Os celíacos nem podem cheirar glúten
A doença celíaca é uma patologia do foro autoimune que atinge sobretudo crianças, mas também pode aparecer em adultos
Qual é a probabilidade de uma criança descobrir que é celíaca, uma doença que se caracteriza pela rejeição total do glúten, sentada na cadeira do seu dentista? A verdade é que as alterações de esmalte eram tão gritantes que fizeram disparar os alarmes. E como é no intestino delgado que se faz a absorção dos nutrientes, a pediatra fez o despiste às patologias que danificam o tecido intestinal – e assim chegou ao diagnóstico, sem que a criança alguma vez se queixasse de uma dor de barriga.
Nos adultos, a deteção ainda tem mais tendência para ser morosa, porque se desvalorizam os sintomas, como enxaquecas, anemia ou dificuldade em engravidar. Normalmente, quando se descobre, já há lesões. E se não se tratar, retirando o glúten da alimentação, pode degenerar em tumor. No entanto, diz Filipa Santos, gastrenterologista de pediatria, há uma análise que nunca falha: os anticorpos anti-transglutaminase
IGA estarem positivos. “Se se apresentam aumentados, significa que quando o glúten passa pelo intestino delgado, o organismo reconhece-o como algo mau e produz esses anticorpos. Quando se deixa de comer produtos com glúten, passado uns tempos, eles voltam a estar negativos”, resume.
Fazendo uma dieta rigorosíssima, sem sequer se chegar perto de vestígios de glúten, a vida segue o seu curso normal, sem ser necessária qualquer medicação. E hoje as alternativas no mercado já são muitas, mas importa relembrar a gravidade da doença – que afeta 1% da população –, que é muito diferente de uma intolerância ou mesmo alergia a esta proteína presente em vários cereais.
À luz da Ciência, e de todos os estudos que têm sido feitos nesta área, além daquele coordenado por Sandra Leal, sabe-se que as populações que seguem uma alimentação dita ocidental, recorrendo a fast food, ultraprocessados e com baixa ingestão de hortícolas e frutícolas, como era o caso de Catarina Sousa, têm mais propensão para desenvolver doenças inflamatórias do intestino, embora elas sejam multifatoriais, não se sabendo bem qual é a sua causa primordial, pois dependem também do estado da microbiota, do ambiente e da genética.
“Devemos ter uma alimentação saudável, especialmente depois do diagnóstico”, avisa a nutricionista Carla Guimarães. A própria doença e a medicação podem aumentar o risco de desnutrição, por causa da falta de apetite, dos vómitos, cólicas e diarreias. “Sabemos que comer adequadamente, com poucos processados e gorduras saturadas, vai auxiliar no decorrer da patologia”, expõe a especialista, que também dá aulas em Leiria.
É, por isso, importante anotar que quem sofre de doença de Crohn ou colite ulcerosa deve evitar os açúcares refinados, adicionados, o excesso de produtos animais e, claro, os ultraprocessados (tudo o que está embalado e tem um prazo de validade alargado).
Na gestão da doença, o que se pede é uma alimentação mais natural, baseada em fruta, hortícolas e cereais integrais – em duas palavras, falamos da dieta mediterrânica.
A nutricionista, que segue muitos doentes com estas maleitas, nota que, por vezes, aparece o medo de ingerir alguns alimentos e, então, eles autoimpõem-se uma certa restrição alimentar, especialmente produtos com fibra solúvel, sobretudo nas fases agudas. “Já vi casos de pessoas que ficaram anos sem reintroduzir a fruta ou os legumes. E depois há outras que decidem retirar o glúten ou a lactose da sua dieta, sem que existam estudos que indiquem que isso trate a doença intestinal”, explica Carla Guimarães.
Às vezes, o que acontece é que, na fase ativa, em que a mucosa está inflamada, as células não conseguem digerir a lactose por não estarem a funcionar tão bem. “Pode ser uma con
dição apenas passageira. Há, por isso, que avaliar sempre a situação com um profissional de saúde, para que não se piore o quadro.”
