As duas faces da borboleta
A tiroidite de Hashimoto e a doença de Graves são as duas doenças autoimunes na glândula localizada no pescoço e que tem funções importantes em vários órgãos, como o coração, o intestino ou a pele
Tal como em outras doenças autoimunes, as doenças da tiroide – a glândula em forma de borboleta – são mais frequentes nas mulheres. No entanto, também afetam homens. É o caso de Frederico Rodrigues, de 37 anos, com diagnóstico de hipotiroidismo há cerca de quatro meses. O sinal de alerta foi uma queixa de cansaço extremo, ao qual não associava um motivo. “Além do stresse resultante do trabalho e da correria habitual do dia a dia, este cansaço era intenso e inexplicável”, explica o diretor de Recursos Humanos. Em paralelo, sentia algumas flutuações do humor. “O ritmo muito acelerado em que vivemos, entre filhos, trabalho, emails e telefonemas a toda a hora poderiam justificar estes sinais”, explica.
Estas queixas arrastaram-se durante anos. Frederico chegou a ser tratado para um burnout numa fase que coincidiu com um grande pico de trabalho. Foi medicado e chegou a ficar de baixa. Mais recentemente, numa consulta de rotina, foram-lhe pedidas análises ao sangue com marcadores da tiroide incluídos. “Quando vieram os resultados, os valores estavam muito alterados. Depois, fui fazer uma contra-análise, fiz uma ecografia da tiroide e procurei uma endocrinologista.”
Esta era uma desconfiança da médica de família e Frederico não ficou surpreendido com o diagnóstico. A doença não era desconhecida, pois a irmã, dez anos mais velha, já havia recebido o mesmo veredito há algum tempo.
Sabe-se que as doenças da tiroide têm uma grande predisposição genética.
O diagnóstico, desta vez, foi simples, só pecou por muito tardio, o que é uma das características das doenças autoimunes da tiroide. “O aparecimento de hipotiroidismo por tiroidite de Hashimoto é insidioso e manifesta-se por cansaço, frio, falta de força, sonolência, queda de cabelo, aumento de peso [ainda que o doente não tenha alterado os hábitos alimentares] e alguma tendência para a depressão”, explica Isabel Manita, coordenadora do Serviço de Endocrinologia da Clínica CUF Almada e do Grupo de Estudos da Tiroide, na Sociedade Portuguesa de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo (SPEDM). Com a rotina diária acelerada, o doente pode desvalorizar tais sintomas.
DO DIAGNÓSTICO AO TRATAMENTO
É relativamente fácil diagnosticar as doenças da tiroide. Mas, para tal, é preciso associar as queixas, algumas vezes prolongadas no tempo, a estas patologias.
Com base na avaliação analítica, a pessoa pode ser diagnosticada com hipertiroidismo ou hipotiroidismo. No primeiro caso, os anticorpos “são ativadores e fazem com que a tiroide produza mais hormona. O que costumo dizer aos doentes é que um carro, em vez de andar a 80 quilómetros/hora, vai sempre a 200”, explica Isabel Manita.
Ao contrário do hipotiroidismo, que aparece gradualmente e, por isso, o diagnóstico é mais tardio, no hipertiroidismo as pessoas têm sintomas muito limitativos, como as palpitações, as insónias, os tremores, a ansiedade e a perda muito rápida de peso. “Podem perder dez quilos em três semanas, sem razão aparente”, defende a endocrinologista. Outros sintomas associados ao hipertiroidismo são as alterações oculares expressivas e a doença de Graves ocular (o olho fica fora da órbita).
Ambas as doenças – hipotiroidismo e hipertiroidismo – são crónicas. “Nos casos de tiroidite de Hashimoto com hipotiroidismo, quando os pacientes perguntam até quando vão tomar medicação, respondo: ‘Pelo menos, até aos 120 anos’, para que percebam que esta será uma medicação para toda a vida.” Habitualmente, começa-se com um fármaco que substitui a hormona da tiroide, com doses mais baixas, que vão sendo ajustadas de acordo com as necessidades, de forma gradual. “A medicação vai permitir substituir a função perdida desta hormona.”
