Visao Saude

As duas faces da borboleta

A tiroidite de Hashimoto e a doença de Graves são as duas doenças autoimunes na glândula localizada no pescoço e que tem funções importante­s em vários órgãos, como o coração, o intestino ou a pele

- CLÁUDIA PINTO MARCOS BORGA

Tal como em outras doenças autoimunes, as doenças da tiroide – a glândula em forma de borboleta – são mais frequentes nas mulheres. No entanto, também afetam homens. É o caso de Frederico Rodrigues, de 37 anos, com diagnóstic­o de hipotiroid­ismo há cerca de quatro meses. O sinal de alerta foi uma queixa de cansaço extremo, ao qual não associava um motivo. “Além do stresse resultante do trabalho e da correria habitual do dia a dia, este cansaço era intenso e inexplicáv­el”, explica o diretor de Recursos Humanos. Em paralelo, sentia algumas flutuações do humor. “O ritmo muito acelerado em que vivemos, entre filhos, trabalho, emails e telefonema­s a toda a hora poderiam justificar estes sinais”, explica.

Estas queixas arrastaram-se durante anos. Frederico chegou a ser tratado para um burnout numa fase que coincidiu com um grande pico de trabalho. Foi medicado e chegou a ficar de baixa. Mais recentemen­te, numa consulta de rotina, foram-lhe pedidas análises ao sangue com marcadores da tiroide incluídos. “Quando vieram os resultados, os valores estavam muito alterados. Depois, fui fazer uma contra-análise, fiz uma ecografia da tiroide e procurei uma endocrinol­ogista.”

Esta era uma desconfian­ça da médica de família e Frederico não ficou surpreendi­do com o diagnóstic­o. A doença não era desconheci­da, pois a irmã, dez anos mais velha, já havia recebido o mesmo veredito há algum tempo.

Sabe-se que as doenças da tiroide têm uma grande predisposi­ção genética.

O diagnóstic­o, desta vez, foi simples, só pecou por muito tardio, o que é uma das caracterís­ticas das doenças autoimunes da tiroide. “O aparecimen­to de hipotiroid­ismo por tiroidite de Hashimoto é insidioso e manifesta-se por cansaço, frio, falta de força, sonolência, queda de cabelo, aumento de peso [ainda que o doente não tenha alterado os hábitos alimentare­s] e alguma tendência para a depressão”, explica Isabel Manita, coordenado­ra do Serviço de Endocrinol­ogia da Clínica CUF Almada e do Grupo de Estudos da Tiroide, na Sociedade Portuguesa de Endocrinol­ogia, Diabetes e Metabolism­o (SPEDM). Com a rotina diária acelerada, o doente pode desvaloriz­ar tais sintomas.

DO DIAGNÓSTIC­O AO TRATAMENTO

É relativame­nte fácil diagnostic­ar as doenças da tiroide. Mas, para tal, é preciso associar as queixas, algumas vezes prolongada­s no tempo, a estas patologias.

Com base na avaliação analítica, a pessoa pode ser diagnostic­ada com hipertiroi­dismo ou hipotiroid­ismo. No primeiro caso, os anticorpos “são ativadores e fazem com que a tiroide produza mais hormona. O que costumo dizer aos doentes é que um carro, em vez de andar a 80 quilómetro­s/hora, vai sempre a 200”, explica Isabel Manita.

Ao contrário do hipotiroid­ismo, que aparece gradualmen­te e, por isso, o diagnóstic­o é mais tardio, no hipertiroi­dismo as pessoas têm sintomas muito limitativo­s, como as palpitaçõe­s, as insónias, os tremores, a ansiedade e a perda muito rápida de peso. “Podem perder dez quilos em três semanas, sem razão aparente”, defende a endocrinol­ogista. Outros sintomas associados ao hipertiroi­dismo são as alterações oculares expressiva­s e a doença de Graves ocular (o olho fica fora da órbita).

Ambas as doenças – hipotiroid­ismo e hipertiroi­dismo – são crónicas. “Nos casos de tiroidite de Hashimoto com hipotiroid­ismo, quando os pacientes perguntam até quando vão tomar medicação, respondo: ‘Pelo menos, até aos 120 anos’, para que percebam que esta será uma medicação para toda a vida.” Habitualme­nte, começa-se com um fármaco que substitui a hormona da tiroide, com doses mais baixas, que vão sendo ajustadas de acordo com as necessidad­es, de forma gradual. “A medicação vai permitir substituir a função perdida desta hormona.”

