Procurar a felicidade no quotidiano digital
“Amaior felicidade é quando a pessoa sabe porque é que é infeliz” (Fiódor Dostoiévski)
Nos dias que correm, observa-se de forma tácita uma pressão social para o vivenciar de um único e total estado emocional: o da felicidade. No fundo, como se apenas nessa emoção fosse possível gerirmos o nosso bem-estar ou, em última instância, a nossa vida.
De um modo subjacente, tem-se assistido em diversos contextos, nomeadamente familiar, relacional, educacional e profissional, a uma tendência natural para tentar não só medir e comparar níveis de felicidade, mas também alcançar a felicidade a qualquer preço/custo.
É importante ressalvar, e apesar de estarmos extremamente saturados de ouvir o termo “pandemia”, que o impacto negativo e traumático deixado por esta no campo físico, mas principalmente a nível psicológico, foi altamente determinante para promover esta mudança de paradigma. Hoje, muito mais do que no passado, observamos que a insatisfação emocional é dominante no ser humano e que a principal estratégia adotada para diminuir e/ou eliminar esse estado surge pelo consumismo desorganizado, impulsivo e, acima de tudo, marcadamente desgovernado.
O supracitado padrão emocional e comportamental tem conduzido, inevitavelmente, à deterioração das relações humanas já existentes e/ou à dificuldade em estabelecer novos contactos sociais.
Incontestavelmente, as relações sociais são determinantes no nosso bem-estar ou, mais precisamente, no aumentar do nosso índice de felicidade, pelo que o ser humano, ao apresentar cada vez menos competências para desenvolver eficazmente estratégias para comunicar com o outro, tem no mundo digital (no acesso à internet e, particularmente, no aparecimento das “redes sociais”), cada vez mais avançado e acessível, um refúgio e um meio de contacto privilegiado com aquilo que nos rodeia, mas de forma nociva.
Recentes estudos, em Portugal, demonstraram que 73,3% dos jovens apresentavam sintomas sugestivos de dependência da internet. Destes, 13% mostravam níveis severos de dependência e 52,1% revelavam ser “dependentes da internet e das redes sociais”.
Projetadas num meio não presencial, as pessoas “relacionam-se” com recurso à exposição. Estas têm uma necessidade crescente de aparecer, pois apenas desse modo e, consequentemente, com inúmeros likes, seguidores e comentários conseguem sentir-se integrados, validados e admirados
pelo outro. Concomitantemente, acabam frequentemente por criar relações desajustadas, ficcionadas e/ou irrealistas, que tendem a desencadear sérios problemas emocionais e comportamentais, tais como: isolamento, conflitos com o agregado familiar ou até mesmo com desconhecidos, alterações nos padrões da alimentação e do sono, tristeza, ansiedade, inquietação/ agitação psicomotora, agressividade, entre outros.
É fulcral salientar que, hoje, assistimos a um novo posicionamento social, onde o ter se sobrepõe ao ser. Esta nova realidade, grave e alarmante, tem conduzido à fragmentação do self, à ausência de noção de identidade (baixo insight e juízo crítico) e à perda dos valores pessoais e sociais.
A presente temática, associada a outros problemas emergentes na nossa sociedade, poderia reforçar o porquê de hoje verificarmos em contexto terapêutico uma menor tolerância dos pacientes perante os outros que os circundam. Facilmente expõem que lidam pior com a crítica, que detêm um baixo limiar à frustração e que daí tendem frequentemente a adotar comportamentos desajustados (e.g. agredir verbalmente um elemento da família nuclear ou alargada).
Face ao exposto, e de um modo preventivo, é imperativo adotar algumas medidas, tais como:
► Controlar os tempos de utilização dos aparelhos eletrónicos, nomeadamente os smartphones e computadores, em que podemos incluir medidas como desligar o som das notificações ou determinar um momento específico do dia para consultar as redes sociais.
► Estabelecer períodos do dia “sem ecrãs”, como a hora das refeições ou durante a noite, em que os aparelhos eletrónicos devem ser deixados noutra divisão da casa.
► Fomentar a prática de outras atividades lúdicas, ocupacionais ou desportivas, nomeadamente em grupo.
► Promover a interação com a família e os amigos, por exemplo, através do desenvolvimento de atividades no exterior.
► Refletir se o uso excessivo das tecnologias de informação e comunicação se deve à privação ou a dificuldades no estabelecimento de relações interpessoais.
Em Portugal, 73,3% dos jovens apresentam sintomas sugestivos de dependência da internet. Destes, 13% mostram níveis severos de dependência
Procurar apoio para lidar com a dependência nas tecnologias de informação e comunicação e com a sua repercussão nas relações interpessoais é um passo importante para recuperar o controlo sobre a própria vida. Pedir ajuda é um ato de coragem que emerge com a consciência de que não se consegue ultrapassar todas as dificuldades sozinho, mas sabendo que vale a pena continuar a lutar.