No caso do hipertiroidismo por doença de Graves, o tratamento é mais específico. “Cerca de 30% dos doentes podem entrar em remissão se fizerem tudo como recomendado. Os outros 70% podem reativar perante uma nova situação de stresse.” É habitual os médicos questionarem se a pessoa passou por uma situação de divórcio, morte de alguém próximo, perda de emprego ou uma situação-limite na sua vida.
Outra forma de tratamento é o iodo radioativo, que não está
recomendado em doentes com doença ocular. Por último, “quando se está perante um hipertiroidismo muito grave e com bócios muito grandes, que não respondem à terapêutica médica, pode optar-se pela cirurgia, para remoção total da glândula da tiroide”.
VOLTAR A TER QUALIDADE DE VIDA
A adesão à terapêutica é relativamente fácil, explica Isabel Manita. Por norma, adianta a endocrinologista, os doentes com hipotiroidismo estavam deprimidos antes de iniciarem a terapêutica e, “como passaram a sentir-se melhor, levam as recomendações médicas muito a sério”. Existem doentes em que se prescreve uma dose terapêutica de verão e uma dose de inverno, necessitando de uma avaliação semestral.
“No hipertiroidismo, numa fase inicial, a doença é muito aborrecida, com sintomas muito intensos e limitativos, mas, quando estabiliza, as pessoas fazem uma vida normal.” Porém, a partir do momento em que um doente entra em remissão, é feita uma reavaliação após quatro meses e, se ele assim continuar, passa a semestral. “Mantendo-se tudo estável, podemos fazer uma vigilância anual, mas se os doentes se aperceberem de que estão com sintomas, como perda de peso repentina, palpitações ou tremores, podem antecipar a consulta.”
Frederico Rodrigues brinca e diz que a medicação surgiu na sua vida como que por magia. “Os sintomas desapareceram completamente e achei estranho o facto de sentir melhorias muito rápidas e imediatas”, partilha.
O cansaço de outrora já faz parte do passado, não teve qualquer efeito secundário da medicação e a adaptação ao plano terapêutico, prescrito pela médica endocrinologista, “foi muito tranquila”. Confessa que a atitude otimista da especialista o ajudou a interiorizar a ideia de que tem uma doença autoimune e crónica. “Sei que vou viver com esta doença para o resto da vida, mas a médica desmistificou de imediato o assunto, disse-me que havia tratamento e que eu iria notar logo a diferença, depois de começar a medicação. E, de facto, foi o que aconteceu”, assinala. Um dos maiores ganhos que teve com a terapêutica foi “a maior capacidade mental e de desenvolvimento do trabalho”, remata.
“O hipertiroidismo é como um carro que, em vez de andar a 80 quilómetros/ hora, vai sempre a 200”
ISABEL MANITA
Endocrinologista
Amedula óssea é a nossa “fábrica de sangue”, como lhe chama Eduardo Espada, hematologista no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Tem como função produzir as células sanguíneas: glóbulos brancos, glóbulos vermelhos e plaquetas. Estas células não estão imunes a anticorpos que alteram o seu funcionamento. As três doenças autoimunes do sangue mais conhecidas, embora sendo raras, são a trombocitopenia imune primária, a anemia hemolítica autoimune e a anemia aplásica. Em cada uma delas há uma destruição de células do sangue, mas vamos por partes.
1 TROMBOCITOPENIA IMUNE PRIMÁRIA
Vulgarmente conhecida por PTI, devido ao seu nome anterior (púrpura trombocitopénica idiopática), é uma doença “caracterizada pela destruição das plaquetas”, explica Eduardo Espada, que são as células responsáveis pelas primeiras fases da coagulação sanguínea. Refira-se que as plaquetas, células produzidas na medula óssea, também designadas por trombócitos, estão por toda a corrente sanguínea. Cada um de nós tem entre 150 mil e 450 mil plaquetas por microlitro de sangue. Quando nos cortamos e sangramos, as plaquetas são as primeiras células do processo que envolve a coagulação a chegarem ao sítio da lesão, ajudando na cicatrização.
