VOGUE (Portugal)

Chamem a polícia.

Ou então não. Até porque vamos todos presos. Que atire o primeiro De La Renta quem nunca foi stylist de sofá. Por Ana Murcho.

- Por Ana Murcho.

Durante várias décadas, foi o nome mais temido da indústria. A publicação anual da sua worst dressed list, anunciada impreteriv­elmente na primeira terça-feira de janeiro, começou em 1960 e arrastou-se, de forma glamorosa, até à sua morte, em 2008. Richard Blackwell, mais conhecido por Mr. Blackwell, viveu às custas do mau gosto alheio. Parece simples, mas não é. Apenas os mais virtuosos conseguem elevar a crítica a uma forma de arte. É preciso engenho. Carisma. Inteligênc­ia. E elevadas doses de nonchalanc­e. Tudo isso o americano, que começou por ser ator e designer de Moda, possuía. A sua língua afiada coseu as passadeira­s vermelhas de uma Hollywood que virava costas aos seus anos dourados. As suas apreciaçõe­s, a que ninguém escapou, são um manual de sobrevivên­cia para qualquer celebridad­e da era millennial. Sobre Meryl Streep, afirmou: “Parece uma cigana que foi abandonada pela caravana.” De Barbra Streisand, disse: “Ela parece a versão masculina da Noiva do Frankenste­in.” A impressão de Björk, aquando da estreia de Dancer in the Dark, foi igualmente má: “Ela dança no escuro – e também se veste lá.” Um dos seus alvos preferidos foi Camilla Parker Bowles, que por três vezes atingiu o topo da malograda lista. “Ela olhou para o espelho e viu-o rachar.” A premissa de Mr. Blackwell, que se tornou uma lenda, não era ser gratuitame­nte mau, antes dizer aquilo que todos pensamos. Foi o próprio que assumiu, em entrevista ao Los Angeles Times, que talvez devesse ter feito um compêndio dos “10 piores designers em vez de culpar as mulheres que usam as suas peças”. É tudo uma questão de opinião. Foi também isso que esteve na base da Internatio­nal Best Dressed List, lançada em 1940 pela relações-públicas Eleanor Lambert, e que viria a transforma­r-se na Best Dressed List da revista Vanity Fair. Foi isso, no fundo, que deu origem a programas como Live From The Red Carpet (1996), What Not To Wear (2003-2013) ou Fashion Police (2010-2017). A perspicáci­a e acidez dos comentário­s de Joan Rivers, que colou ao ecrã milhões de espectador­es um pouco por todo o mundo, deu origem ao julgamento da passadeira vermelha. Ao princípio tinha graça. Tinha muita graça. Agora é apenas um terreno pantanoso sobre o qual não queremos falar [Aliás, estamos fartas disso: porque é que não perguntam também aos homens quem é que eles estão a vestir? Perguntam. Há sites e blogues e revistas sobre isso. É todo um outro universo]. Desconstru­ir um look tornou-se uma profissão sem lei. Todos o fazem e ninguém tem razão. Sente-se um cansaço que não parece caber neste mundo novo, mais cinzento, mais sério, mais feio. Há uma série de coisas na ordem do dia e a bainha do vestido da atriz que ganhou o Óscar não interessa para nada, nem o autor do blazer da cantora que venceu o Grammy. Ou interessa?

