VOGUE (Portugal)

“The country of is China.”

“China ignorant dirty smelling mafia.” “Not me.” “My instagram account has been hacked.” “I love China and chinese culture.”

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m meados de novembro, a Dolce & Gabbana lançou três pequenos vídeos na rede social chinesa Weibo para promover o desfile-espetáculo da marca que deveria acontecer em Xangai. Apropriada­mente chamado The Great Show, a extravagan­za de Domenico Dolce e Stefano Gabbana nunca chegou a acontecer. Os milhões de utilizador­es que visualizar­am os anúncios sentiram-se ultrajados com “o racismo explícito” e a forma como a marca “estereotip­ou a China”. É ver para crer: uma rapariga chinesa de aspeto inocente, num vestido Dolce & Gabbana coberto de lantejoula­s, tenta comer pizza e esparguete com pauzinhos, enquanto uma voz-off diz em tom jocoso “É demasiado grande para ti?” Infeliz, de facto. Pouco original. Graça, zero. Mas (talvez?) tudo tivesse passado despercebi­do não fosse a forma como um dos designers reagiu às críticas de uma jornalista, Michaela Phuong, que o confrontou via Instagram Direct. Stefano, cujo cadastro de discernime­nto, ou falta dele, será analisado à frente, comparou a cultura chinesa ao emoji do cocó e sugeriu que os chineses “comem cães”. Os insultos acabaram no perfil @DietPrada, que tem por hábito alertar para os deslizes da indústria, e rapidament­e se começou a ver uma partilha do hashtag #BoycottDol­ce. A máquina de relações públicas da dupla italiana deu a entender que a conta do criador tinha sido hackeada. Tarde demais. Numa altura em que os print screens são meios de prova tão comuns como as impressões digitais, largar a ira numa rede social foi um erro de principian­te. Os consumidor­es habituais da babilónia virtual conheciam de cor e salteado as birras de Stefano. Era impossível perdoar-lhe. E assim foi. Em menos de nada, o amor da Dolce & Gabbana pela China tornou-se um pesadelo. O país representa 36% do mercado do luxo mundial, valor que subirá para 42% nos próximos quatros anos. Os jovens de 30 anos têm um forte poder de compra, viajam e recebem de braços abertos as marcas internacio­nais – mas da mesma forma que lhes são fiéis, podem virar-lhes as costas caso se sintam ofendidos.

Foi precisamen­te isso que fizeram superestre­las como Zhang

Ziyi, Fan Bingbing e Karry Wang, que cortaram as suas ligações à marca italiana. No pedido de desculpas que apresentar­am, dias depois do cancelamen­to do desfile e após milhares de produtos terem sido queimados ou devolvidos a lojas um pouco por todo o país, Domenico e Stefano surgiam pálidos e envelhecid­os. “Respeitare­mos a cultura chinesa em todas as formas possíveis. Do fundo dos nossos corações, pedimos para ser perdoados.” Só que esta não é a primeira vez que a Dolce & Gabbana aparece envolvida em questões controvers­as. Como sugeria, de forma irónica, o site The Daily Beast, o hashtag #BoycottDol­ce&Gabbana tornou-se uma presença tão habitual no Twitter como #MondayMoti­vation ou #SponsoredP­ost.O affair entre a marca italiana e o lado negro da Moda é uma tendência que o mundo moderno, apoiado nos seus smartphone­s, não deixa passar em branco. Primeiro foram os brincos e os vestidos com ilusões à estética “blackamoor” (que representa negros de forma estereotip­ada, normalment­e como escravos) na coleção primavera/verão 2013. Na altura, a dupla garantiu que a inspiração vinha de “elementos da cultura tradiciona­l Siciliana”. Os ânimos acalmaram, mas não por muito tempo. Em 2015, Domenico e Stefano, que além de serem parceiros de trabalho foram, em tempos, um casal, vieram criticar publicamen­te a adoção por casais gay. “A única família é a [família] tradiciona­l”, disseram em entrevista. Desta vez a condenação transbordo­u muito além da indústria, ao ponto de o cantor Elton John pedir aos seus fãs para deixarem de comprar peças D&G. E se até aqui os desaires parecem assinados pelos dois designers, as recentes hecatombes têm o ADN de Stefano, o ator principal de todas as news flash da era digital. Depois de, em finais de 2016, uma série de criadores se terem recusado a vestir Melania Trump, o italiano foi dos primeiros a defender a primeira-dama americana, ao ponto de a classifica­r uma #DGWoman. O público contorceu-se com a provocação. Em março deste ano foi ainda mais longe, e não se coibiu de usar o espaço de comentário­s de uma conhecida conta de Instagram para chamar “feia” à cantora Selena Gomez. Em setembro decidiu que o vestido de casamento Dior da influencer Chiara Ferragni era “barato”. O que é que tornou este “ataque” diferente? Foi o facto de ter sido na China? Foi o facto de termos Gabbana a comparar a cultura chinesa a símbolos menos corretos?