CONTINUAR A SER O MESMO
Aliás, a abordagem deve ser multidisciplinar. E faz todo o sentido que, por exemplo, a psicologia entre nas especialidades que abordam estas patologias junto de quem tem de lidar com elas, muitas vezes em idades precoces. “Além de serem doenças crónicas, têm um carácter de imprevisibilidade considerável. Um doente nunca sabe se vai ter uma crise ou dez durante a evolução de uma autoimune. A medicação tem tornado as situações mais geríveis, mas não as cura”, esclarece Jorge Ascensão, psicólogo que trabalha especificamente com este tipo de queixas.
Este profissional ajuda a integrar a doença na vida. Ensina os doentes a cuidarem bem deles próprios, aumentando-lhes a autoconfiança e a autoimagem, a escaparem dos medos e da ansiedade e ainda a aprenderem a gerir os efeitos secundários da medicação. “Têm de acreditar que continuam a ser os mesmos, apesar do diagnóstico”, conclui Jorge Ascensão.
Na última década, é nisso que se tem focado Filipa Cunha, hoje com 28 anos. Recebeu o seu diagnóstico de colite ulcerosa poucos dias depois de atingir a maioridade e no seguimento de uma violenta diarreia que nunca mais parava. Antes, submeteu-se a uma bateria de exames e análises – o caminho típico até chegar ao veredicto final.
Esta investigadora na área da engenharia mecânica nunca tinha ouvido falar de tal doença e, à época, sentiu-se perdida e assustada. “Afinal, não era só uma coisinha”, lembra. Pois não, era algo para a vida e implicava medicação. E nem sempre se acerta à primeira no remédio.
”Já vou no meu terceiro biológico, um imunossupressor que impede o sistema de se atacar a ele próprio. Finalmente, desde que o tomo há dois anos – uma injeção, uma vez por mês –, a doença acalmou”, conta, já conciliada com a sua condição.
Não faz mais medicação do que esta, mas alimenta-se com muito cuidado, usando pouco sal e açúcar e evitando fritos e picantes.
Antes de encontrar o medicamento certo, tinha muitas crises, que a obrigavam a tomar corticoides (e depois a fazer o desmame), a correr para a retrete a toda a hora e até a perder bastante sangue, o que originava anemias. “Por dia, chegava a ir dez a 15 vezes à casa de banho. Sentia muita urgência e isso condicionava-me imenso a vida.”
Filipa conta que, por exemplo, não andava de transportes públicos e essa era apenas uma das limitações que o pânico de não ter uma casa de banho à mão lhe causou. Quando sentia vontade, tinha apenas dez segundos até estar sentada na retrete. “Já entrei na dos homens, na dos deficientes e até usei cuecas-fralda”, confessa.
Além da acalmia da doença, foram as consultas de psicologia que a ajudaram a ultrapassar os constrangimentos causados pela colite ulcerosa. Por causa da ansiedade, não saía tanto de casa como hoje, já bem resolvida.
E depois era uma bola de neve sem fim, já que o intestino está ligado ao cérebro e às emoções. “Quando estou mais nervosa ou com muito stresse, pioro sempre da colite. Mas, nas consultas de psicologia, trabalhei para conseguir controlar essa ansiedade. Esta doença é metade física, metade psicológica”, refere.
Como era uma miúda na altura em que descobriu esta condição, procurou ajuda em todos os lados. Na Associação Portuguesa de Doentes Intestinais (APDI) encontrou grupos de jovens, dos 18 aos 35 anos, que têm os mesmos problemas que ela. Hoje é uma das 35 mentoras, sempre disponível para ouvir e compreender outras pessoas que chegam agora a este mundo.
