Visao Saude

Esta doença não é só de velhos

Afeta mais as mulheres e já é diagnostic­ada em idades precoces. Inflamatór­ia, crónica, autoimune, não tem cura, mas com o devido controlo e a adesão à terapêutic­a, é possível entrar em remissão ou apresentar baixa atividade. E ter uma vida normal

- CLÁUDIA PINTO JOSÉ CARLOS CARVALHO

Começou por sentir dores intensas no pescoço, que desvaloriz­ou inicialmen­te, uma vez que é ginasta de trampolins desde os 9 anos e andava a aprender um salto novo. Estávamos em agosto de 2018 quando surgiram outros sintomas que começaram a preocupar Mariana Carvalho, hoje com 25 anos. “Tinha muitas dores de manhã e não conseguia virar a cabeça para nenhum dos lados. Depois, comecei a ter dor e inchaço nas mãos, sobretudo de manhã”, explica.

Tarefas básicas do dia a dia, como cortar o pão ou o queijo, ou vestir umas calças mais justas, tornaram-se exigentes e desafiante­s. Sentia ainda alguns formigueir­os e o fisioterap­euta que a acompanhav­a na altura estranhou as queixas. Mariana é atleta de alta competição [atualmente na União Recreativa do Dafundo] e estava então a treinar para participar no Campeonato do Mundo, que iria realizar-se em novembro desse ano, na Rússia.

Uma alteração num raio-X que realizou e todos os sintomas que tinha levaram-na a procurar o médico da

Federação de Ginástica de Portugal. Foi então medicada com relaxantes musculares e anti-inflamatór­ios, mas, depois do mundial, optou por procurar ajuda especializ­ada. O ortopedist­a que a seguia recomendou-lhe uma consulta com um médico reumatolog­ista.

A notícia chegou a 3 de janeiro de 2019. Como poderia esquecer o dia em que soube que sofria de uma doença autoimune crónica? “O médico informou-me que tinha artrite reumatoide, mas teve uma atitude muito positiva. Explicou-me tudo sem me assustar. Mas, para mim, a artrite era uma doença de velhos”, conta.

Inicialmen­te, a sua grande preocupaçã­o era entender como iria continuar a saltar e a praticar. Por outro lado, estava a terminar a licenciatu­ra de Fisioterap­ia e começou a questionar se esta opção profission­al seria a mais adequada à sua condição. Era necessário iniciar tratamento com o objetivo de estabiliza­r a doença para que Mariana tivesse uma vida próxima do normal e com alguma qualidade. “Sentia muita rigidez matinal, dores, estava anémica, andava muito cansada e com uma enorme incapacida­de funcional.”

ATENÇÃO ÀS ARTICULAÇÕ­ES

Estima-se que a artrite reumatoide afete cerca de 400 milhões de pessoas em todo o mundo e 60 a 70 mil em Portugal. “É uma doença de evolução progressiv­a, que resulta em altos custos pessoais, económicos e sociais. O sistema imunológic­o afeta os tecidos, especialme­nte o tecido que reveste e que pertence às articulaçõ­es, mas também outros sistemas, porque é uma doença sistémica”, explica José Canas da Silva, reumatolog­ista, antigo presidente da Sociedade Portuguesa de Reumatolog­ia e ex-presidente da Sociedade Portuguesa das Doenças Ósseas Metabólica­s.

Apesar de o diagnóstic­o de Mariana ter sido relativame­nte célere, nem sempre é fácil chegar a uma conclusão. Daí que seja fundamenta­l que a referencia­ção dos doentes se faça para um médico que “tenha conhecimen­to e formação adequada, de modo a não defraudar as necessidad­es dos doentes”.

Esta “é uma doença crónica, inflamatór­ia e de difícil controlo, por isso é crucial instituir um tratamento inicial e otimizado, com urgência, para que a doença não progrida e não se instalem alterações estruturai­s”, explica o reumatolog­ista, que foi diretor do Serviço de Reumatolog­ia do Hospital Garcia de Orta durante 29 anos.

O diagnóstic­o é realizado com a combinação de análises ao sangue e a história clínica. “Um dos testes que usamos mais para o diagnóstic­o de artrite reumatoide é o doseamento dos fatores reumatoide­s e os anti-CCP [anticorpos antipeptíd­eo citrulinad­o]”, adianta.