Quando há uma baixa contagem de plaquetas (trombócitos), diz-se que o doente tem uma trombocitopenia. “Não se sabe a causa da PTI. Acontecem entre 200 e 400 casos anualmente”, nota o especialista. Como todas as outras doenças autoimunes, as mulheres são as mais afetadas.
O facto de haver uma baixa contagem de plaquetas não quer dizer que o doente esteja em risco. “Funcionamos bem com plaquetas baixas”, continua o médico. “Uma pessoa com 80 mil plaquetas pode ser operada, por exemplo.” O número começa a ser problemático quando se tem “menos de 30 mil”, aumentando o risco de hemorragia. Se for 10 mil, começam a parecer umas pontinhas vermelhas na pele e há risco “acrescido de hemorragia espontânea”; abaixo dos 5 mil, a hemorragia pode dar-se no sistema nervoso central e sangra-se “mais facilmente do nariz e das gengivas, quando se lavam os dentes”.
As mulheres costumam ter ligeiras variações na contagem de plaquetas durante a menstruação, e as “grávidas têm tendência a ter PTI”. O tratamento é feito com corticoides e pode acontecer mais do que uma vez, embora “não seja muito frequente”, sublinha o hematologista.
2 AS ANEMIAS
No caso da anemia hemolítica autoimune, são os glóbulos vermelhos a serem atingidos. Os autoanticorpos desencadeados erradamente pelo organismo destroem (hemólise) estas células. As causas podem ser “a toma de algum fármaco”, a “existência de uma doença prévia”, como cancro (linfomas e leucemias), artrite reumatoide ou lúpus, ou pode ser “idiopática” (de origem desconhecida).
A destruição dos glóbulos ocorre principalmente no baço, o órgão que tem como função “limpar o lixo celular”, refere o médico, destruindo as “células velhas”. Nos casos de infeção prévia, por exemplo, o organismo começa a criar anticorpos para a combater, mas estes também
destroem os glóbulos vermelhos. “É um mecanismo de mimetismo celular.”
A frequência é aproximadamente de “100 a 200 casos” por ano e pode ser potencialmente grave. “Estamos a perder hemoglobina, que transporta oxigénio pelo sangue. Se não recebe oxigénio suficiente, a célula morre.”
Os sintomas mais frequentes são fadiga, palidez e taquicardia, mas também icterícia (olhos e palmas das mãos ficam amarelados) e dores de cabeça.
O tratamento é feito com corticoides ou imunossupressores. Pode ser crónica ou não, ou seja: se for causada por um medicamento, interrompe-se a toma; se a origem for desconhecida, “pode
ser crónica”.
3 ANEMIA APLÁSICA
A anemia aplásica é mais rara do que as anteriores. Nesta doença, há um excesso de linfócitos T ou células T, responsáveis pela defesa do organismo contra agentes desconhecidos, que destroem “os precursores das células que dão origem aos glóbulos brancos e vermelhos”. A medula óssea deixa de conseguir produzir adequadamente células sanguíneas. Como consequência, começam a surgir sinais de palidez na pele, cansaço excessivo, falta de ar, hemorragia nasal e sangramento das gengivas, ou dores de cabeça. A sua progressão “é lenta”, diz Eduardo Espada, muitas vezes “a pessoa não nota”. Não há uma causa “desencadeante definida”, não se sabendo porque se dá este ataque das células T. No entanto, pode estar relacionada com a utilização de medicamentos para a artrite reumatoide, tratamentos para o cancro (quimioterapia ou radioterapia), outras doenças autoimunes ou infeções virais, como a hepatite ou o VIH.
Sabe-se que afeta mais os “jovens adultos” e, com mais frequência, as mulheres. Nesta doença, os corticoides “não têm eficácia”, diz o especialista. O tratamento pode passar pela toma de imunossupressores ou por um transplante de medula óssea, “idealmente de um irmão compatível”. Caso não haja uma boa resposta à medicação ou não exista um dador compatível, passa a ser uma “doença crónica”.
“Uma das funções do baço é destruir os glóbulos vermelhos velhos”
EDUARDO ESPADA
Hematologista no Hospital de Santa Maria, em Lisboa