Chavela Vargas
A dama do poncho vermelho
CANTAVA ENQUANTO FRIDA PINTAVA. SÓ DEPOIS DOS 80 ANOS ACEITOU FALAR SOBRE A SUA RELAÇÃO LÉSBICA COM A PINTORA
Frida Kahlo foi apenas uma das muitas mulheres com quem a cantora Chavela Vargas se envolveu, mas o intenso romance vivido na Casa Azul definiu-a quase tanto como a voz áspera e moldada para cantar a dor. Já tinha passado dos 80 anos quando revelou publicamente a homossexualidade – que em privado não escondia – na autobiografia Y si quieres saber de mi passado, editada em 2002, e também numa entrevista sobre Frida, o filme em que aparece a interpretar La Llorona, uma canção tradicional mexicana dedicada à pintora.
A relação entre as duas mulheres iniciou-se por volta de 1940, quando Chavela tinha 21 anos e Frida, mais velha, tinha 33. Na Casa Azul, que o casal Kahlo-rivera habitava em Coyoacán, um bairro boémio da Cidade do México, reuniam-se artistas e intelectuais ligados ao movimento comunista, como o casal Trotski no exílio. Num desses convívios, em que todos cantavam, dançavam e bebiam tequila, Chavela conheceu Frida: “Foi um deslumbramento ver-lhe o rosto, os olhos. Pensei que não era um ser deste mundo. As suas sobrancelhas juntas eram como uma andorinha em pleno voo. Sem ainda ter em mim a maturidade de mulher, pois era muito jovem, tive a sensação de que poderia amar aquele ser com o amor mais dedicado do mundo, o amor mais unido do mundo”, contou Vargas, anos depois.
A cantora chegou a mudar-se para a Casa Azul e viveu durante cerca de um ano com Frida e Diego, que tinham uma relação aberta. Enquanto Frida pintava os seus quadros, Chavela, ainda no início da carreira, cantava para ela. Mas um dia Vargas decidiu partir, por já não suportar dividi-la com o marido: “As minhas palavras possivelmente magoaram-na muito, quando lhe disse que me ia embora e ela me disse: ‘Eu sei. É impossível prender-te à vida de alguém. Não posso atar-te às minhas muletas ou à minha cama. Vai-te embora’, e um dia abri a porta e não voltei.”
A pistola e o coração
Chavela nasceu com o nome de María Isabel Anita Carmen de Jesús Vargas Lizano, a 17 de abril de 1919, em San Joaquín de Flores, na Costa Rica. Ainda muito jovem, com 17 anos, partiu para o México para ser cantora, fugindo dos pais que a escondiam das visitas por causa da sua “estranha” maneira de ser, e de uns tios “que Deus os tenha no inferno”.
No documentário Chavela, de Catherine Gund e Daresha Kyi, exibido em 2017, revela-se que, depois de chegar ao México, a cantora apresentava-se em palco de vestido e de sapatos de salto, mas, para evitar tropeçar, contrariou as convenções e começou a usar o cabelo preso, a vestir calças e a trajar um poncho em tons de vermelho – dizia-se que, por baixo, andava com uma pistola presa à cintura…
Só alcançou a notoriedade depois dos 30 anos, acompanhando o cantor e compositor José Alfredo Jiménez, depois de ter sido “descoberta” quando interpretava rancheras e boleros tradicionais nas cantinas. As suas canções preferidas eram aquelas em que os homens cortejavam e ansiavam pelo amor das mulheres, lamentando tê-las perdido. Cantava as letras com voz masculina, sem alterar os pronomes de género, e dedicava-as às mulheres da assistência.
Nos anos 1950, Chavela conheceu a fama em Acapulco, atuando para os turistas norte-americanos. Cantou na festa do matrimónio da atriz Elizabeth Taylor com o produtor Mike Todd – e acordou “ao lado de Ava Gardner”. A atriz de Hollywood terá sido uma das muitas mulheres que Chavela seduziu, algumas delas casadas com políticos e empresários do México que perseguiram e boicotaram a presença da cantora nos estúdios de gravação.
Depois de lançar o primeiro disco em 1961, Chavela tornou-se muito popular no México, e também na Europa, principalmente em Espanha. As músicas rancheras costumavam ser cantadas pelos mariachis, homens acompanhados por violões, trompetes e outros instrumentos, mas Vargas interpretava-as com uma voz única para “cantar a dor” e tocando apenas um violão. Dela, dizia-se que dedilhava a guitarra e apertava o gatilho com idêntica destreza.
No final dos anos 1970, o alcoolismo, que definiu como uma doença da solidão, obrigou-a a uma pausa de mais de uma década. Durante esse período, parou de beber e conheceu Alicia Pérez Duarte, uma das suas relações mais duradouras, mas as duas separaram-se depois de Alicia acusar Vargas de violência.
Inesperadamente, Chavela voltou a pisar os palcos da Cidade do México em 1990. Aos 71 anos, iniciou uma segunda vida que a fez regressar aos estúdios de gravação e a participar nas bandas sonoras dos filmes de Pedro Almodóvar, por quem nutria um grande afeto e tratava por “esposo”. A amizade com o cineasta espanhol foi crucial para relançar as suas músicas em Espanha e na América Latina, chegando a atuar no Olympia de Paris e no Carnegie Hall. Em 2007, foi distinguida com um Grammy latino pelo conjunto da carreira.
Aos 93 anos, viajou para Espanha para homenagear Federico García Lorca, de quem tinha sido amiga. “Vim despedir-me de Federico, de meus amigos e de Espanha”, disse diante do túmulo do poeta. Hospitalizada por problemas cardíacos e respiratórios, esteve dez dias entre a vida e a morte. Quando recuperou, o governo mexicano assegurou a sua repatriação. “E agora volto”, disse num comunicado, “para morrer no meu próprio país”. A 5 de agosto de 2012, calou-se uma das vozes maiores do México.