O tipo que não depende de nós
O diagnóstico chega quando a cabeça ainda não está capacitada para processar que é uma “doença para a vida”. Mas depois de assimilada, e bem tratada, a diabetes de tipo 1 permite regressar à quase normalidade
última memória que Cristina Fernandes tem, precisamente antes de saber que era diabética, foi deliciar-se com um belíssimo pastel de nata, enquanto esperava pela consulta no médico. No consultório, haveria de queixar-se de muita sede, fome e da perda súbita de 15 quilos. As análises ao sangue (níveis de anticorpos para as células beta pancreáticas) não deixaram margem para dúvidas. Daí em diante, soube que sofria de diabetes de tipo 1 e que isso iria acompanhá-la ao longo da vida, junto com as devidas doses de insulina.
“Quando, aos 14 anos, me disseram que não podia continuar a deliciar-me com doces, só pensei que deviam estar todos tolos, porque eu comia e não me doía nada.” Oito anos depois, já adulta, foi parar, pela primeira vez, à cama de um hospital, com uma hipoglicemia grave, e só então tomou real consciência do mal de que sofria e de que as doses de insulina diárias lhe trariam o equilíbrio necessário. “Ganhei outro emprego, sem fins de semana nem férias.”
A diabetes de tipo 1 trata-se de uma reação exacerbada do sistema imunitário contra as células do pâncreas, aonde se produz a insulina. “Quando isso acontece, o organismo perde quase totalmente a capacidade de produzir esta hormona, que reduz a glicemia”, explica o endocrinologista João Sérgio Neves, secretário-geral da Sociedade Portuguesa de Endocrinologia Diabetes e Metabolismo (SPEDM).
A perda de peso, a fome e a sede de que se queixou Cristina, ainda adolescente, explicam-se pelo facto de a glicose não ser utilizada pelas células, o que, ao ser eliminada pela urina (também se vai à casa de banho mais vezes), causa desidratação. “A glicose circula no sangue, mas não entra nas células”, resume o especialista, médico no hospital de São João, no Porto.
A doença não tem cura, mas tem tratamento eficaz, que passa pelas injeções diárias de insulina, como já se disse. No entanto, a investigação tem chegado a alguns resultados bastantes positivos. “Nos Estados Unidos da América, já existe um fármaco que trava em 32 semanas a evolução da doença e até a toma de insulina. Pode parecer pouco, mas, quando estão em causa crianças, qualquer atraso na hipoglicemia é positivo”, explica João Sérgio Neves. No entanto, trata-se de um medicamento com particularidades, injetável durante 14 dias e com um custo de 200 mil dólares (cerca de €185 mil).
No fundo, é uma porta que se abre, provando que é possível interferir no desenrolar da doença, modificando-lhe a história. A investigação tem seguido nessa direção e, durante a próxima década, há a esperança de se mudar a forma como se trata a diabetes, prevenindo-se a destruição das células pancreáticas.
O mecanismo do Tft Lizumab é válido para outras doenças autoimunes, não todas, porque se trata de um anticorpo que vai interferir com uma molécula que promove a imunidade, bloqueando o antigénio CD3 e atrasando o processo autoimune.
A BÊNÇÃO DAS BOMBAS
Enquanto esta novidade não chega à Europa, há que lidar com os tratamentos disponíveis e atuar assim que chega o diagnóstico, antes ainda de a glicemia estar elevada. E a insulina, molécula descoberta há um século, é a chave de tudo.
Ao fim de 40 anos, Cristina Fernandes já sabe de cor como atuar. Há que administrar a insulina basal – uma a duas vezes por dia. Antes das refeições, volta-se a recorrer à insulina rápida, para impedir que, após a comida, haja subida da glicemia.
Até há pouco tempo, tudo isto era calculado de cabeça e obrigava a várias picadas por dia. Atualmente, existem bombas difusoras – Cristina é uma das privilegiadas que usam esse dispositivo –, que estão programadas para a dose basal. Só as administrações relacionadas com o que se come devem ser ajustadas manualmente. “É fundamental a contagem de hidratos de carbono. Um doente deve olhar para o prato e ter a noção de quantos gramas vai necessitar”, esclarece João Neves. É que os hidratos de carbono são os que mais contribuem para a glicemia pós-prandial, pois a maioria é convertida em glicose num tempo que pode variar entre 15 minutos e 2 horas, dependendo do tipo de refeição.