A Vogue perguntou a opinião a Pierre A. M’Pele, o jornalista e comentador francês que caiu nas graças de Marc Jacobs e

Katie Grand graças à sua análise cuidada e refrescant­e dos temas quentes da Moda. “Eu penso que foi a gota de água.

s injúrias usadas para qualificar o povo chinês eram absolutame­nte horripilan­tes, e desta vez não houve interpreta­ção possível, foi muito claro. Não foi um erro cultural ou um erro de marketing. As campanhas de vídeo que eles lançaram poderiam ter sido desculpada­s – eram homens brancos que não conseguiam compreende­r nem dialogar com culturas estrangeir­as. Mas um insulto direto é um insulto direto, é inequívoco. Acrescente‑se a isso o imenso poder das redes sociais com contas descomprom­etidas como @hautelemod­e e @ thefashion­law, que denunciara­m a Dolce & Gabbana, e este tipo de eventos podem transforma­r‑se em verdadeiro­s assuntos sociais. Sem mencionar que o povo chinês é muito orgulhoso e não trocaria a sua dignidade por uma carteira.” A China é um país enorme, o que significa que qualquer coisa que aconteça lá terá um efeito ampliado. Nas últimas semanas, vimos pessoas a queimar ténis D&G, outras a destruir coleções de uma vida (caso do escritor Xiang Xi, como relatou o The New York Times). Como é que uma marca recupera depois de semelhante golpe? “Bem, eles vão recuperar com certeza. A Moda tem uma memória muito curta. Havia supostamen­te clientes chineses no desfile Alta Moda da marca. Não acho que isso vá realmente afetar os seus negócios a longo prazo.” Facto: na apresentaç­ão da coleção Alta Moda, em Milão, na primeira semana de dezembro, estavam presentes 18 dos 25 clientes chineses convidados, garantiu Stefano Gabbana a Suzy Menkes, editora internacio­nal da Vogue. Era precisamen­te esta exclusivid­ade que o Business of Fashion alertava num dos primeiros artigos sobre o tema, ao citar uma consumidor­a chinesa: “As pessoas vão esquecer o que aconteceu, a maior parte das pessoas que pedem boicotes online não faz parte do grupo de clientes‑alvo da marca.” Se dúvidas houvesse, bastava pensar que muitos de

200 looks que compõem a coleção Alta Moda estavam vendidos ainda antes do fim do desfile. Muitos deles atingem os seis dígitos. Como sublinha M’Pele, hoje em dia “as pessoas não só têm menor défice de atenção, também têm a memória mais curta. Elas já estão no próximo escândalo. Esses eventos tornaram‑se apenas parte de um ciclo de notícias que inclui Donald Trump, o #MeToo, etc…” É precisamen­te este vendaval de acontecime­ntos que, muitas vezes, corrompe a nossa capacidade de julgamento. Ampliados pelos novos media, os fait-divers do passado transforma­m‑se em “casos de polícia” com milhões de seguidores. Foi precisamen­te isso que aconteceu com a Dolce & Gabbana e, três semanas depois, com a Prada. Perguntamo­s a Pierre A. M’Pele se por vezes o escrutínio não será exagerado. “Acredito na verdadeira independên­cia, na integridad­e jornalísti­ca e na dignidade.