Conhece bem as angústias por que passam, pois ainda se lembra de resumir, muito resumidinho, o seu mal aos outros, quando lhe estranhavam algum comportamento. “Dizia apenas que tinha uma doença no intestino e que tomava medicação – um cenário bem mais soft do que na realidade era. Não queria que olhassem para mim com pena nem gostava de me sentir doente. Hoje aceito tudo com mais naturalidade. A colite faz parte de mim.”
Ana Sampaio, doente de Crohn há 24 anos, e há três mandatos a dirigir a APDI, com mais de dois mil associados, gosta de trabalhar nesses grupos de apoio que ajudaram Filipa. Mas também se esforça por melhorar a literacia em saúde – informar para a gestão diária, a terapêutica, a alimentação e o exercício físico – e fomentar a divulgação científica nesta área. “Tem havido muitos estudos e ensaios e imenso empenho para saber mais sobre as doenças inflamatórias do intestino, tentando descobrir o que as espoleta.”
Com o crescimento do número de doentes – estima-se que atualmente haja cerca de 25 mil pessoas com doenças inflamatórias do intestino –, é natural que existam outros locais de apoio. A Associação Ritual Purple – Crohn/Colite Portugal surgiu em 2018 e também faz um trabalho de proximidade com quem sofre destas patologias do intestino.
Os casos têm vindo a aumentar, sobretudo no mundo ocidental, julga-se que também por culpa da exagerada higienização (além da alimentação inadequada já aqui falada). Há muitos jovens adultos a serem diagnosticados, é certo, mas não se deve esquecer de que um terço dos casos atinge pessoas com mais de 60 anos.
MUDAR OS ACONTECIMENTOS
Os médicos gastrenterologistas, a especialidade que segue os doentes do ponto de vista clínico, agradecem este background de aconselhamento, já que eles têm de se focar nos aspetos mais físicos, embora também tendam a colaborar com as associações.
Marília Cravo é um caso desses, fazendo de tudo para aumentar o conhecimento geral da doença. Conhece bem todas as manifestações: perda de peso, falta de apetite e diarreias com sangue. “A colite tem mais sangue e o Crohn mais emagrecimento, pois é no intestino delgado, onde muitas vezes ele ataca, que se processa a absorção dos alimentos.”
E sempre que chega a um diagnóstico destes, esforça-se por explicar ao doente que o Crohn é uma condição que pode afetar todo o trato intestinal, da boca até ao ânus, enquanto a colite ulcerosa se restringe ao intestino grosso (daí que, por vezes, se opte por cortar esta parte do órgão do sistema digestivo e assim resolver a agressividade da patologia).
A médica também gosta de realçar a evolução da Ciência na terapêutica destas doenças, que são tratadas da mesma forma. “No século XXI, apareceram os biológicos que, ao contrário dos outros medicamentos, são produzidos em sistemas biológicos vivos, in vitro, e bloqueiam a produção de citocinas.”
Um dos problemas deste tipo de medicação é ficar-se mais suscetível a outras infeções que precisem de resposta imunológica adequada. É por isso que, antes da toma, é premente fazer-se o inventário imunológico do doente, para saber se já teve, por exemplo, tuberculose ou contacto com o citomegalovírus. “Perante uma infeção grave, tem de se parar com o biológico. E há que ficar vigilante e alerta”, assegura a médica.
Com estas descobertas mais potentes, pode mesmo mudar-se o curso das doenças inflamatórias, especialmente se elas forem detetadas precocemente, antes das primeiras lesões intestinais. “Nesses casos, poderemos evitar cirurgias e complicações como fístulas, estenoses [apertos] ou úlceras”, nota Marília Cravo.
E nunca se deve esquecer a monitorização intensiva da resposta do doente, pois isso também pode fazer a diferença, ou seja, potencialmente significar menos corticoides, menos internamentos, menos bloco. E mais vida.
“A deteção da doença celíaca, nos adultos, tende a ser ainda mais morosa, porque se desvalorizam os sintomas, como enxaquecas, anemia ou dificuldade em engravidar”
FILIPA SANTOS
Gastroenterologista pediátrica