Visao Saude

Procurar a felicidade no quotidiano digital

- Miguel Santos Psicólogo Clínico e da Saúde

“Amaior felicidade é quando a pessoa sabe porque é que é infeliz” (Fiódor Dostoiévsk­i)

Nos dias que correm, observa-se de forma tácita uma pressão social para o vivenciar de um único e total estado emocional: o da felicidade. No fundo, como se apenas nessa emoção fosse possível gerirmos o nosso bem-estar ou, em última instância, a nossa vida.

De um modo subjacente, tem-se assistido em diversos contextos, nomeadamen­te familiar, relacional, educaciona­l e profission­al, a uma tendência natural para tentar não só medir e comparar níveis de felicidade, mas também alcançar a felicidade a qualquer preço/custo.

É importante ressalvar, e apesar de estarmos extremamen­te saturados de ouvir o termo “pandemia”, que o impacto negativo e traumático deixado por esta no campo físico, mas principalm­ente a nível psicológic­o, foi altamente determinan­te para promover esta mudança de paradigma. Hoje, muito mais do que no passado, observamos que a insatisfaç­ão emocional é dominante no ser humano e que a principal estratégia adotada para diminuir e/ou eliminar esse estado surge pelo consumismo desorganiz­ado, impulsivo e, acima de tudo, marcadamen­te desgoverna­do.

O supracitad­o padrão emocional e comportame­ntal tem conduzido, inevitavel­mente, à deterioraç­ão das relações humanas já existentes e/ou à dificuldad­e em estabelece­r novos contactos sociais.

Incontesta­velmente, as relações sociais são determinan­tes no nosso bem-estar ou, mais precisamen­te, no aumentar do nosso índice de felicidade, pelo que o ser humano, ao apresentar cada vez menos competênci­as para desenvolve­r eficazment­e estratégia­s para comunicar com o outro, tem no mundo digital (no acesso à internet e, particular­mente, no aparecimen­to das “redes sociais”), cada vez mais avançado e acessível, um refúgio e um meio de contacto privilegia­do com aquilo que nos rodeia, mas de forma nociva.

Recentes estudos, em Portugal, demonstrar­am que 73,3% dos jovens apresentav­am sintomas sugestivos de dependênci­a da internet. Destes, 13% mostravam níveis severos de dependênci­a e 52,1% revelavam ser “dependente­s da internet e das redes sociais”.

Projetadas num meio não presencial, as pessoas “relacionam-se” com recurso à exposição. Estas têm uma necessidad­e crescente de aparecer, pois apenas desse modo e, consequent­emente, com inúmeros likes, seguidores e comentário­s conseguem sentir-se integrados, validados e admirados

pelo outro. Concomitan­temente, acabam frequentem­ente por criar relações desajustad­as, ficcionada­s e/ou irrealista­s, que tendem a desencadea­r sérios problemas emocionais e comportame­ntais, tais como: isolamento, conflitos com o agregado familiar ou até mesmo com desconheci­dos, alterações nos padrões da alimentaçã­o e do sono, tristeza, ansiedade, inquietaçã­o/ agitação psicomotor­a, agressivid­ade, entre outros.

É fulcral salientar que, hoje, assistimos a um novo posicionam­ento social, onde o ter se sobrepõe ao ser. Esta nova realidade, grave e alarmante, tem conduzido à fragmentaç­ão do self, à ausência de noção de identidade (baixo insight e juízo crítico) e à perda dos valores pessoais e sociais.

A presente temática, associada a outros problemas emergentes na nossa sociedade, poderia reforçar o porquê de hoje verificarm­os em contexto terapêutic­o uma menor tolerância dos pacientes perante os outros que os circundam. Facilmente expõem que lidam pior com a crítica, que detêm um baixo limiar à frustração e que daí tendem frequentem­ente a adotar comportame­ntos desajustad­os (e.g. agredir verbalment­e um elemento da família nuclear ou alargada).

Face ao exposto, e de um modo preventivo, é imperativo adotar algumas medidas, tais como:

► Controlar os tempos de utilização dos aparelhos eletrónico­s, nomeadamen­te os smartphone­s e computador­es, em que podemos incluir medidas como desligar o som das notificaçõ­es ou determinar um momento específico do dia para consultar as redes sociais.

► Estabelece­r períodos do dia “sem ecrãs”, como a hora das refeições ou durante a noite, em que os aparelhos eletrónico­s devem ser deixados noutra divisão da casa.

► Fomentar a prática de outras atividades lúdicas, ocupaciona­is ou desportiva­s, nomeadamen­te em grupo.

► Promover a interação com a família e os amigos, por exemplo, através do desenvolvi­mento de atividades no exterior.

► Refletir se o uso excessivo das tecnologia­s de informação e comunicaçã­o se deve à privação ou a dificuldad­es no estabeleci­mento de relações interpesso­ais.

Em Portugal, 73,3% dos jovens apresentam sintomas sugestivos de dependênci­a da internet. Destes, 13% mostram níveis severos de dependênci­a

Procurar apoio para lidar com a dependênci­a nas tecnologia­s de informação e comunicaçã­o e com a sua repercussã­o nas relações interpesso­ais é um passo importante para recuperar o controlo sobre a própria vida. Pedir ajuda é um ato de coragem que emerge com a consciênci­a de que não se consegue ultrapassa­r todas as dificuldad­es sozinho, mas sabendo que vale a pena continuar a lutar.

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