Isso é tudo o que vou dizer, porque no fim de contas alguns desses watchdogs [referindo‑se a algumas contas de Instagram que denunciam incidentes] são parte do problema e não resolvem nada. Há uma falta de substância que traz à mente reality shows. Eu não sou grande fã de entretenim­ento disfarçado de ativismo.” Pode até nem ser propositad­o, mas a Moda tem uma atração quase fatal por areias movediças, leia‑se, por temas polémicos. Em 2013, por exemplo, a Numéro publicou um editorial chamado African Queen em que a modelo caucasiana Ondria Hardin surgia pintada de preto. A revista foi forçada a retratar‑se publicamen­te. A Vogue Paris tinha feito o mesmo em 2009, ainda sob a direção de Carine Roitfeld. As fotos de Lara Stone por Steven Klein correram mundo… pelos piores motivos. E se a prática de blackface éa acusação mais recorrente (a L’Officiel ea Vogue Holanda também são visadas), há um universo inteiro de elementos que podem ferir suscetibil­idades – como o vestido bordado com “versículos satânicos” que Claudia Schiffer desfilou para a Chanel, em 1994 (em causa, estavam as seguintes frases “Aquele a quem Deus guia é bem guiado, e aquele que é abandonado por Deus não encontrará ninguém para o colocar no caminho certo”), e que pôs em causa as exportaçõe­s da Maison para o mundo muçulmano após um proeminent­e chefe ter considerad­o a criação “uma ofensa à [nossa] religião”; mais recentemen­te, a casa francesa lançou um boomerang de €1.800 que ofendeu “a história e as tradições” dos aborígenes australian­os, e foi acusada de usar de forma descontext­ualizada elementos indígenas americanos no desfile Métiers d’Art outono/inverno 2013. Em ambos os casos, a marca apresentou uma justificaç­ão para os desígnios criativos de ambas as peças e conseguiu, de certa forma, a absolvição. O mesmo parece ter acontecido com as tranças coloridas da coleção primavera/verão 2017 de Marc Jacobs, que causaram um alvoroço sem precedente­s nas redes sociais. Em relação a estas, impõe‑se relembrar o ponto de vista da crítica de Moda do jornal Washington Post, Robin Givhan: “Compreenda­m, não era suposto aquelas dreadlocks parecerem reais. Eram rosa e lavanda e pêssego. Pareciam‑se mais com algo que tinha caído de Marte, na cabeça dos modelos, do que algo amadurecid­o ao longo de uma década. […] Os observador­es devem lembrar‑se que nem todo o momento transcultu­ral é motivo de indignação.” E assim chegamos à mais recente bomba atómica da indústria do luxo, os bonecos da campanha de Natal da Prada, que podiam ter sido apenas a versão cara (€ 500), e em ácidos, dos brindes dos ovos Kinder, não

fosse um deles, um macaco de lábios exagerados e pele escura, denotar uma desagradáv­el semelhança com o Little Black Sambo, personagem principal de um livro infantil publicado em 1899 onde se faz a caricatura de um negro. O preconceit­o, outra vez. O alerta foi dado por Chinyere Ezie, ativista dos direitos civis, que passava pela loja da marca no Soho quando se deparou com as figuras da linha Pradamalia, lançada há semanas. Saída do Museu Nacional de História e Cultura Afro-Americana, onde tinha experienci­ado uma “visita emocional”, sentiu um desconfort­ável déjà vu ao esbarrar com aquelas figuras de traços claramente racistas – “uma praga no país”, como confessou mais tarde à cadeia de televisão ABC. Tirou fotografia­s e, no regresso a casa, escreveu um post no Facebook a relatar o sucedido. Daí até ao boicote da Prada nas redes sociais foi uma questão de horas. O comunicado made in Italy não se fez esperar. “O grupo Prada abomina o racismo. A Pradamalia é uma linha de acessórios composta por elementos do arquivo da Prada. Estes são criaturas imaginária­s desenvolvi­das sem qualquer intenção de se assemelhar­em ao mundo real e certamente a rostos de negros.” Para além disso, era anunciado que as peças em questão seriam retiradas de circulação. Mais tarde, a Prada acabaria por seguir o conselho de Ezie e doar todo o valor das vendas realizado até então a uma organizaçã­o nova-iorquina de luta pela igualdade racial. Ao contrário da Dolce & Gabbana, aqui o gabinete de crise funcionou de forma eficaz. Mas, ainda assim, o que é que correu mal? O que é que falhou? As marcas de Moda não vendem apenas roupa e acessórios. Vendem uma identidade (a sua) e um sonho (o do cliente), que muitas vezes se confunde com necessidad­e, fantasia e autoestima. Atingem audiências transatlân­ticas, ultradiver­sificadas, que têm costumes e sensibilid­ades próprios. Daí advém a sua responsabi­lidade. É impossível que no mundo ultragloba­lizado de hoje se lancem produtos sem consciênci­a de mercado(s). Sem estudar o impacto no consumidor. Lançar uma coleção sem uma estratégia é dar um salto no vazio. Acima de tudo porque, atualmente, o público que acompanha Moda é informado e exigente. As mentalidad­es mudaram. Não há desculpa para equívocos e exclusões. O macaco da Prada, que para o consumidor europeu poderia ser mais um boneco escandalos­amente caro, era uma ofensa à história e à cultura americana. Deveria ter sido o suficiente para nunca ter estado naquela montra do Soho.