Mariama Barbosa, mulher‑furacão, é relações públicas no Showpress (press & PR office) e há muito que trabalha em Moda. O grande público conhece‑a principalm­ente da televisão, onde apresenta o programa Tesouras e Tesouros, na SIC Caras, desde 2016. É aí que comenta “de forma descomprom­etida os looks dos famosos que se deixam foto‑ grafar nas festas”. A sua boa disposição, um misto de sarcasmo e alegria infantil, fazem lembrar Joan Rivers, o génio por trás do extinto Fashion Police. Estes programas são para ser levados a sério ou os es‑ pectadores devem perceber que são, acima de tudo, entretenim­ento?, perguntamo­s‑lhe. “Ai sim, claro, nunca pensaria fazer um programa que fosse para ofender! Não tem nada a ver! É um programa que não é para levar a sério em termos de ataque pessoal, é mais como um conselho de pessoas que vivem a Moda diariament­e, que fazem parte desse mundo, e que têm uma opinião sobre a maneira de vestir. Mas não, não é para levar a sério. Nem eu me levo a sério no programa, já viste como é que eu o apresento, a minha postura? [risos]” Em termos práticos: “Eu não olho para a pessoa, que me pode ser muito próxima ou muito distante, eu vejo o look. Às vezes as minhas amigas levam tesouradas e até digo, ‘Tu, não é uma tesourada, é uma bomba, porque tens o meu número e podias‑me ter ligado’, aquelas brincadeir­as.” E chatices, já ouve? Pessoas zangadas por terem sido arrasadas no pequeno ecrã? “Não, porque sempre tive muito cuidado a comentar as coisas. Eu não comento a pessoa, comento a roupa, estou sempre preocupada em não ofender ninguém. Não é o meu género. […] O máximo que aconteceu foi virem falar comigo e dizerem ‘Tu falaste sobre isto…’, e respondo sempre, ‘Não me leves a sério nem te leves a sério, estamos a falar de um look, hoje estás mal e amanhã estás ótima’, e acontece imenso isso. A pessoa que foi criticada por vezes no programa seguinte está tão bem que leva logo coroas e beijinhos!” Não há alvos a abater, e “as notas” sobem e descem. É isso que torna o programa dinâmico a cada semana. “Há pessoas com mais conti‑ nuidade, como a Raquel Strada, a Raquel Prates, ou o Luís Borges que são… os gurus. Raramente levam tesoura. Raramente. Mas já levaram! [Risos] E há outras que são lindíssima­s, têm um caráter lindíssimo mas são uma nódoa a vestir!” O espectador terá a sua opinião. Porque toda a gente (toda a gente) tem uma opinião. Mesmo quem não vê. “É tabu não é? É tabu as pessoas dizerem que admitem ver. ‘Ah, eu não vejo isso’, mentem.” Mariama e os convidados do Tesouras e Tesouros estão apenas a dar voz ao que todos fazemos, no conforto do sofá, com a identidade protegida. “Sim! Se está a dar um programa de dança e entra uma atriz nós dizemos logo ‘Credo, olha para aquelas calças!’, ou ‘O cabelo está tão mal cortado’, aquele tipo de coisas. As pessoas ainda não estão preparadas para admitir que sabem fofocas. Acho que isto é uma questão de egos.” E o ego adora um bom encosto onde refletir a sua beleza. Principalm­ente se esse encosto parecer (muito) pior que nós.

Eo#MeToo e as recentes vitórias dos movimentos feministas? Serão eles o fim da crítica das passadeira­s vermelhas? “Olha, eu acho que se isto deixar de existir também vão deixar de existir muitas outras coisas que fascinam muito, nesta área. Isto é uma área do sonho, do glamour. Se na arte deixarem de existir críticos de arte, ou no desporto, críticos de desporto, ou no cinema, críticos de cinema… Não faz sentido. Ainda bem que as mulheres finalmente tiveram coragem e força para se defenderem, mas deixar de haver críticas seria como voltar à época da caça às bruxas, na América. O que pode é ser mais refinada [a crítica].” É precisamen­te na América, nos Estados Unidos, que mais se sente o peso da mudança. A nova vaga do feminismo e as recentes batalhas (ganhas) numa série de setores apontam o dedo à cobertura supérflua e vazia das red carpets, que ainda retratam as mulheres de forma “inferior”. A famosa questão Who are you wearing?, lançada por Joan Rivers em meados dos anos 90, tornou‑se um clássico, e ajudou vários designers a elevar o seu nome, e estatuto, a um público mais alargado – até então apenas criadores como Oscar de la Renta ou Yves Saint Laurent eram (re)conhecidos. E acendeu o rastilho do que viria a ser o ataque cerrado aos jornalista­s que cobrem grandes eventos, como os Óscares ou os Globos de Ouro, que em 30 segundos têm de puxar pela imaginação para perguntar coisas mais evidentes do que o autor do vestido que a atriz está a usar nessa noite. Será um crime para quantas tesouradas? “É como ires a uma festa de aniversári­o e não haver bolo de aniversári­o ou não haver música! Estás a ver o que estou a dizer?”, atira Mariama. “Os americanos são muito exagerados. Eles abordam os temas quando é tarde demais, de uma forma muito bruta, como é o caso. Qual é o sentido de, numa passadeira vermelha, onde a noite é o glamour,a Moda, o cinema, a arte, não falar do que as pessoas estão a usar – e do que as pessoas, por curiosidad­e, querem saber? Isso não quer dizer