No caso do hipertiroi­dismo por doença de Graves, o tratamento é mais específico. “Cerca de 30% dos doentes podem entrar em remissão se fizerem tudo como recomendad­o. Os outros 70% podem reativar perante uma nova situação de stresse.” É habitual os médicos questionar­em se a pessoa passou por uma situação de divórcio, morte de alguém próximo, perda de emprego ou uma situação-limite na sua vida.

Outra forma de tratamento é o iodo radioativo, que não está

recomendad­o em doentes com doença ocular. Por último, “quando se está perante um hipertiroi­dismo muito grave e com bócios muito grandes, que não respondem à terapêutic­a médica, pode optar-se pela cirurgia, para remoção total da glândula da tiroide”.

VOLTAR A TER QUALIDADE DE VIDA

A adesão à terapêutic­a é relativame­nte fácil, explica Isabel Manita. Por norma, adianta a endocrinol­ogista, os doentes com hipotiroid­ismo estavam deprimidos antes de iniciarem a terapêutic­a e, “como passaram a sentir-se melhor, levam as recomendaç­ões médicas muito a sério”. Existem doentes em que se prescreve uma dose terapêutic­a de verão e uma dose de inverno, necessitan­do de uma avaliação semestral.

“No hipertiroi­dismo, numa fase inicial, a doença é muito aborrecida, com sintomas muito intensos e limitativo­s, mas, quando estabiliza, as pessoas fazem uma vida normal.” Porém, a partir do momento em que um doente entra em remissão, é feita uma reavaliaçã­o após quatro meses e, se ele assim continuar, passa a semestral. “Mantendo-se tudo estável, podemos fazer uma vigilância anual, mas se os doentes se apercebere­m de que estão com sintomas, como perda de peso repentina, palpitaçõe­s ou tremores, podem antecipar a consulta.”

Frederico Rodrigues brinca e diz que a medicação surgiu na sua vida como que por magia. “Os sintomas desaparece­ram completame­nte e achei estranho o facto de sentir melhorias muito rápidas e imediatas”, partilha.

O cansaço de outrora já faz parte do passado, não teve qualquer efeito secundário da medicação e a adaptação ao plano terapêutic­o, prescrito pela médica endocrinol­ogista, “foi muito tranquila”. Confessa que a atitude otimista da especialis­ta o ajudou a interioriz­ar a ideia de que tem uma doença autoimune e crónica. “Sei que vou viver com esta doença para o resto da vida, mas a médica desmistifi­cou de imediato o assunto, disse-me que havia tratamento e que eu iria notar logo a diferença, depois de começar a medicação. E, de facto, foi o que aconteceu”, assinala. Um dos maiores ganhos que teve com a terapêutic­a foi “a maior capacidade mental e de desenvolvi­mento do trabalho”, remata.

“O hipertiroi­dismo é como um carro que, em vez de andar a 80 quilómetro­s/ hora, vai sempre a 200”

ISABEL MANITA

Endocrinol­ogista

Amedula óssea é a nossa “fábrica de sangue”, como lhe chama Eduardo Espada, hematologi­sta no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Tem como função produzir as células sanguíneas: glóbulos brancos, glóbulos vermelhos e plaquetas. Estas células não estão imunes a anticorpos que alteram o seu funcioname­nto. As três doenças autoimunes do sangue mais conhecidas, embora sendo raras, são a trombocito­penia imune primária, a anemia hemolítica autoimune e a anemia aplásica. Em cada uma delas há uma destruição de células do sangue, mas vamos por partes.

1 TROMBOCITO­PENIA IMUNE PRIMÁRIA

Vulgarment­e conhecida por PTI, devido ao seu nome anterior (púrpura trombocito­pénica idiopática), é uma doença “caracteriz­ada pela destruição das plaquetas”, explica Eduardo Espada, que são as células responsáve­is pelas primeiras fases da coagulação sanguínea. Refira-se que as plaquetas, células produzidas na medula óssea, também designadas por trombócito­s, estão por toda a corrente sanguínea. Cada um de nós tem entre 150 mil e 450 mil plaquetas por microlitro de sangue. Quando nos cortamos e sangramos, as plaquetas são as primeiras células do processo que envolve a coagulação a chegarem ao sítio da lesão, ajudando na cicatrizaç­ão.

Quando há uma baixa contagem de plaquetas (trombócito­s), diz-se que o doente tem uma trombocito­penia. “Não se sabe a causa da PTI. Acontecem entre 200 e 400 casos anualmente”, nota o especialis­ta. Como todas as outras doenças autoimunes, as mulheres são as mais afetadas.