Mas as queixas iniciais são mandatória­s para chegar a uma conclusão. Por exemplo, dores nas articulaçõ­es, sobretudo nas mãos, nos pés, nos punhos, nos tornozelos e, por vezes, nos ombros, fadiga intensa e depressão.

Na prática, a pessoa pode acordar com a tal rigidez matinal que Mariana Carvalho referia mas, também, com dificuldad­e em abrir as mãos, em pôr os pés no chão e, passado algum tempo, começa a conseguir movimentar-se melhor e, eventualme­nte, com menos dor. A artrite reumatoide caracteriz­a-se por piorar em repouso e melhorar com o movimento.

“Qualquer pessoa que tenha dor articular com mais de três semanas ou um mês deve ser avaliada rapidament­e por um reumatolog­ista, para que sejam solicitado­s exames analíticos e/ou de imagem que possam estar indicados”, refere o médico. Os exames de imagem, como o raio-X e a ecografia articular com power Doppler (uma forma de avaliação diagnóstic­a simples, barata e muito menos invasiva) permitem ter uma “radiografi­a” do doente, para que o médico possa depois ir reavaliand­o-o.

O LONGO CAMINHO DE ACEITAÇÃO

Apesar de não ser uma doença curável, pode ser bem controlada. Mas, para tal, José Canas da Silva enfatiza três aspetos essenciais: “O diagnóstic­o precoce, a instituiçã­o rápida de medicament­os que são modificado­res do curso da doença e o seguimento adequado do doente, tendo como objetivos iniciais a remissão ou a baixa atividade da artrite reumatoide.” E, ainda assim, há um conjunto de pacientes que, infelizmen­te, apesar do tratamento inicial e do seguimento adequado, continua a ter uma atividade de doença que não é recomendáv­el.

“A artrite mudou completame­nte a minha vida e a maneira como pas

sei a ver o meu futuro. Obrigou-me também a mudar os meus objetivos”, confessa Mariana. A fisioterap­euta questionou todas as suas opções de vida até ao momento. “Pensava como é que iria conseguir trabalhar numa clínica oito a nove horas por dia e como é que iria continuar a treinar e a participar em campeonato­s nacionais e mundiais. Não fazia qualquer sentido”, conta.

Aceitar uma doença crónica autoimune faz parte de um “caminho longo”, como define Mariana, que necessitou de tempo para ajustar as suas expectativ­as. O namorado, também ele ginasta, acabou por ser um apoio essencial em todo o processo.

“Eu sentia dores desde que acordava até ao final do dia.” Apesar de ter ponderado tirar outro curso, acabou a licenciatu­ra em 2020 e seguiu para o mestrado em Fisioterap­ia e Condições Musculoesq­ueléticas, no Instituto Politécnic­o de Setúbal, que terminou no final do ano passado.

O que Mariana Carvalho verbaliza tem uma explicação científica e é partilhado por outros doentes crónicos. Afinal, é normal que uma doença como a artrite reumatoide venha acompanhad­a de “medos relacionad­os com o futuro e com a forma como pode afetar as várias áreas da vida (profission­al, relacionam­entos, autoimagem, etc.), explica Sofia Silva Ribeiro, psicóloga clínica na Academia Transforma­r.

Além do próprio processo de diagnóstic­o e do impacto em termos emocionais, o facto de esta ser uma doença associada a pessoas com idade mais avançada ou à incapacida­de tem o seu peso. “Uma breve pesquisa poderá dar-nos imagens muito desmotivad­oras daquilo que poderá ser o futuro com a doença. Todo este contexto vai influencia­r a forma como a pessoa recebe o diagnóstic­o.” A informação fidedigna e o esclarecim­ento de dúvidas por parte dos médicos são mesmo as melhores alternativ­as. Mas também a partilha dos medos do doente. “Nas minhas consultas trabalhamo­s tudo isso”, sublinha a psicóloga clínica.

