“Não é só comprar o avião”
Independentemente dos avanços e das vantagens, há que ter em atenção que a robótica, só por si, não faz milagres. Kris Maes, perito e instrutor em formação robótica, não se cansa de sublinhar que “há uma curva de aprendizagem muito grande e difícil” e que “é muito importante ter profissionais bem treinados”. Porque, justifica, “a máquina não faz tudo sozinha”, tem de ser devidamente comandada
“Não é só comprar o avião, tem de se ensinar o piloto a comandar o avião.” Ou, recorrendo a outra imagem, “eu tenho de ter experiência suficiente para conhecer o carro e, assim, poder dar atenção ao trânsito, isto é, poder concentrar-me naquilo que é importante”, diz o coordenador do Robotic Fellowship Program no Hospital da Luz, Lisboa.
“Temos de investir muito em formação e exigir mais”, insiste o urologista. Afinal, “a cirurgia robótica só tem vantagens se alguém a fizer bem” e “tudo depende de quem a faz e de como a faz”. Infelizmente, aponta, “às vezes, subestima-se a aprendizagem”, lembrando, por exemplo, que “para fazer bem uma prostatectomia difícil são precisos muitos anos de trabalho”. Refira-se, aliás, que, no caso da cirurgia robótica, a prática pode mesmo ser ganha sem riscos – o Da Vinci integra um simulador que permite ao médico operar (e treinar) num corpo virtual.
Maes, que dirige aquele que é o único centro da Península Ibérica com graduação em Cirurgia Robótica e formação certificada pela Associação Europeia de Urologia, já ensinou muitos profissionais de todo o mundo. Naquele dia, no bloco operatório do Hospital da Luz, são dois urologistas brasileiros que lhe seguem, atentos nos ecrãs, as indicações e o curso das mãos. “Viemos aprender técnicas inovadoras, outras rotinas… E tem sido muito útil e positivo”, diz Vítor Pereira, no Hospital Roberto Santos, na Bahia, enaltecendo as “grandes qualidades” do mestre.
por António Oliveira, diretor do Serviço de Ortopedia do Centro Hospitalar Universitário de Santo António, que considera ainda a robotização uma forma de atrair profissionais. “O investimento na evolução tecnológica dos serviços clínicos e hospitais é, sem dúvida, uma forma de cativar profissionais de saúde a manterem-se no Serviço Nacional de Saúde.”
Já a ginecologista Margarida Martinho começa por sublinhar a capacidade de imersão. “É quase como um filme 3D… e nós sentimo-nos dentro do filme.” Uma visão “muito mais precisa e ampliada, que faz com que a avaliação seja amplamente melhorada”, nota. Por outro lado, prossegue, “o facto de manipularmos os comandos robóticos, permite-nos simular e até ampliar os movimentos que fazemos com a mão e o punho”. E como temos “movimentos que saem o mais natural possível, uma liberdade de ação e uma amplitude maiores, a manipulação dos tecidos torna-se mais precisa e mais segura”.
A propósito, realça também a importância dos “sistemas de segurança”. E exemplifica: “Se o robot deteta movimentos imprevistos e que possam ser arriscados para o doente, bloqueia o movimento das pinças. E se, por qualquer motivo, o cirurgião deixa de ter atenção ao campo cirúrgico e retira a cabeça da consola, o sistema bloqueia.” Além disso, prossegue, temos ainda o conforto do médico. “Estamos sentados e ergonomicamente instalados, podemos parar e descansar, enquanto cirurgias muito prolongadas e complexas podem ser procedimentos muito cansativos.” E isto é bom para todos porque “o doente beneficia sempre de um médico mais capaz, mais atento e a operar com maior conforto”.
Acresce ainda que esta técnica permite o acesso a zonas difíceis. “A laparoscopia já foi um avanço em relação à cirurgia aberta, mas aqui há um avanço ainda maior”, nota a vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Ginecologia, sublinhando que “territórios de muito difícil acesso tornam-se mais facilmente acessíveis”. A par disto, a robótica pode ajudar a resolver casos “com um elevado grau de complexidade, por exemplo, histerectomias em que o útero é muito volumoso”.
DA FICÇÃO PARA A REALIDADE
O mesmo acontece na urologia. “Tenho doentes que foram recusados em cinco hospitais por terem um problema impossível de resolver por via convencional”, conta Kris Maes, contrariando assim a ideia por vezes difundida de que a cirurgia robótica só trata “casos fáceis”. Porque, concorda, “aqui somos capazes de chegar a sítios que seriam pouco acessíveis com as nossas mãos”. Por outro lado, acrescenta, a robótica pode ter vantagens na preservação das funções orgânicas, facto particularmente importante, por exemplo, numa remoção da próstata, em que o corte acidental de um nervo pode originar problemas de incontinência e impotência sexual.
Apesar de pouco conhecida para grande parte da população, há muito que a cirurgia robótica deixou de ser ficção. A ideia de criar uma máquina cirúrgica capaz de executar tarefas normalmente realizadas por mãos humanas surgiu há mais de 60 anos nos Estados Unidos da América, na altura pensada para permitir o tratamento de soldados feridos no campo de batalha. No entanto, o projeto não foi adiante devido a limitações técnicas e dilemas éticos, e o conceito só reapareceria 30 anos depois.