Com boa educação terapêutica e adesão, que implicam uma gestão diária e contínua, é possível ter qualidade de vida e longevidade. Há até atletas de alta competição que sofrem de diabetes de tipo 1. No entanto, quanto mais extrema for a atividade física, mais importante será o ajuste da insulina.
Aos 55 anos, Cristina Fernandes já passou por todas as fases de tratamento, desde as canetas para medir a glicemia a sensores freestyle libre, que hoje vemos frequentemente aplicados nos braços dos doentes. Agora é tudo 100% comparticipado, mas houve alturas em que os acessórios que a ajudavam a monitorizar a doença representavam um enorme esforço financeiro no ordenado de intérprete de língua gestual.
Há três anos que Cristina Fernandes se adaptou a uma bomba, depois de um dia ter acordado com a glicemia a 30, quando sabe que não pode baixar dos 70, sem se lembrar muito bem do que aconteceu a seguir, até dar por si caída no chão da cozinha.
Mesmo assim, ficou em lista de espera por um ano. Hoje, já existem muito mais bombas no mercado – na SPEDM garantem que, ainda neste ano, vão ficar disponíveis para todos os diabéticos desta classe. “A partir do momento em que se coloca a bomba, não tem nada a ver. Deixei de andar com canetas e agulhas para todo o lado. Só tenho de mudar o cateter a cada três dias e o reservatório de insulina de quatro em quatro.”
Cristina cumpre tudo à risca, porque teme as complicações da doença, especialmente as cardíacas. Até agora, não tem tido surpresas. “Dizem que sou um caso raro, que deveria ser estudado”, conclui, com um sorriso.
“Já existe um fármaco que trava em 32 semanas a evolução da doença e até a toma de insulina”
JOÃO SÉRGIO NEVES
Endocrinologista
Sabemos que o lúpus eritematoso sistémico, vulgo apenas lúpus, é uma doença inflamatória crónica, evolui por crises e pode atingir as articulações, a pele e outros órgãos. No entanto, a causa desta doença de natureza autoimune permanece desconhecida. Que o diga Emília David, cujo diagnóstico correto demorou mais de uma década a ser feito.
Ainda em Angola, onde nasceu há 33 anos, quando foi para a universidade começou a sofrer de fortes dores musculares, dores nas articulações,
cefaleias muito frequentes e febre alta. As idas à urgência hospitalar terminavam em internamentos de uma semana, com os médicos a prescreverem-lhe quinina para a malária.
Durante os seus 20 anos, Emília chegou a pesar 38 quilos, e as crises não paravam de dar sinal do lúpus. Tonturas, fraqueza e um cansaço enorme dificultavam-lhe a rotina universitária – frequentava o curso de Medicina Dentária. Seguiram-se novos e erráticos diagnósticos, incluindo de tuberculose, meningite e, novamente, de malária.
Um surto com delírios levou-a a fazer um exame cefalorraquidiano para a malária cerebral, entre outros testes psiquiátricos. Entretanto, o peso voltava ao normal, a febre desaparecia, mas doía-lhe o pé: não o conseguia pousar no chão por causa de um furúnculo.
Entretanto, em 2012, quando surgiu a oportunidade de Emília David vir estudar para Portugal, através de uma bolsa de estudo, a jovem não hesitou. O sistema imunitário manteve-se debilitado por mais alguns anos e, em vez de defender o seu organismo de agentes externos, continuava a atacá-lo. Ao virar-se contra si próprio, o sistema imune (contempla órgãos, tecidos, células e moléculas do corpo) provoca inflamação e alteração da função do sistema afetado.
