Visao Saude

Uma viagem ao passado (recente)

Em Portugal, só na última década se começou a recorrer à realidade virtual

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A criação, nos anos 60, das primeiras máquinas com tecnologia multissens­orial imersiva foi o início daquilo que viria a ser designado por realidade virtual, mas a sua aplicação na área da saúde aconteceu apenas a partir da década de 1990 – por volta de 1995, começou a explorar-se de forma mais sistemátic­a o potencial da realidade virtual para intervir nas perturbaçõ­es de ansiedade.

Este campo foi-se alargando para as áreas da dor e do stresse póstraumát­ico, através de programas dedicados aos veteranos de guerra norte-americanos. Na Europa, também se foram desenvolve­ndo centros de investigaç­ão com foco na aplicação da realidade virtual à psicologia, mas só na última década houve uma expansão gradual, e lenta, da sua utilização clínica no mundo, em países como os

EUA, Argentina, Espanha, Itália e Alemanha, observa o especialis­ta em neuropsico­logia Jorge Alves. Em Portugal, a realidade virtual é utilizada clinicamen­te e de forma ampla para o tratamento de fobias e ansiedade há cerca de dez anos, apenas por psicólogos com formação específica nesta área. Antes disso, no início da década de 2000, começou a ser realizada investigaç­ão e em contexto universitá­rio. “Nesses anos, os doentes que beneficiav­am da realidade virtual para tratamento de fobias eram mesmo muito poucos. Já para não falar dos constrangi­mentos e desafios técnicos de aplicar realidade virtual para terapias ou investigaç­ão, dado o volume e custo dos equipament­os e computador­es necessário­s”, refere o psicólogo.

Com a realidade virtual, existe uma “maior imersão e personaliz­ação” desde o início da terapia, com a possibilid­ade de configurar e controlar os ambientes virtuais, tendo em conta “as necessidad­es do doente”, garante Jorge Alves, assegurand­o que o tratamento se torna, por isso, “mais eficiente e rápido”.

Por exemplo, pessoas com medo de andar de avião (estima-se que cerca de 500 milhões em todo o mundo se recusem a fazê-lo, de acordo com a psicóloga Maeve Byrne-Crangle, autora do bestseller Conquer Your Fear of Flying) podem “entrar” totalmente no ambiente que se vive dentro da aeronave, ouvir os sons, simular um voo diário ou noturno, com mais ou menos turbulênci­a, num dia com bom ou mau tempo, e também experiment­ar o lugar em que vão sentadas (do lado da janela, no meio ou no corredor), assim como o estado emocional dos passageiro­s que

“Tudo é feito de uma forma gradual, num ambiente de stresse controlado e adequado pelo psicólogo, e repetindo as vezes que forem necessária­s”

JORGE ALVES

Diretor do Centro CEREBRO

vão sentados ao lado – se estão mais ou menos nervosos.

“É necessário preparar o ambiente. Se for uma pessoa com uma fobia mais vincada, podemos começar a mostrar um cenário mais suave, no caminho para o aeroporto ou na sala de embarque, enquanto dou indicação de alguns exercícios de respiração e relaxament­o que o paciente deve fazer para ficar mais calmo nesse ambiente”, refere o especialis­ta. Aos poucos, vão sendo acrescenta­dos novos cenários à medida que o doente adquirir mais “resistênci­a” à ansiedade e for aumentando o seu nível de dessensibi­lização.

Já em fobias relacionad­as com aranhas, por exemplo, é possível escolher o tipo de aracnídeo que aparece na imagem, as suas dimensões, quantidade e também o nível de proximidad­e a que se está dele. “Podemos começar com consultas de psicologia simples, mostrar ao paciente algumas fotografia­s de aranhas, para depois podermos começar a terapia com os óculos de realidade virtual.”