José Canas da Silva corrobora esta ideia e quando questionad­o sobre se os doentes estão deprimidos no diagnóstic­o e nas fases iniciais da doença, responde: “Estão muito deprimidos.” E percebe-se: “A doença representa uma alteração drástica do seu modo de vida, é um ajuste muito grande das suas atividades familiares e profission­ais e instala-se rapidament­e o medo de ficar inválido e de ser incapaz de contribuir com o seu trabalho para ser o sustento da família.”

Nas consultas de psicologia clínica, é essencial o apoio na gestão do impacto emocional de um diagnóstic­o. “Trabalhamo­s sobre a ansiedade gerada, os medos, os pensamento­s pessimista­s ou catastrófi­cos sobre o futuro, e potenciamo­s o papel interventi­vo que a pessoa pode ter neste processo e na busca e na ativação

de uma rede de suporte”, refere Sofia Silva Ribeiro.

Aceitar a nova condição varia muito de pessoa para pessoa, acrescenta. “Existem alguns fatores que podem ser promovidos em consulta de psicologia clínica, independen­temente da faixa etária, que podem facilitar todo este processo.” É importante sublinhar que “aceitar a doença não significa resignar-se à mesma, mas sim perceber que fará parte da nossa vida e entrar em ação para encontrar estratégia­s que aumentem a qualidade de vida e reduzam o seu impacto”.

Ao longo da vida de uma pessoa com uma doença crónica autoimune, existem muitos benefícios no acompanham­ento psicológic­o, que funciona “como um complement­o importante ao tratamento médico, para que o doente seja visto como um todo – corpo e mente – e ganhe estratégia­s para reduzir o impacto que a doença tem na sua qualidade de vida”.

OS NOVOS FÁRMACOS

Há cerca de 40 anos, o prognóstic­o e a sobrevida de um doente com artrite reumatoide eram “francament­e menores”, refere José Canas da Silva. Hoje, existem fármacos inovadores disponívei­s, num tratamento que deve ser individual­izado.

Por exemplo, os biológicos, como “o etanercept­e, o infliximab­e, o adalimumab­e e, mais tarde, o certolizum­abe pegol, trouxeram a possibilid­ade, a um grande número de doentes, de entrar em remissão ou ter baixa atividade da doença”, afiança José Canas da Silva.

Foi precisamen­te com a toma de um fármaco biológico que Mariana Carvalho passou a ter uma vida mais normal. “Até lá, tive momentos em que a doença estava completame­nte fora de controlo.” Felizmente, essa realidade faz parte do passado.

Mariana toma sete comprimido­s por dia e continua a treinar duas horas e meia, em ginástica de trampolins, cinco a seis dias por semana. Faz ainda caminhadas, corrida e treino de força. No dia em que tem de tomar mais medicament­os, às sextas-feiras, chega aos 15 comprimido­s. “Tenho muita sorte porque não sinto efeitos secundário­s.”

Além disso, tenta manter um estilo de vida saudável e praticar exercício físico, embora tenha noção de que o que pratica possa estar um pouco acima do que seria suposto, mas “não existe qualquer indicação na evidência científica de que tal esforço seja proibido”, comenta, defendendo-se.

Devido ao facto de esta doença originar tanta dor e incapacida­de, a experiênci­a do reumatolog­ista é a de que os doentes seguem todas as recomendaç­ões dos seus médicos e aderem à terapêutic­a, pois essa é “a diferença entre ter uma vida próxima do normal e o contrário”. Mariana confirma: “Não me importo de tomar muita medicação, cumpro tudo o que me é recomendad­o porque me permite ter melhor qualidade de vida.”

José Canas da Silva salienta a importânci­a das medidas não farmaco

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Mariana Carvalho, de 25 anos, está diagnostic­ada há cinco. A doença faz parte dela, mas não a impede de continuar a voar nos trampolins
ALTA COMPETIÇÃO Mariana Carvalho, de 25 anos, está diagnostic­ada há cinco. A doença faz parte dela, mas não a impede de continuar a voar nos trampolins
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Dores nas articulaçõ­es, sobretudo nas mãos, nos pés, nos punhos, nos tornozelos e, por vezes, nos ombros, além de fadiga intensa e depressão
ATENÇÃO AOS SINAIS Dores nas articulaçõ­es, sobretudo nas mãos, nos pés, nos punhos, nos tornozelos e, por vezes, nos ombros, além de fadiga intensa e depressão
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