Esta doença não é só de velhos
Afeta mais as mulheres e já é diagnosticada em idades precoces. Inflamatória, crónica, autoimune, não tem cura, mas com o devido controlo e a adesão à terapêutica, é possível entrar em remissão ou apresentar baixa atividade. E ter uma vida normal
Começou por sentir dores intensas no pescoço, que desvalorizou inicialmente, uma vez que é ginasta de trampolins desde os 9 anos e andava a aprender um salto novo. Estávamos em agosto de 2018 quando surgiram outros sintomas que começaram a preocupar Mariana Carvalho, hoje com 25 anos. “Tinha muitas dores de manhã e não conseguia virar a cabeça para nenhum dos lados. Depois, comecei a ter dor e inchaço nas mãos, sobretudo de manhã”, explica.
Tarefas básicas do dia a dia, como cortar o pão ou o queijo, ou vestir umas calças mais justas, tornaram-se exigentes e desafiantes. Sentia ainda alguns formigueiros e o fisioterapeuta que a acompanhava na altura estranhou as queixas. Mariana é atleta de alta competição [atualmente na União Recreativa do Dafundo] e estava então a treinar para participar no Campeonato do Mundo, que iria realizar-se em novembro desse ano, na Rússia.
Uma alteração num raio-X que realizou e todos os sintomas que tinha levaram-na a procurar o médico da
Federação de Ginástica de Portugal. Foi então medicada com relaxantes musculares e anti-inflamatórios, mas, depois do mundial, optou por procurar ajuda especializada. O ortopedista que a seguia recomendou-lhe uma consulta com um médico reumatologista.
A notícia chegou a 3 de janeiro de 2019. Como poderia esquecer o dia em que soube que sofria de uma doença autoimune crónica? “O médico informou-me que tinha artrite reumatoide, mas teve uma atitude muito positiva. Explicou-me tudo sem me assustar. Mas, para mim, a artrite era uma doença de velhos”, conta.
Inicialmente, a sua grande preocupação era entender como iria continuar a saltar e a praticar. Por outro lado, estava a terminar a licenciatura de Fisioterapia e começou a questionar se esta opção profissional seria a mais adequada à sua condição. Era necessário iniciar tratamento com o objetivo de estabilizar a doença para que Mariana tivesse uma vida próxima do normal e com alguma qualidade. “Sentia muita rigidez matinal, dores, estava anémica, andava muito cansada e com uma enorme incapacidade funcional.”
ATENÇÃO ÀS ARTICULAÇÕES
Estima-se que a artrite reumatoide afete cerca de 400 milhões de pessoas em todo o mundo e 60 a 70 mil em Portugal. “É uma doença de evolução progressiva, que resulta em altos custos pessoais, económicos e sociais. O sistema imunológico afeta os tecidos, especialmente o tecido que reveste e que pertence às articulações, mas também outros sistemas, porque é uma doença sistémica”, explica José Canas da Silva, reumatologista, antigo presidente da Sociedade Portuguesa de Reumatologia e ex-presidente da Sociedade Portuguesa das Doenças Ósseas Metabólicas.
Apesar de o diagnóstico de Mariana ter sido relativamente célere, nem sempre é fácil chegar a uma conclusão. Daí que seja fundamental que a referenciação dos doentes se faça para um médico que “tenha conhecimento e formação adequada, de modo a não defraudar as necessidades dos doentes”.
Esta “é uma doença crónica, inflamatória e de difícil controlo, por isso é crucial instituir um tratamento inicial e otimizado, com urgência, para que a doença não progrida e não se instalem alterações estruturais”, explica o reumatologista, que foi diretor do Serviço de Reumatologia do Hospital Garcia de Orta durante 29 anos.
O diagnóstico é realizado com a combinação de análises ao sangue e a história clínica. “Um dos testes que usamos mais para o diagnóstico de artrite reumatoide é o doseamento dos fatores reumatoides e os anti-CCP [anticorpos antipeptídeo citrulinado]”, adianta.
Mas as queixas iniciais são mandatórias para chegar a uma conclusão. Por exemplo, dores nas articulações, sobretudo nas mãos, nos pés, nos punhos, nos tornozelos e, por vezes, nos ombros, fadiga intensa e depressão.
Na prática, a pessoa pode acordar com a tal rigidez matinal que Mariana Carvalho referia mas, também, com dificuldade em abrir as mãos, em pôr os pés no chão e, passado algum tempo, começa a conseguir movimentar-se melhor e, eventualmente, com menos dor. A artrite reumatoide caracteriza-se por piorar em repouso e melhorar com o movimento.
“Qualquer pessoa que tenha dor articular com mais de três semanas ou um mês deve ser avaliada rapidamente por um reumatologista, para que sejam solicitados exames analíticos e/ou de imagem que possam estar indicados”, refere o médico. Os exames de imagem, como o raio-X e a ecografia articular com power Doppler (uma forma de avaliação diagnóstica simples, barata e muito menos invasiva) permitem ter uma “radiografia” do doente, para que o médico possa depois ir reavaliando-o.
O LONGO CAMINHO DE ACEITAÇÃO
Apesar de não ser uma doença curável, pode ser bem controlada. Mas, para tal, José Canas da Silva enfatiza três aspetos essenciais: “O diagnóstico precoce, a instituição rápida de medicamentos que são modificadores do curso da doença e o seguimento adequado do doente, tendo como objetivos iniciais a remissão ou a baixa atividade da artrite reumatoide.” E, ainda assim, há um conjunto de pacientes que, infelizmente, apesar do tratamento inicial e do seguimento adequado, continua a ter uma atividade de doença que não é recomendável.