Uma verdadeira luta interna, como explica Helena Canhão, diretora do Serviço de Reumatologia do Hospital Santo António dos Capuchos e professora catedrática de Medicina na Nova Medical School: “Partes do nosso organismo começam a reconhecer alguns órgãos, proteínas do próprio organismo como sendo estranhas. Por isso, há um ataque, podendo levar a manifestações renais, lesões na pele, lesões articulares, entre outras, porque esses anticorpos reconhecem como estranho material que é nosso, único.”
ATENÇÃO À GENEALOGIA
Na Europa, mais de meio milhão de pessoas sofre de lúpus, sendo que, em Portugal, existem entre dez mil e 15 mil doentes, segundo o Estudo Epidemiológico Nacional das Doenças Reumáticas. Nos países ocidentais, a percentagem ronda entre um e dois doentes por cada 100 mil habitantes (0,1%). No entanto, “é muito importante olharmos para a população de risco, mulheres jovens em idade fértil, em que o risco é muito superior”, exemplifica Helena Canhão, também presidente da assembleia-geral da Sociedade Portuguesa de Reumatologia.
“É muito mais frequente nas mulheres do que nos homens, numa proporção que depende das populações, e tanto pode ser até nove mulheres para um homem como quatro para um. O pico de início também costuma ser aos 20 e poucos anos, coincidindo com a
idade fértil das jovens, e costuma ser mais grave nas pessoas negras, em que o envolvimento renal e a gravidade da doença é superior de uma forma geral; quando surge numa idade mais tardia, afeta mais as articulações e a pele.”
Um novo estudo, desenvolvido por investigadores da Universidade de Stanford, na Califórnia, Estados Unidos da América, pode ter encontrado o motivo para as mulheres terem mais doenças autoimunes relativamente aos homens – de todas as pessoas com doenças autoimunes, cerca de 80% são mulheres.
A equipa da investigação descobriu que há uma molécula apenas encontrada nas mulheres. Denominada Xist (em inglês, lê-se “exist”, que significa “existir”), esta molécula tem a função de desativar um dos cromossomas X nas mulheres, o que permite evitar a sobreprodução de proteínas. Contudo, este processo também faz com que a molécula crie complexos – longas cadeias de RNA emaranhadas com ADN e proteínas – estranhos, ligados a várias doenças autoimunes.
Sendo a causa do lúpus desconhecida, a melhor forma de prevenir é indagar se, na família, há pessoas com maior tendência para doenças autoimunes, seja lúpus ou outra. Nas consultas, conta Helena Canhão, “é muito frequente vermos doentes que têm uma prima com tireoidite, outra que tem lúpus, outra com artrite reumatoide e outra com cirrose biliar primária”.
Ter uma vida com hábitos equilibrados, evitar insolações (daquelas que provocam queimaduras na pele) e, no caso da mulher, controlar frequentemente os seus parâmetros hormonais, também pode ajudar a prevenir a doença. “Nas adolescentes, aquando da menarca, é um pico para início do lúpus. Na fase da menopausa, é menos provável”, explica Helena Canhão.
Ao contrário de outras patologias, como as cancerígenas, por exemplo, a genética e a epigenética (hábitos e estilo de vida adotados) não têm ligação direta ao surgimento do lúpus. “A existência de uma predisposição genética – e não é de um gene modificado – e de um território poligénico é uma suscetibilidade não só para o lúpus mas para outras doenças autoimunes”, distingue Helena Canhão.
Entre os fatores externos, a gravidez pode funcionar como gatilho do lúpus, e a mulher puérpera pode mesmo ter um agravamento da doença. É também quando a pessoa fica em choque, como num luto, num elevado grau de stresse, em que há alterações de neurotransmissores, que a doença pode dar sinais de vida.
E se a pele, as articulações e os rins são dos órgãos mais afetados, a verdade é que o lúpus pode atingir o coração e o sistema nervoso central.
Só em 2019 Emília David teve o diagnóstico certo: neurolúpus. Antes, passou meses a fio a sentir-se muito cansada, sem energia, sem conseguir concentrar-se para estudar – agora já no curso de Nutrição. Uma bateria de análises clínicas detetaram inflamação e anemia no organismo; à vista tinha
pés e mãos inchados, sem dobrar as pontas dos dedos, rosto balofo num corpo magro e maxilares rígidos. O neurolúpus trazia associado a síndrome de Sjögren secundária, caracterizada pela secura excessiva dos olhos, boca e outras membranas mucosas.