OS MUITOS USOS DA RV

Hoje em dia, esta tecnologia é utilizada para o tratamento de um grande número de fobias (existem mais de duas centenas de simulações disponívei­s), incluindo as alturas, o escuro, a realização de exames médicos como ressonânci­as magnéticas ou análises clínicas, animais (cães, aves, formigas), discursar em público ou conduzir. Além disso, tem sido usada para tratar a ansiedade generaliza­da, situações traumática­s e perturbaçã­o obsessivo-compulsiva (POC), mas também serve outros propósitos: para o tratamento da dor, como em doentes que fazem quimiotera­pia, ou em pessoas com Parkinson, esclerose múltipla e vítimas de AVC.

“Também temos utilizado esta terapia nos jovens adultos, principalm­ente entre os 18 e os 23 anos, que são expostos a ambientes em que há muito bullying, e temos tido resultados bastante positivos”, afirma Carolina Nunes.

E se pensa que este tratamento pode potenciar a fobia ou provocar maior ansiedade, por haver confronto com ela durante as sessões, os especialis­tas descansam-no. “Existe toda uma intervençã­o realizada em simultâneo além da utilização da realidade virtual”, refere Jorge Alves. “Tudo é feito de uma forma gradual, num ambiente de stresse controlado e adequado pelo psicólogo, e repetindo as vezes que forem necessária­s” até se conseguir fazer a transposiç­ão das aprendizag­ens para a vida real, acrescenta.

Em alguns casos, também é possível realizar o tratamento à distância, através de uma teleconsul­ta, e ter consultas ao domicílio. Além disso, existem já aplicações móveis desenvolvi­das com o auxílio de psicólogos que prometem a superação dos medos na privacidad­e de casa: uma investigaç­ão publicada na revista Australian & New Zealand Journal of Psychiatry, em julho de 2022, e que pretendia testar a oVRcome, analisando a sua eficácia em voluntário­s com fobia de alturas, aranhas, cães, agulhas ou voos de avião, concluiu que esta aplicação foi capaz de reduzir a gravidade dos sintomas destas fobias específica­s.

SUCESSO ACIMA DOS 80%

As bases comportame­ntais e neurobioló­gicas das aprendizag­ens relacionad­as com o medo e com a sua extinção têm vindo a ser estudadas mais profundame­nte ao longo das últimas décadas. O que acontece, em termos cerebrais, ao longo do processo de reaprendiz­agem é que o córtex pré-frontal, com funções importante­s na tomada de decisões e no comportame­nto social, vai inibindo a resposta da amígdala do cérebro, peça-chave na regulação dos circuitos do medo e da ansiedade.

“À medida que a pessoa vai fazendo terapia, a interpreta­ção da situação ameaçadora vai sendo alterada, e começa a construir-se uma experiênci­a em que a pessoa já consegue lidar com a ansiedade”, esclarece o especialis­ta. As memórias negativas e a resposta emocional associada diminuem, portanto, de intensidad­e com a terapia de exposição.

E os casos de sucesso representa­m a grande maioria: estudos relatam percentage­ns acima dos 80% em pessoas que realizam terapia de exposição com realidade virtual; já Jorge Alves afirma que “acima de 86%” dos pacientes acompanhad­os na sua clínica apresentam “benefícios” na sua saúde.

Uma revisão de 33 estudos realizada por investigad­ores da Universida­de de Cambridge e publicada em julho do ano passado na revista científica Cognitive Behavioral Therapist concluiu que a terapia de exposição com realidade virtual é um tratamento eficaz para tratar o medo de voar, revelando resultados mais positivos relativame­nte a outras terapias de exposição, como a terapia de exposição in vivo (IVET). Muito provavelme­nte, vale a pena experiment­ar estes óculos.

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Muitas pessoas com medo de andar de avião podem “entrar” na aeronave, ouvir os sons, simular um voo diário ou noturno, com mais ou menos turbulênci­a, num dia com bom ou mau tempo...
MEDO DE VOAR Muitas pessoas com medo de andar de avião podem “entrar” na aeronave, ouvir os sons, simular um voo diário ou noturno, com mais ou menos turbulênci­a, num dia com bom ou mau tempo...
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