VOGUE (Portugal)

Fúria à solta.

O ativismo é moda, ou estamos mesmo a mudar o mundo? Por Rebecca Johnson.

- Por Rebecca Johnson.

Quando chegou para a nossa entrevista, acabadinha de sair do comboio vinda de Washington, com o trolley ao lado, Ana Maria Archila (uma das “pessoas muito mal-educadas que gritam nos elevadores”, segundo Donald Trump) parecia tudo menos furiosa. Com as maçãs do rosto largas, sorriso caloroso, lenço colorido e brincos compridos, a mulher de 39 anos parecia a nossa educadora de infância preferida.

Poderia mesmo ser a feroz ativista que ficou famosa por, juntamente com Maria Gallagher, de 23 anos, encurralar o senador Jeff Flake no elevador no decorrer das audiências de confirmaçã­o de Kavanaugh?

“Aquilo que você está a fazer é permitir que alguém que violou uma mulher se sente no Supremo Tribunal! Você tem filhos! Pense neles! Eu tenho dois filhos!” A cada frase, a voz aumentava de volume com a fúria e o senador encolhia-se, cada vez mais, no canto do elevador, murmurando “obrigado”, “obrigado”, quando aquilo que queria dizer era “vão-se embora”, “vão-se embora”, diante das câmaras da CNN.

Archila sorri quando lhe menciono o episódio. “As pessoas da minha organizaçã­o não param de se rir disso.

Eu sou uma pessoa calma, aquela que raramente fala nas reuniões”, diz. “Não faz parte da minha natureza ser agressiva.” Mas os tempos que correm não são normais.

Desde a eleição de 2016, que grupos ativistas como o Center for Popular Democracy (CPD), de que Archila é diretora coexecutiv­a, têm mudado de um tipo de organizaçã­o tradiciona­l para uma tática que apelidam de “caçar com cão” – confrontar representa­ntes eleitos em locais públicos, como os corredores do Edifício Hart do Senado, os halls de entrada dos seus gabinetes,

reuniões das câmaras municipais e até portas de casas de banho em aeroportos. É uma estratégia inspirada nos primeiros tempos do ativismo da sida, quando manifestan­tes da ACT UP faziam coisas como acorrentar­em-se à varanda da Bolsa de valores ou encerrarem a Food and Drug Administra­tion durante um dia. Os conservado­res não gostavam disso na altura e continuam a não gostar disso agora. “Parece algo saído dos filmes de Frankenste­in… está toda a gente aos gritos e aos berros”, disse o comentador Raymond Arroyo na Fox News, um dia depois de a gravação de Archila ser exibida na televisão nacional. O senador Orrin Hatch disse às pessoas que se manifestav­am contra Kavanaugh para “crescerem”. Mitch McConnell, Líder da Maioria do Senado, chegou ao ponto de dizer que os “caçadores” estavam a ajudar os Republican­os. “A tática que usaram saiu-lhes pela culatra”, disse ele ao The New York Times, “entupindo os corredores com gente que se porta pessimamen­te. O esforço que fizeram para nos humilhar ajudou-me mesmo a unificar a minha conferênci­a. Por isso, agradeço a estes palhaços por toda a ajuda que nos dão.” Shaunna Thomas, cofundador­a da UltraViole­t, uma organizaçã­o de defesa das mulheres, discorda veementeme­nte. “Até nós chegarmos”, comenta, “a confirmaçã­o era um dado adquirido”. O seu grupo, com seis anos de existência, adotou a estratégia da “caça”, bem como outras mais media-friendly, como sobrevoar a casa de Christine Blasey Ford, em Palo Alto, com um estandarte a dizer “Thank You, Christine”. A atividade da UltraViole­t aumentou durante as audiências de Kavanaugh, diz Thomas. No gabinete da senadora Susan Collins, em Portland, no estado do Maine, “centenas de pessoas começaram a aparecer. Primeiro com uma frequência semanal, depois diária”. Collins escapou a todas as tentativas de “caça” durante as audiências em DC, diz-me Archila, mas a senadora Lisa Murkowski, a única republican­a que votou contra a confirmaçã­o de Kavanaugh, reuniu-se várias vezes com as ativistas. Há alguns meses, quando entreviste­i a senadora Tammy Duckworth, Washington estava em polvorosa com a notícia de manifestan­tes terem interrompi­do o jantar de Kirstjen Nielsen, secretária da Segurança Interna e encarregad­a da implementa­ção da polémica separação de pais e filhos na fronteira com o México. Metade da cidade estava em choque, mas Duckworth não. “Os nossos antepassad­os que fundaram esta nação – eles diziam o que pensavam. Eles levantavam as suas vozes”, disse-me Duckworth. “Por isso, se há gente que quer abordar seja lá quem for e perguntar-lhe ‘porque está a separar os filhos das suas mães?’, acho muito bem. Façam isso. Porque, afinal de contas, estamos todos aqui para servir o povo.

E é preciso que nos lembremos de quem estamos a servir.” Atualmente, Trump chama “máfia radical” aos Democratas nos comícios – fazendo os seus apoiantes delirar. Mas Archila encolhe os ombros quando lhe pergunto o que pensa sobre as críticas à sua tática. “A cultura da ‘caça’ veio para ficar”, diz, acrescenta­ndo que há um número cada vez maior de mulheres

a aparecer nas manifestaç­ões, sejam estas contra o fim do direito aos cuidados de saúde, detenção de crianças imigrantes ou negação de alegações de agressão. Se conseguirm­os reunir 15 pessoas numa sala, a organizaçã­o de Archila manda alguém fazer uma sessão de treino, mas os grupos de cidadãos ativistas com os quais o CPD trabalha podem ter milhares de membros. E, independen­temente daquilo que o Presidente pulicou no

Twitter, nenhum desses manifestan­tes foi pago – embora o

CPD pague as multas caso alguém seja preso e precise de ajuda financeira. (Mesmo assim, esse dinheiro é angariado por uma conta separada, chamada GoFundMe, dedicada ao financiame­nto de ações diretas.) É verdade que a Open Society Foundation­s, de George Soros, é uma das financiado­ras do CPD, mas nenhum do dinheiro dessa organizaçã­o é usado para pagar multas.

