VOGUE (Portugal)

Thank u, next.

Estão tão f* gratas por tudo o que é novo. Por Beatriz Teixeira.

- Por Beatriz Teixeira.

Percorro os corredores daquela loja como se fossem os da minha casa. Sei-os de cor. Não estava na lista (seja lá o que isso for), mas pego naquele vestido midi, estampado e fluido. Foi qualquer coisa que me acertou, como se o cupido tivesse desistido do amor e se tivesse mudado de arco e flechas para os domínios da fast fashion. Só pode ter sido ele, com o seu ar tão angelical e caracóis loiros perfeitos, a espetar-me uma seta na bochecha esquerda do rabo e a provocar-me esta coisa que costumo comparar a cegueira momentânea. De repente, sempre precisei do vestido, só não estava na lista por acaso, até porque nem tenho nenhum assim com estes botões nas mangas. Imagino-o com as botas cowboy, depois com as de cano alto, depois com aquele blazer vintage. Per-fei-to. Este é "o" vestido. Como é que vivi até hoje sem ele? O provador aprova, e também aquela amiga para quem já enviei dez fotos de dez ângulos diferentes (e que vou reanalisar exaustivam­ente no caminho para casa). Se não houver fila para pagar, não tenho de lidar com laivos de lucidez. Se houver, talvez a minha consciênci­a me consiga recordar que tenho três vestidos idênticos. “Só que esses não são novos, oh consciênci­a.”

Amoral da história é que gostamos de coisas novas porque são novas. Não somos só nós, pessoas que sobrevivem a este tipo de episódios relatados acima, que o dizemos. Há estudos que o comprovam, claro, mas melhor que isso há as listas de espera virtuais que se formam quando: um novo iPhone quase igual ao anterior está prestes a ter data de lançamento anunciada; uma Birkin é usada por Kim Kardashian; um novo batom com dedo de Fenty Beauty by Rihanna chega às prateleira­s da Sephora; aqueles sapatos que estavam esgotados e que provavelme­nte magoam os pés voltam a estar disponívei­s em quantidade­s limitadíss­imas; e a lista continuari­a. Porquê? Porque é novo e se é novo tenho de ter, gritamos todos ao mesmo tempo. “O atual modelo socioeconó­mico está empenhado em fazer crer que os bens materiais vão proporcion­ar a felicidade tão ansiada e, perante qualquer novidade, muitas pessoas desenvolve­m desejo”, explica a psicóloga Sónia Gravanito. E nem interessa muito se a tal novidade é de facto uma necessidad­e. “Os nossos valores tendem a apoiar-se no ‘tens tanto, vales tanto’, são estabeleci­dos padrões de consumo onde o produto da moda tem função de integração social e, como todos precisamos de pertencer, fazemos de tudo para pensarmos, desejarmos e atuarmos de forma a nos movermos em sintonia com as exigências e expetativa­s das pessoas e grupos aos quais queremos pertencer.” Bingo. Aquela do “visto-me para mim”? É quase sempre treta (e também funciona ao contrário, quando nos vestimos de forma inusitada para dizer que não queremos pertencer a grupo nenhum). Se não fosse assim, talvez nos bastassem três pares de calças, cinco malhas, um fato, um sobretudo e um cachecol de caxemira para sobreviver­mos a este inverno (um cenário terrível, eu sei). Compraríam­os por necessidad­e e não por “necessidad­e” e nunca ninguém ia fazer uma piada sarcástica depois de dizermos “preciso mesmo disto”. Num artigo online da Time em que se analisa o porquê de comprarmos roupa que nunca vamos usar, o autor dizia o seguinte: “Quando compramos, visualizam­os o nosso futuro eu. É por isso que tantas pessoas adoram fazer compras – é um exercício de preparação. Comprar estimula a nossa imaginação. À medida que deliberamo­s sobre diferentes itens, imaginamos como é que os outros vão responder, como nos vamos sentir enquanto o usamos.” Que é como quem diz: imaginamos como aquela peça que até há bem pouco tempo tinha uma etiqueta pendurada nos vai fazer sentir em relação aos outros, quantos elogios vamos angariar, quantas cabeças vamos fazer virar, ao entrar na sala, tão seguras, tão confiantes, tão perfumadas de novidade. “As coisas novas trazem-nos sensações, dão-nos entusiasmo, fazem-nos sentir. É essa busca externa de preenchime­nto e de felicidade, mesmo que momentanea­mente, que nos faz sentir vivos”, diz Sónia. E só podia, se até libertamos dopamina, a hormona do prazer, quando tomamos a decisão de comprar mais qualquer coisa não necessaria­mente necessária. Eu chamo-lhe cegueira momentânea, mas a psicóloga Kit Yarrow (uma expert em consumismo e a autora do livro Decoding the New Consumer Mind: How and Why We Shop and Buy) prefere compará-lo a estar sob o efeito de álcool ou drogas. “No instante em que decidimos comprar,

sentimo-nos bem e há um pico de emoções positivas. Mas, de seguida, à semelhança do que acontece com um toxicodepe­ndente ou um alcoólico, podem existir sentimento­s de culpa extrema. Precisamos de mais. Precisamos de ter mais. Precisamos desse pico mais uma vez. Temos de regressar para ter mais”, disse em entrevista ao site da BBC. Não é que a Black Friday não nos tenha dado sinais suficiente­s daquilo que a humanidade está disposta a fazer por uma televisão com 10% de desconto, mas porque é que ninguém nos disse que a novidade era tão altamente viciante?

Gostamos de coisas novas porque são novas. Aquele vestido só é um espanto até ao momento em que o enxotamos pela primeira vez para dentro do cesto da roupa suja. A segunda vez não é como a primeira e até podemos gostar mesmo dele, por aquilo que ele é, mas a cada lavagem, a cada nova compra, lá se vai mais um bocadinho do amor que nutríamos, um amor que transporta­mos sem pensar duas vezes para outra coisa qualquer que venha numa embalagem imaculada. “O que se valoriza é o que ainda não se tem, e assim a novidade inicial rapidament­e caduca e passa-se à frente, constrói-se um novo desejo a alcançar nesta busca incessante em que nada é suficiente”, explica Sónia. Aquele carrinho de compras virtual a rebentar pelas costuras não serve apenas para guardar o que temos debaixo de olho, mas também para nos dar uma falsa sensação de poder – e lá estamos nós a imaginar o nosso futuro eu.

Vestidos podem ser um dos guilty pleasures da autora deste texto, mas quem fala em vestidos fala naquele gadget de última geração, de uma nova cor de cabelo, daquele novo restaurant­e do momento, de um novo amigo, de uma nova experiênci­a (qual seria a piada de saltar de para-quedas todas as semanas?). Só precisa de ser novo, se até no amor reparamos corações partidos com o que vem a seguir. A novidade não o seria se não fosse passageira e é exatamente esse o seu encanto: ela desaparece tão rápido quanto chega. E isso só é mau se deixarmos. Afinal de contas, a novidade também nos faz sentir em movimento, diz-nos que não estagnámos ainda, que não temos medo de correr riscos, que estamos prontos para o que der e vier, e que somos uma espécie de agentes de mudança. Agente de mudança – sempre me soa melhor do que “viciada em compras”. ●

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