Em 1999, a Intuitive Surgical, fundada na Califórnia, introduziu no mercado o primeiro e único sistema robótico cirúrgico (apelidado Da Vinci, em homenagem ao cientista italiano que já em 1400 idealizara um engenho automático). Um ano depois, tornou-se o primeiro sistema certificado pelo regulador americano para cirurgia geral, torácica, cardíaca, vascular, urológica, ginecológica e otorrinolaringológica.
Atualmente, contabilizam-se mais de 14 milhões de intervenções feitas
em todo o mundo com este robot (o mais avançado e utilizado), que já vai na sua quarta versão. Segundo dados da Excelência Robótica, que comercializa o Da Vinci na Península Ibérica, só no ano passado realizaram-se mais de 2,2 milhões de cirurgias, números que refletem um crescimento fulgurante. E Portugal tem vindo a acompanhar a onda.
Em 2023, ainda de acordo com aquela empresa, foram realizadas por cá mais de duas mil cirurgias, das quais 54% em urologia, 29% em cirurgia geral, 11% em ginecologia e 6% em cirurgia torácica, indicadores que refletem um aumento de 25% em relação a 2022.
Pablo Diaz, diretor-geral da Excelência Robótica, diz que “embora Portugal esteja numa fase de adoção da tecnologia mais atrasada do que se verifica em Espanha, regista uma dinâmica muito semelhante à que se verificou, anteriormente, no país vizinho”, com os primeiros sistemas robóticos Da Vinci a serem inicialmente instalados nos sistemas de saúde privados e só mais recentemente a chegarem ao Serviço Nacional de Saúde (SNS). “Atualmente, revela, muitos hospitais estão em processo de concurso para integração de sistemas robóticos, o que significa que a utilização de cirurgia robótica está a arrancar rapidamente no País.”
Uma aposta confirmada pelo próprio diretor executivo do SNS, Fernando Araújo, ao anunciar, em dezembro passado, a compra de seis novos robots cirúrgicos, o que fará aumentar de dez para 13 o número total destes equipamentos no serviço público. Esta “aquisição inovadora”, pode ler-se em comunicado, vai permitir a Portugal “dar um salto tecnológico nesta dimensão”.
O caminho começou em 2010, quando Kris Maes foi convidado a deixar o Hospital de Sint-Blasius, na Bélgica, para estrear o primeiro robot cirúrgico em Portugal, no Hospital da Luz, e formar médicos. “Na altura, ainda ninguém acreditava em cirurgia robótica”, recorda o renomeado urologista, confessando que “levou muito tempo a convencer o mundo cirúrgico” de todo o planeta para as potencialidades da robótica.
“Fomos pioneiros ao realizar a primeira cirurgia de reparação valvular mitral em Portugal, há cerca de dois anos”
Coordenador de Cirurgia Torácica do Hospital Lusíadas, Lisboa
JAVIER GALLEGO-POVEDA
Depois do Hospital da Luz, foi a vez de a Fundação Champalimaud adquirir um Da Vinci, em 2015, a que se seguiram a CUF Infante Santo (hoje Tejo) e o Hospital da Luz Arrábida, em 2016. Em 2019, a plataforma robótica chegou ao SNS graças a uma doação da Fundação Aga Khan ao Hospital Curry Cabral, em 2021 ao Hospital Lusíadas Lisboa e, no ano passado, ao Hospital de São João e à CUF Porto.
Ainda em 2023, o Curry Cabral recebeu um segundo robot, constituindo-se assim um Centro de Cirurgia Robótica da ULS São José (onde, só em 2023, já se realizaram cerca de 500 cirurgias). Além do Da Vinci, outros modelos têm chegado aos hospitais portugueses, como são os casos do Hugo, desenvolvido pela Medtronic, e do Rosa, da Zimmer Biomet, instalados no Hospital de Santo António, no Porto.
REMOÇÃO E RECONSTRUÇÃO
Mesmo não sendo compatível com todas as especialidades nem podendo resolver tudo (há operações que vão continuar a ser feitas pela cirurgia convencional), a verdade é que a cirurgia robótica tem vindo a expandir-se em Portugal. Da cirurgia geral à torácica, passando pela urologia, a ginecologia, a obesidade ou a ortopedia, são muitas as áreas a beneficiar desta tecnologia avançada. Nas mais variadas situações. Vejamos apenas alguns exemplos.
No pioneiro Centro de Cirurgia Robótica e Minimamente Invasiva do Hospital da Luz, é usada sobretudo em urologia para remover cancros da próstata (70% da cirurgia robótica oncológica), mas também do rim e da bexiga, além da reconstrução da bexiga ou da hipertrofia benigna da próstata. Mas há mais. “Obesidade, cancro do reto, cirurgia hepática e cardíaca, ginecologia oncológica…”, enumera Kris Maes.
Já no Curry Cabral, Hugo Pinto Marques, diretor da Cirurgia Geral e da Unidade Hepatobiliopancreática, estabeleceu inicialmente como áreas “prioritárias para o desenvolvimento da robótica” as cirurgias colorretal, da obesidade (sobretudo o bypass gástrico) e a hepática. A par disto, e à medida que o programa evoluiu, introduziram-se outras especialidades como a torácica, a ginecológica e a do pâncreas.