes histórias compridas sobre a razão por que é que não lhes escrevi durante tantos meses. Vocês estão a par de tudo quanto passei e creio que compreende­m a minha situação, embora não entre em detalhes. Nunca sofri tanto e jamais julguei ser capaz de resistir a tantas provações. Não fazem ideia do estado em que me encontro e sei que demorarei anos a sair desta embrulhada que tenho na cabeça. No início, pensei que ainda havia remédio, pois julgava que o que aconteceu seria de pouca dura e importânci­a, mas cada vez estou mais convencida de que só me estava a iludir. É coisa séria, cujas consequênc­ias são igualmente sérias, como devem calcular.

Em primeiro lugar, é uma mágoa dupla, se assim se pode dizer. Vocês, mais do que ninguém, sabem o que o Diego significa para mim em todos os sentidos e, por outro lado, ela era a minha irmã preferida, que eu sempre tentei ajudar como pude. Mas a situação complicou-se terrivelme­nte e continua pior a cada dia que passa. Eu gostava de poder contar-lhes tudo, para lhes dar uma ideia clara do que isto represento­u para mim. Mas acho que os ia aborrecer e, por essa razão, limitar-me-ei a falar de mim. Imaginem que entrava em pormenores sobre o assunto: deitavam a correr espavorido­s sem sequer terminar de ler a carta. Além do mais, não quero que pensem que sou uma alcoviteir­a e que gosto de encher as cartas de mexericos inúteis. Porém, há muito tempo que ando para lhes escrever a contar o que se anda a passar, sabendo que ninguém melhor que vocês compreende­rá porque é que sinto necessidad­e de lhes falar disto e porque é que estou a sofrer tanto.

Gosto demasiado de vocês e tenho suficiente confiança para não lhes ocultar a maior mágoa da minha vida, e é por isso que, agora, me decidi a contar-lhes tudo.

Claro que se trata de mais do que de uma mera estupidez sentimenta­l da minha parte e afeta toda a minha vida. É por isso que me sinto tão perdida, sem nada que me possa valer e ajudar-me a reagir de uma maneira inteligent­e. Aqui, no México, não tenho ninguém, já só me restavam o Diego e as pessoas cá de casa, mas estas encaram o assunto à boa maneira católica e sinto-me tão longe das conclusões que extraem disto tudo que não posso contar com elas para nada. O meu pai é uma pessoa magnífica, mas passa dia e noite a ler Schopenhau­er e não me ajuda nada de nada.

Estive tão doente, que só quando saí do hospital é que consegui pintar qualquer coisa, mas a contragost­o, e, por isso, nem o trabalho me dá seja o que for. Amigos, não os tenho aqui. Estou completame­nte só. Dantes, passava os dias a gritar de raiva de mim própria, e também de dor; agora, já nem sequer consigo chorar porque compreendi que é estúpido e inútil. Confiei em que o Diego acabaria por mudar, mas constato e compreendo que é néscio esperar isso, porque devia ter percebido desde o início que não serei eu a fazê-lo viver de uma determinad­a maneira, e muito menos tratando-se de um assunto semelhante. Agora que está a trabalhar, continua na mesma, e toda a minha esperança era que o trabalho o fizesse esquecer tudo, mas pelo contrário, nada pode desviá-lo daquilo em que acredita e considera bem-feito.

Ao fim e ao cabo, quaisquer tentativas da minha parte são ridículas e imbecis. Ele quer completa liberdade. Liberdade esta que sempre teve, e continuari­a a ter, se se tivesse portado comigo de maneira sincera e honrada. O que mais me entristece é que já nem sequer somos amigos. Passa a vida a contar-me mentiras e oculta-me todos os pormenores da vida dele como se eu fosse a sua pior inimiga.

Vivemos uma vida falsa e repleta de parvoíces que já não consigo suportar. Para ele, em primeiro lugar está o trabalho, que o salva de muitas coisas, e, depois,

todas as aventuras dele, que o divertem. As pessoas procuram-no a ele, e não a mim. Sei que, como sempre, está cheio de aborrecime­ntos e de preocupaçõ­es por causa do trabalho, mas, apesar de tudo, vive uma vida completa sem o estúpido vazio da minha. Eu não tenho nada porque não o tenho a ele. Nunca pensei que o Diego, para mim, significas­se tudo, e que eu, sem ele, era lixo.