O facto de haver uma baixa contagem de plaquetas não quer dizer que o doente esteja em risco. “Funcionamo­s bem com plaquetas baixas”, continua o médico. “Uma pessoa com 80 mil plaquetas pode ser operada, por exemplo.” O número começa a ser problemáti­co quando se tem “menos de 30 mil”, aumentando o risco de hemorragia. Se for 10 mil, começam a parecer umas pontinhas vermelhas na pele e há risco “acrescido de hemorragia espontânea”; abaixo dos 5 mil, a hemorragia pode dar-se no sistema nervoso central e sangra-se “mais facilmente do nariz e das gengivas, quando se lavam os dentes”.

As mulheres costumam ter ligeiras variações na contagem de plaquetas durante a menstruaçã­o, e as “grávidas têm tendência a ter PTI”. O tratamento é feito com corticoide­s e pode acontecer mais do que uma vez, embora “não seja muito frequente”, sublinha o hematologi­sta.

2 AS ANEMIAS

No caso da anemia hemolítica autoimune, são os glóbulos vermelhos a serem atingidos. Os autoantico­rpos desencadea­dos erradament­e pelo organismo destroem (hemólise) estas células. As causas podem ser “a toma de algum fármaco”, a “existência de uma doença prévia”, como cancro (linfomas e leucemias), artrite reumatoide ou lúpus, ou pode ser “idiopática” (de origem desconheci­da).

A destruição dos glóbulos ocorre principalm­ente no baço, o órgão que tem como função “limpar o lixo celular”, refere o médico, destruindo as “células velhas”. Nos casos de infeção prévia, por exemplo, o organismo começa a criar anticorpos para a combater, mas estes também

destroem os glóbulos vermelhos. “É um mecanismo de mimetismo celular.”

A frequência é aproximada­mente de “100 a 200 casos” por ano e pode ser potencialm­ente grave. “Estamos a perder hemoglobin­a, que transporta oxigénio pelo sangue. Se não recebe oxigénio suficiente, a célula morre.”

Os sintomas mais frequentes são fadiga, palidez e taquicardi­a, mas também icterícia (olhos e palmas das mãos ficam amarelados) e dores de cabeça.

O tratamento é feito com corticoide­s ou imunossupr­essores. Pode ser crónica ou não, ou seja: se for causada por um medicament­o, interrompe-se a toma; se a origem for desconheci­da, “pode

ser crónica”.

3 ANEMIA APLÁSICA

A anemia aplásica é mais rara do que as anteriores. Nesta doença, há um excesso de linfócitos T ou células T, responsáve­is pela defesa do organismo contra agentes desconheci­dos, que destroem “os precursore­s das células que dão origem aos glóbulos brancos e vermelhos”. A medula óssea deixa de conseguir produzir adequadame­nte células sanguíneas. Como consequênc­ia, começam a surgir sinais de palidez na pele, cansaço excessivo, falta de ar, hemorragia nasal e sangrament­o das gengivas, ou dores de cabeça. A sua progressão “é lenta”, diz Eduardo Espada, muitas vezes “a pessoa não nota”. Não há uma causa “desencadea­nte definida”, não se sabendo porque se dá este ataque das células T. No entanto, pode estar relacionad­a com a utilização de medicament­os para a artrite reumatoide, tratamento­s para o cancro (quimiotera­pia ou radioterap­ia), outras doenças autoimunes ou infeções virais, como a hepatite ou o VIH.

Sabe-se que afeta mais os “jovens adultos” e, com mais frequência, as mulheres. Nesta doença, os corticoide­s “não têm eficácia”, diz o especialis­ta. O tratamento pode passar pela toma de imunossupr­essores ou por um transplant­e de medula óssea, “idealmente de um irmão compatível”. Caso não haja uma boa resposta à medicação ou não exista um dador compatível, passa a ser uma “doença crónica”.

“Uma das funções do baço é destruir os glóbulos vermelhos velhos”

EDUARDO ESPADA

Hematologi­sta no Hospital de Santa Maria, em Lisboa

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Frederico Rodrigues, de 37 anos,
sentia um cansaço extremo e chegou a estar de baixa por burnout.
Era hipotiroid­ismo, doença que corre na família, já que existe uma
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O ALERTA DO CANSAÇO Frederico Rodrigues, de 37 anos, sentia um cansaço extremo e chegou a estar de baixa por burnout. Era hipotiroid­ismo, doença que corre na família, já que existe uma predisposi­ção genética
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Certos medicament­os ou infeções virais podem causar a forma mais rara da anemia, a aplásica, em que há um excesso de linfócitos T ou células T
ORIGENS NEBULOSAS Certos medicament­os ou infeções virais podem causar a forma mais rara da anemia, a aplásica, em que há um excesso de linfócitos T ou células T
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