Something new
Este novo Quorum podia ser só um restaurante com uma cozinha irrepreensível – que é –, mas a verdade é que só o compreendemos a sério através das histórias. É uma equipa muito jovem: Tiago Santos, o chef, com 31 anos, é o mais velho (a mais nova tem 19), e depressa percebemos que é uma equipa feliz. Juntos remodelaram a casa de banho do restaurante (“Quando aqui chegámos, perguntei-lhes: 'Gostam da casa de banho? Não? Então o que é que vamos fazer em relação a isso?'"), recuperam móveis que encontram no lixo na garagem de Tiago, vão todos juntos comer cozido. Quinzenalmente, viajam para conhecer um produtor (pode vê-los na parede de fotografias logo à entrada) que forneça o restaurante. Seja de vinho, de carne, de vegetais, para que todos possam perceber o entusiasmo que está por trás da experiência ou da tradição de cada prato. Para que se possam entusiasmar também, e isso nota-se. Nota-se mesmo.
Quando Rui Silvestre (o seu antecessor) o convidou, Tiago disse imediatamente que não. Depois de ter ido ao restaurante, de ter conversado sobre o que era essencial, ou seja um “conjunto de liberdades muito bem definidas”, decidiu aceitar. Mas o que o motivou a sério foi o facto de a sua equipa do Areias do Seixo querer vir com ele. “‘Bora, vamos tomar Lisboa.
Não é que tomaram? Sim, vamos finalmente falar de comida. O pão é feito na cozinha com farinhas orgânicas e fermentação selvagem, método usado por antigos egípcios e fenícios. De trigo ou de centeio, vêm lindos para mergulhar em azeite Angélica, manteiga da ilha das Flores ou manteiga de cabra, da zona oeste do continente. Depois vêm os snacks, em procissão. Encaixada num tronco de madeira está uma patanisca, tão fina como um chip. Em cima de uma pedra, pequeno e redondo, está o pão com chouriço de uma massa finíssima que se quebra à primeira dentada e deixa o recheio explodir-nos dentro da boca. E depois há o polvo seco, ainda deitado em cima do fogareiro, a piscar o olho às iguarias que eram deixadas ao sol nas feiras populares. Era difícil aumentar a parada, não fosse pelo ovo de tomatada, que parece só uma gema perfeita à vista, mas ao palato é tomate puro, em seda.
Não queremos ser spoilers de todo o menu, por isso vamos saltar diretamente para a selvajaria total. Arroz selvagem, coelho selvagem e cogumelos selvagens, que poderíamos dizer que é comida de conforto mas estaríamos redondamente enganados, porque nada neste prato é confortável. É forte, é pujante, e até pode saber ligeiramente a casa, mas obriga-nos a demorar eternidades a descascar-lhe as camadas, a processar a plenitude do que nos é oferecido. Terminamos com a barriga de porco transmontano, cozinhada durante 28 horas a 65 graus, que vem num molho de colagénio (resista à tentação de enfiar a cara no prato, por favor) feito com joelhos, cabeças e pés. A acompanhar vem o grão e o farnel, que é como quem diz o pão embrulhado em pano que é para limpar o prato no fim – afinal, não queremos dar mais trabalho a esta equipa incrível.
A primeira sobremesa volta a descer ao Alentejo. A laranja dos pobres chama-se assim porque a laranja alentejana, mais pequenina e mais ácida, era pobrezinha quando comparada com a algarvia, grande e doce. Por isso era macerada com mel e poejos, e esta chega ao prato com mel de marmelada, pó de poejo, suspiros e o perfeito azeite Angélica. Sucede-se a tarte de maçã de Alcobaça, com gelado de maçã e nabiça – os dois tão frescos e doces que nos engasgámos quando o chef diz que não têm qualquer adição de açúcar – e enxovalhada (que começou a ser feita no Barreiro pelos camarros, que ao domingo coziam o pão e, quando queriam algo mais doce, acrescentavam banha de porco, açúcar e canela. O nome delicioso é porque os camarros achavam uma vergonha que isto fosse pão e não sobremesa). Se acabou? Não. Com o café de balão ainda vem o pecaminoso pão de ló do Landal.
Como é que chegamos a este menu, que enxovalha tantos outros? Para cada ingrediente faz-se uma árvore de decisão, que lista todas as possibilidades de confeção, explica Tiago. Depois é que vem o método Walt Disney (sim, a sério) para baralhar e atirar para o ar a ideia mais estapafúrdia. Isto com todos os produtos. O prato começa no papel, é planeado, é pensado, e quando chegam à cozinha, Tiago e a sua equipa já só têm de fazer pequenos ajustes. “É um trabalho mais de partitura, e não tanto de jam session.” Ah, já dissemos que Tiago também é baixista? Também toca bateria e outra catrefada de instrumentos. Pelo meio, é vencedor europeu de FIFA (sim, o jogo) e foi finalista do Fnac Poesia 2009. “Sou um gajo muito inquieto e aborreço-me com facilidade. Não consigo fazer a mesma coisa durante quatro semanas.” Talvez por isso estivessem, naquele momento, a engarrafar sidra feita por eles. Também fizeram cerveja artesanal (“Se os outros sabiam fazer, porque é que eu não sabia?”) e vão partir para o whiskey. “Eles são fantásticos, o restaurante é mais deles que meu. Eu venho cá dar bitaites de decoração”, ri-se. Rimo-nos com ele, de barriga cheia. Quorum, R. do Alecrim, Lisboa.