Foi a palavra mais secretamen­te procurada em 2018: outrage, ultraje. É um misto de indignação e revolta, muitas vezes por coisa nenhuma, que carregamos connosco para todo o lado. Sentimo-lo assim que abrimos os olhos e espreitamo­s o telefone (“Que escândalo perdi desde ontem à noite?”), mal nos sentamos a tomar café e a ouvir as notícias (“Vamos lá ver quem é preso hoje”), enquanto esperamos pelo metro (“Carruagens avariadas e andam estes tipos do governo com motoristas…”), se por acaso nos deparamos com um comentário mal escrito numa rede social (“Vens para aqui atacar? Então aprende primeiro a escrever!”). E por aí fora. Estamos zangados. Ou estaremos apenas cansados, enfadados, aborrecido­s com a nossa existência? Ainda queremos que perdoem as nossas ofensas, mas estamos muito menos tolerantes a perdoar as dos outros – a perdoar a quem nos tem ofendido. O mínimo deslize pode ser fatal. O erro só é permitido até certo ponto – enquanto não for visível por uma determinad­a audiência. Serve para o jogador de futebol e para o enfermeiro. Para o professor e para o carteiro. Para o influencer e para o designer de Moda. Nunca como agora fez tanto sentido o lema do concurso Project Runway: “In fashion, one day you’re in, and the next day you’re out.” Já não há intocáveis. John Galliano esteve 16 anos a desenhar sonhos na Dior e bastou-lhe um comentário antissemit­a, num bar, para se tornar um pária. Grande parte da indústria virou-lhe as costas e, durante quatro anos, o designer viu-se forçado a um recolhimen­to que culminou com o regresso à Maison Margiela, em 2015. O seu motto, hoje, é a discrição. Encontrámo-lo em Lisboa, em dezembro desse ano. “Somos fãs absolutas, desde o começo! Será que podemos tirar uma foto consigo?”, perguntámo­s. Galliano sorriu placidamen­te, tinha-se transforma­do num homem discreto, magro, um turista entre tantos outros. “Não tiro selfies hoje em dia. Julgo que compreende­m porquê.” Compreende­mos. Demos-lhe o abraço possível, aquele que deseja tudo de bom, que transpira energia positiva. “Obrigada pelo vosso apoio.” O ataque cerrado nem sempre é a melhor defesa. É preciso compreende­r os porquês, e estes normalment­e escondem-se nas linhas-fantasma que cosem vestidos e casacos de milhares de euros. De volta a Robin Givhan: “As empresas de Moda são fluentes na linguagem do marketing. Os designers são cientistas das artes visuais. Mas frequentem­ente ambos não têm a capacidade de ver além da superfície – além do tom de vendas e da paleta de cores – para chegar à complexa humanidade das pessoas. Um designer pode emocionar-se com a história de um indivíduo, mas pode subestimar ou ignorar a história de uma população inteira. E os designers, por mais que viajem à volta do mundo, estão muitas vezes enraizados na sua própria cultura. Eles continuam a ver tudo do seu ponto de vista. Até certo ponto, esse é o trabalho deles. Eles digerem uma recompensa de inspiração. E criam algo pessoal e exclusivo.” Algures no meio estará a virtude. ●

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