Acreditava estar a fazer o possível por ajudá-lo a viver e que seria capaz de tratar da minha própria vida sozinha, sem complicaçõ­es de espécie alguma. Mas agora vejo que não tenho nada mais que qualquer rapariga dececionad­a, abandonada pelo marido. Não valho nada, não sei fazer nada, não posso bastar-me a mim própria. A minha situação afigura-se-me tão ridícula e idiota, que nem imaginam como me detesto e me odeio. Perdi o meu melhor tempo a viver às custas de um homem e limitei-me a servi-lo e a ajudá-lo da melhor maneira que pude.

Nunca pensei em mim e, seis anos depois, a resposta que me dá é que a fidelidade é uma virtude burguesa e que apenas existe para explorar e tirar partido económico.

Acreditem que nunca pensei na coisa desta maneira, e podem pensar que fui uma estúpida, mas fui sinceramen­te estúpida. Imagino que, ou assim espero, irei reagindo pouco a pouco, e que tentarei refazer a minha vida, interessan­do-me por qualquer coisa que me ajude a sair disto da maneira mais inteligent­e. Cheguei a pensar em ir viver para Nova Iorque, para o vosso lado, mas não tenho dinheiro, e agora acho que o melhor é pôr-me a estudar qualquer coisa e arranjar um trabalho por aqui até reunir condições para poder sair do México.

Quanto ao dinheiro que o Diego me deu, comprei uma casa na Cidade do México que me saiu muito barata, porque não quis voltar para San Ángel, onde sofri tanto que nem imaginam. Agora, vivo na Rua Insurgente­s, 432 (escrevam-me para esta morada). De vez em quando, o Diego aparece cá para me visitar, mas não temos nada de que falar nem qualquer tipo de ligação um com o outro. Nunca me conta o que anda a fazer e não lhe interessa minimament­e aquilo que eu faço ou penso. Quando as coisas estão neste pé, mais vale cortá-las de raiz, e acho que esta vai ser mesmo a solução para ele, pois a mim custar-me-á outra dose de sofrimento, ou ainda maior, do que aquela que já tive e tenho, que é indescrití­vel. Mas, do ponto de vista dele, creio que será melhor assim, porque deixarei de ser um fardo, como o foram as outras todas, e, por outro lado, não admitirei transforma­r-me numa mera questão de dinheiro para ele. Assim, esta é a minha vida por enquanto. Não sei o que farei amanhã, mas sinto que não tenho outra hipótese a não ser separarme do Diego, pois não vejo nenhuma razão para vivermos juntos, sendo eu um problema para ele e privando-o da completa liberdade que ele exige. Também não quero dar-lhe a vida que a Lupe lhe deu recorrendo a um processo judicial atrás de outro e, por isso, deixá-lo-ei viver, e eu, com todos os meus preconceit­os burgueses sobre a fidelidade, etc., etc., irei tocar a minha música para outra freguesia. Não acham que é o melhor a fazer?

Peço-lhes que não contem nada disto a Malu. Se ela já souber, porque é do domínio público e notório por causa do Diego, deixem-na falar à vontade. Prefiro que ninguém saiba de nada e que imagine o que quiser.

Não sei o que é que vocês pensarão de mim, mas falei-lhes de tudo isto com o coração nas mãos.

Sei que não tomarão as minhas dores, ou as do Diego, e que compreende­rão porque é que estou a sofrer tanto. Também sei que, se tiverem um tempinho livre, me escreverão, não é? As vossas cartas servir-me-ão de grande consolo e eu sentir-me-ei menos sozinha do que me sinto agora.

Mando-lhes mil beijinhos e, por favor, não me tomem por uma sentimenta­lona insuportáv­el e idiota, pois sabem como gosto do Diego e o que representa para mim perdê-lo.

Frieda

(Nota: O motivo do sofrimento de Frida era a relação íntima entre Diego Rivera e Cristina Kahlo.)

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