Autoimunidade é com elas. A “culpa” é do X?
Fatores genéticos e hormonais podem explicar a maior incidência de doenças autoimunes nas mulheres
Por cada cinco pessoas com doenças autoimunes, apenas uma é do sexo masculino. As evidências científicas sugerem que as hormonas femininas, os cromossomas sexuais e, até, o microbioma colocam as mulheres em desvantagem biológica.
A relação entre a produção de estrogénios e o risco acrescido de respostas autoimunes (e de doenças como lúpus e esclerose múltipla) é reconhecida pela comunidade científica.
Num estudo publicado na revista Science, a imunologista Jayne Danska, da Universidade de Toronto, no Canadá, mostrou que os micróbios existentes no intestino podem influenciar a autoimunidade feminina, que também parece estar associada a menores níveis de testosterona em circulação.
Recentemente, surgiu uma nova teoria que aponta para a existência de uma relação entre as doenças autoimunes e os cromossomas sexuais das mulheres (23.º par). O Xist, um tipo de ARN que só elas produzem e tem a função de desativar um dos cromossomas X, pode baralhar o sistema imunitário. Estes dados foram divulgados pela equipa do geneticista Howard Chang, da universidade norte-americana de Stanford, num artigo publicado em fevereiro, na revista Cell.
No Hemisfério Sul, “as pessoas estão mais expostas a sujidade e a alérgenos, o que coloca desafios ao sistema imunitário, resultando em menos doenças alérgicas e autoimunes”. Embora convivam em ambientes mais desfavorecidos, “não têm a pressão da riqueza, do dinheiro e da qualidade de vida, padrão dos países ocidentalizados”.
A interdependência dos processos que ocorre no cérebro e no sistema imunitário, bem como a relação entre o
“É importante deixar de ter consultas de 15 minutos e obter uma história clínica mais elaborada”
CARLOS CARNEIRO
Coordenador da Consulta de Doenças Autoimunes do Grupo HPA Saúde
microbioma de tecidos e órgãos e uma saúde de ferro são evidências que reúnem consenso na comunidade científica. A investigadora Salomé Pinho, líder do grupo Immunology, Cancer & GlycoMedicine, do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde da Universidade do Porto (i3S), reconhece que “o excesso de higienização, comum em países industrializados, e o menor contacto com o ambiente exterior e agentes patogénicos durante o crescimento podem limitar a modulação positiva do microbioma e do sistema imunitário”.
A CHAVE ESTÁ NOS GLICANOS
A equipa de Salomé Pinho tem-se dedicado ao estudo de como a camada de açúcares, que cobrem a superfície das nossas células, combate agentes patogénicos, regulando o sistema imunitário. Os linfócitos T, originados e desenvolvidos no timo, durante a fase embrionária, e até à adolescência, são cobertos por estes açúcares complexos – glicanos –, que a investigadora compara a “uma floresta” ou, ainda, “a peças fundamentais que fazem a distinção entre o próprio (self) e o não-próprio (non-self)”.
Os patogénios, por seu turno, também são revestidos de açúcares, ainda que menos complexos, podendo confundir o nosso sistema de vigilância imunitária: “Será uma peça minha (glicano) ou de um agente infecioso?”
O grupo do i3S demonstrou que os glicanos regulam a função e atividade dos linfócitos T e influenciam a resposta deles em contextos inflamatórios. As doenças autoimunes acabam por ser “a perda da tolerância imunológica e a incapacidade de distinguir o que é do próprio do que não é”, explica a investigadora do i3S.
Há três anos, e em colaboração com o Centro Hospitalar Universitário de Santo António, o grupo estudou biopsias de rim de doentes com lúpus e descobriu que estes doentes exibiam à superfície do rim uma composição de açúcares (glicanos) similar à dos encontrados à superfície dos microrganismos: “O risco de desenvolver doença renal crónica era maior nos casos que tinham os glicanos alterados.” O estudo foi divulgado na revista médica Arthritis & Rheumatology.
A CAMINHO DE NOVAS TERAPIAS
Numa investigação posterior, publicada na Science Translational Medicine e premiada pela Pfizer, provou-se que esse switch nos glicanos contribuía para exacerbar as respostas inflamatória e autoimune: “Ao reconhecerem essa alteração, os linfócitos T acionam a produção de citocinas, moléculas inflamatórias que perpetuam a resposta autoimune e a doença.”
Descobertos os mecanismos da resposta autorreativa, perfila-se no horizonte um “potencial biomarcador para diagnóstico e prognóstico do lúpus e de doenças autoimunes”. Isto porque foi possível “reprogramar a floresta com suplementação de glicanos e remodelar a paisagem, por forma a ela ser cada vez mais self e menos non-self, abrindo a porta a novas terapias”, adianta Salomé Pinho.
Segue-se o projeto GlycanTrigger. O consórcio europeu, com nove parceiros internacionais (um deles é norte-americano), é coordenado pelo grupo de Salomé Pinho no i3S e tem por meta investigar as alterações no glicoma intestinal que desencadeiam a transição da saúde para a inflamação crónica. A hipótese que está em cima da mesa é esta: “A alteração do glicoma (glicanos à superfície da mucosa intestinal) conduz à disbiose (mudanças na composição e diversidade do microbioma, favoráveis ao crescimento de microrganismos patogénicos), que pode criar peças de “eu” e “não eu” e ativar vias inflamatórias (doenças inflamatórias do intestino).” O projeto começou em janeiro e vai durar seis anos.
QUANTO MAIS CEDO, MELHOR
À consulta de Doenças Autoimunes e Imunodeficiências Primárias do Centro Hospitalar Universitário de Santo António, no Porto, ainda é frequente chegar pessoas que percorreram outras especialidades ou andaram anos sem saber o que tinham. As queixas apresentadas