“A artrite mudou completamente a minha vida e a maneira como pas
sei a ver o meu futuro. Obrigou-me também a mudar os meus objetivos”, confessa Mariana. A fisioterapeuta questionou todas as suas opções de vida até ao momento. “Pensava como é que iria conseguir trabalhar numa clínica oito a nove horas por dia e como é que iria continuar a treinar e a participar em campeonatos nacionais e mundiais. Não fazia qualquer sentido”, conta.
Aceitar uma doença crónica autoimune faz parte de um “caminho longo”, como define Mariana, que necessitou de tempo para ajustar as suas expectativas. O namorado, também ele ginasta, acabou por ser um apoio essencial em todo o processo.
“Eu sentia dores desde que acordava até ao final do dia.” Apesar de ter ponderado tirar outro curso, acabou a licenciatura em 2020 e seguiu para o mestrado em Fisioterapia e Condições Musculoesqueléticas, no Instituto Politécnico de Setúbal, que terminou no final do ano passado.
O que Mariana Carvalho verbaliza tem uma explicação científica e é partilhado por outros doentes crónicos. Afinal, é normal que uma doença como a artrite reumatoide venha acompanhada de “medos relacionados com o futuro e com a forma como pode afetar as várias áreas da vida (profissional, relacionamentos, autoimagem, etc.), explica Sofia Silva Ribeiro, psicóloga clínica na Academia Transformar.
Além do próprio processo de diagnóstico e do impacto em termos emocionais, o facto de esta ser uma doença associada a pessoas com idade mais avançada ou à incapacidade tem o seu peso. “Uma breve pesquisa poderá dar-nos imagens muito desmotivadoras daquilo que poderá ser o futuro com a doença. Todo este contexto vai influenciar a forma como a pessoa recebe o diagnóstico.” A informação fidedigna e o esclarecimento de dúvidas por parte dos médicos são mesmo as melhores alternativas. Mas também a partilha dos medos do doente. “Nas minhas consultas trabalhamos tudo isso”, sublinha a psicóloga clínica.
José Canas da Silva corrobora esta ideia e quando questionado sobre se os doentes estão deprimidos no diagnóstico e nas fases iniciais da doença, responde: “Estão muito deprimidos.” E percebe-se: “A doença representa uma alteração drástica do seu modo de vida, é um ajuste muito grande das suas atividades familiares e profissionais e instala-se rapidamente o medo de ficar inválido e de ser incapaz de contribuir com o seu trabalho para ser o sustento da família.”
Nas consultas de psicologia clínica, é essencial o apoio na gestão do impacto emocional de um diagnóstico. “Trabalhamos sobre a ansiedade gerada, os medos, os pensamentos pessimistas ou catastróficos sobre o futuro, e potenciamos o papel interventivo que a pessoa pode ter neste processo e na busca e na ativação
de uma rede de suporte”, refere Sofia Silva Ribeiro.
Aceitar a nova condição varia muito de pessoa para pessoa, acrescenta. “Existem alguns fatores que podem ser promovidos em consulta de psicologia clínica, independentemente da faixa etária, que podem facilitar todo este processo.” É importante sublinhar que “aceitar a doença não significa resignar-se à mesma, mas sim perceber que fará parte da nossa vida e entrar em ação para encontrar estratégias que aumentem a qualidade de vida e reduzam o seu impacto”.
Ao longo da vida de uma pessoa com uma doença crónica autoimune, existem muitos benefícios no acompanhamento psicológico, que funciona “como um complemento importante ao tratamento médico, para que o doente seja visto como um todo – corpo e mente – e ganhe estratégias para reduzir o impacto que a doença tem na sua qualidade de vida”.
OS NOVOS FÁRMACOS
Há cerca de 40 anos, o prognóstico e a sobrevida de um doente com artrite reumatoide eram “francamente menores”, refere José Canas da Silva. Hoje, existem fármacos inovadores disponíveis, num tratamento que deve ser individualizado.
Por exemplo, os biológicos, como “o etanercepte, o infliximabe, o adalimumabe e, mais tarde, o certolizumabe pegol, trouxeram a possibilidade, a um grande número de doentes, de entrar em remissão ou ter baixa atividade da doença”, afiança José Canas da Silva.
Foi precisamente com a toma de um fármaco biológico que Mariana Carvalho passou a ter uma vida mais normal. “Até lá, tive momentos em que a doença estava completamente fora de controlo.” Felizmente, essa realidade faz parte do passado.
Mariana toma sete comprimidos por dia e continua a treinar duas horas e meia, em ginástica de trampolins, cinco a seis dias por semana. Faz ainda caminhadas, corrida e treino de força. No dia em que tem de tomar mais medicamentos, às sextas-feiras, chega aos 15 comprimidos. “Tenho muita sorte porque não sinto efeitos secundários.”
Além disso, tenta manter um estilo de vida saudável e praticar exercício físico, embora tenha noção de que o que pratica possa estar um pouco acima do que seria suposto, mas “não existe qualquer indicação na evidência científica de que tal esforço seja proibido”, comenta, defendendo-se.
Devido ao facto de esta doença originar tanta dor e incapacidade, a experiência do reumatologista é a de que os doentes seguem todas as recomendações dos seus médicos e aderem à terapêutica, pois essa é “a diferença entre ter uma vida próxima do normal e o contrário”. Mariana confirma: “Não me importo de tomar muita medicação, cumpro tudo o que me é recomendado porque me permite ter melhor qualidade de vida.”
José Canas da Silva salienta a importância das medidas não farmaco