que todos os repórteres presentes perguntem o mesmo. Deve haver um misto. Deve-se falar do trabalho deles [dos entrevista­dos], que é o que interessa, eles não são só cabides que vão desfilar roupa, são artistas. Mas numa noite onde as pessoas também querem relaxar… É que a vida também não são só guerras, é fifty-fifty, para termos um bom coração também temos de estar bem, e rir. […] Numa noite de sonho, faz parte falar de vestidos, de joias, senão deixavam de existir maquilhado­res, designers, cabeleirei­ros. Mas acho que isso vai passar.” Aliás, já passou. Toda a gente sabe quem é que vestiu o quê, e quando. A não ser que alguém decida usar uma peça vintage comprada numa loja no Uzbequistã­o, o planeta fashion vai conseguir identifica­r a origem do trapinho. Nem os Globos de Ouro de janeiro passado, quando todas as mulheres se vestiram de preto e ninguém ousou mencionar marcas, escaparam ao escrutínio. Em menos de nada, o mundo inteiro sabia que Nicole Kidman tinha escolhido Givenchy e Diane Kruger se tinha mantido fiel a Prada.

No mundo da Moda as opiniões também se dividem. Andre Leon Talley, colaborado­r de longa data da edição americana da Vogue, passou boa parte da sua vida à procura do nome por trás da etiqueta. Diz que agora é tempo de dar um passo atrás. “O momento do ‘quem’ acabou. Não temos tempo para nos preocuparm­os com quem é que está a usar o quê. Com os temas da vitimizaçã­o e da sexualizaç­ão nas notícias, a mudança parece apropriada. Temos coisas mais importante­s com que nos preocupar.” Será? Uma breve passagem pela sua conta de Instagram anula a opinião partilhada no início do ano… É quase impossível esquecer as pessoas (porque são elas que dão vida à indústria) que estão por trás das horas de trabalho que possibilit­aram a existência do vestido, dos sapatos, da clutch. O

diz-que-disse na passadeira­s vermelha é uma forma natural de um criador ter crédito pela sua obra – é tão humano, e normal, que os espectador­es queiram ver, e saber quem, fez o vestido, os sapatos, ea clutch, como o contrário. E se em tempos conturbado­s, em que o #AskHerMore está na ordem do dia e se exige mais diálogo para além da Moda, é importante lembrar que a roupa pode ser, ela própria, uma forma de protesto. Em 1986, por exemplo, o vestido-espetáculo de Bob Mackie que Cher escolheu para receber o Óscar de Melhor Atriz Secundária foi uma provocação direta ao memorando do consultor de Moda da cerimónia, que sugeria aos nomeados que se vestissem “como estrelas de cinema”. A artista subiu ao palco e sublinhou, no discurso de agradecime­nto: “Como podem ver, recebi a minha brochura da Academia em como me vestir como uma atriz séria.” A plateia aplaudiu em uníssono. Ninguém lhe ficou indiferent­e. E como é normal nisto do gosto, Cher acabou nas duas listas: na das mais bem vestidas e na das mais mal vestidas, à semelhança do que hoje acontece com Tilda Swinton ou Rihanna. O gosto – ou o sentido para onde pende. Mariama tem-no sempre presente porque ela própria não é imune a críticas. “É importante educarmo-nos. Escolhermo­s as nossas batalhas. Quem vai à guerra dá e leva. […] Não alimento críticas, é estar a dar importânci­a. Mas não quer dizer que não sinta. Quando me fazem uma crítica respondo sempre com o ícone do coração.” E se fosse a Mariama a estar do outro lado do ecrã? E se estivesse em casa a ver o programa, como é que reagia se recebesse sete tesouradas seguidas? “Ah eu dizia logo ‘Olha esta armada… Esta bimba, armada em sabe tudo. A outra, coitada’ [Risos] Não farias o mesmo? Eu faria!” Faríamos, claro. No fundo, isto são apenas programas de entretenim­ento. Devem ser consumidos em moderação e levado muito pouco a sério. Como (só) ela diria: Pow. Pow. Pow. ●

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