Em 2020, Emília voltou a perder peso, a sentir-se fraca, a delirar, a perder a consciência – até ficar internada durante três meses. Ao despertar, tinha deixado de andar, precisou de fazer fisioterapia para recuperar a mobilidade das pernas; por vezes, ainda ouvia vozes, entrou em depressão e ainda hoje é acompanhada por um psiquiatra.
Emília David sabe que não deve apanhar sol, pois os raios ultravioleta ativam as crises, e mantém-se desconcentrada, com alguma dislexia; faz-lhe confusão estar em locais cheios de gente, como transportes públicos ou centros comerciais, e nos dedos das mãos tem umas minibolhinhas que parecem frieiras, enquanto no interior do lábio surge, às vezes, uma espécie de afta. “O lúpus é meu, não é igual ao de mais ninguém”, resume Emília, cuja última crise aconteceu em 2022.
UM CANSAÇO ATROZ
O lúpus pode surgir de duas formas: cutâneo, à superfície da pele, com erupções ou manchas avermelhadas no rosto, orelhas, pescoço, couro cabeludo, decote e braços; ou sistémico, que é a forma mais grave, atacando um ou mais órgãos e tecidos.
Nenhum dos tipos é contagioso e, apesar das lesões cutâneas, pode-se tocar e estar perto de um doente com lúpus. “É uma doença mediada por anticorpos, em que o organismo ataca as suas próprias células, sem motivo conhecido. Trata-se de uma doença interna e não é transmissível por nenhum micro-organismo”, justifica Helena Canhão.
Embora exista a possibilidade rara de o lúpus ser transmitido da mãe para o filho na altura do nascimento (lúpus neonatal), a doença não é hereditária. “Os anticorpos SSA e SSB atravessam a placenta e passam para o bebé, gerando uma reação no nascimento aos anticorpos da mãe. É transmissível, mas não é propriamente hereditário”, sublinha a médica.
Dos principais sintomas de lúpus, a fadiga é o mais acentuado, entre outros comuns, como febre, perda de apetite e de peso, fotossensibilidade, lesões na pele (erupções e manchas eritematosas) e articulações (dores, inchaço).
“Uma inflamação persistente leva à ativação dos mediadores inflamatórios, causando astenia permanente e, muitas vezes, a anemia crónica, pouco acentuada. A fadiga leva a mais dificuldade em exercer tarefas, a maior risco de depressão, a distúrbios do sono, e tudo isto é um círculo vicioso”, alerta a diretora do Serviço de Reumatologia do Hospital Santo António dos Capuchos.
Com o lúpus capaz de atacar vários órgãos e sistemas, qual a especialidade médica mais indicada para tratar a doença? Será reumatologia, nefrologia, dermatologia, medicina geral e familiar ou medicina interna? Os cerca de 150 reumatologistas existentes no País têm um “treino especial para estes doentes, porque fazem parte daquilo a que chamamos doenças inflamatórias crónicas reumáticas”.
Na opinião de Helena Canhão, “o problema da medicina geral e familiar é que, às vezes, os profissionais têm pouca experiência, porque em 1 500 doentes aparecem um ou dois com lúpus”. Mas não se trata de uma situação linear. Dependendo do envolvimento, o ideal será uma equipa multidisciplinar.
Por exemplo: um doente que é internado com neurolúpus, com convulsões, alterações do líquido cefalorraquidiano e alterações na ressonância magnética cranioencefálica precisa da opinião de um neurologista. A nefrologia também é chamada para decidir quando é preciso fazer biopsias renais ou diálise, bem como a dermatologia quando não há envolvimento sistémico dos outros órgãos. Opções que, na dúvida, ajudam a fazer o rastreio.
“É muito frequente ver doentes que têm uma prima com tireoidite, outra que tem lúpus, outra com artrite reumatoide ou outra com cirrose biliar primária”
HELENA CANHÃO
Diretora do Serviço de Reumatologia do Hospital Santo António dos Capuchos