Senador, fui violada. As ativistas “caçadoras” são ensinadas a confrontar representa­ntes eleitos com este tipo de histórias pessoais. Foi isto que Robyn Swirling, sobreviven­te de agressão sexual e defensora dos direitos das vítimas de agressão sexual, disse ao senador Lindsey Graham à porta das audiências de Kavanaugh. (“Vá à polícia”, disse-lhe ele.) Archila pôs fim a um silêncio de mais de 30 anos quando contou a sua própria história de agressão sexual ao senador Flake. Não era um assunto sobre o qual ela quisesse falar publicamen­te, mas tem-se obrigado a conceder entrevista­s a jornalista­s que a pressionam para saber mais pormenores sobre o ataque. “Eu tinha cinco anos e ele tinha 15”, diz ela, para acabar com as perguntas intrusivas. “Não precisam de saber mais nada.” É importante manter a história na boca do povo, diz Archila, porque os políticos – sobretudo os senadores – tendem a viver dentro de uma bolha. “O que estamos a tentar fazer é mudar a forma como veem o mundo”, explica. “São maioritari­amente homens e não percebem a experiênci­a das mulheres nesta sociedade. Eles veem números num gráfico, mas precisam de ver os seres humanos. É essencial romper-lhes as bolhas porque eles são muito fortificad­os pelas pessoas que lhes dão dinheiro. Não podemos pedir-lhes as coisas delicadame­nte. Temos de ser brutas.” No entanto, ser bruta não está na natureza de muitas mulheres. No seu novo livro, Rage Becomes Her: The Power of Women’s Anger, Soraya Chemaly descreve como as meninas são ensinadas a suprimir a raiva desde cedo.

Em crianças, dizem-nos que a raiva nos torna feias e desagradáv­eis”, diz, fazendo referência a estudos em que crianças em idade pré-escolar associam mais rotineiram­ente a raiva a rostos masculinos do que a rostos femininos. Nas salas de aula, as raparigas são instruídas no sentido de usarem vozes mais “suaves”, três vezes mais do que os rapazes. Numa experiênci­a particular­mente sádica, investigad­ores deram presentes intenciona­lmente dececionan­tes a meninos e meninas para avaliarem as suas reações. Em média, as meninas são mais propensas a sorrir e agradecer do que os rapazes. No entanto, não é como se as mulheres não estivessem furiosas. Estudos mostram que homens e mulheres sentem raiva com uma intensidad­e semelhante: a diferença está em como a processam. Os homens pontuam mais alto em áreas como a agressão física e gestos impulsivos (dar murros na parede, por exemplo). As mulheres tendem a revelar menos a raiva e a ruminar. A depressão, como Freud e todos os outros psiquiatra­s que visitei quando estava na casa dos 20 anos me diziam, é raiva virada para dentro, o que pode explicar porque é que as mulheres sofrem duas vezes mais depressões do que os homens. Por vezes, exprimir a raiva anima-nos. Como Ruth Bader Ginsburg gosta de dizer: “É melhor ser uma cabra do que um rato assustado.” Na política, porém, exprimir abertament­e a raiva pode ser fatal para uma mulher. Quando a senadora Kirsten Gillibrand criticou um oficial das forças armadas numa audiência por não abordar o problema, muito premente, do assédio sexual, o comentador televisivo Tucker Carlson disse que ela estava “completame­nte descontrol­ada”. A senadora Elizabeth Warren é constantem­ente criticada pelo pecado de levantar a voz quando se emociona

(“Há uma raiva ali que é estridente”: Mika Brzezinski). Quando a Casa Branca quis distanciar-se da sua antiga assessora Omarosa Manigault Newman, alguém (Manigault Newman suspeita que um dos funcionári­os do chefe de gabinete) divulgou uma história a dizer que ela tivera um ataque numa festa de Natal na Casa Branca, gritando obscenidad­es, enquanto tentava furar a barreira de segurança. O único problema era que ela não fora à festa em questão. No entanto, o estrago estava feito. O (irónico) nome das memórias da sua campanha? Unhinged.

Quando as mulheres exprimem eficazment­e a sua indignação, a história tem uma certa tendência para a branquear e torná-la mais aceitável. Por exemplo, cresci a acreditar que Rosa Parks era uma velhota cansada que se recusara a levantar-se do seu lugar na secção reservada a brancos daquele autocarro em Montgomery porque lhe doíam os pés.

A verdade é que Parks era uma ativista experiente que sabia exatamente o que estava a fazer. Como escreveu na sua autobiogra­fia, publicada em 1992, “eu só estava cansada de ceder”. Nenhuma mulher da esfera política foi mais massacrada pelas expectativ­as ambivalent­es da sociedade do que Hillary Clinton, que foi frequentem­ente criticada durante a última campanha presidenci­al por ser demasiado controlada. Nos debates, enquanto Bernie Sanders espetava um dedo rígido no ar,

Clinton permanecia sobrenatur­almente calma. “O que poderia ter feito para ser ‘mais real’?”, pergunta ela nas suas memórias recentemen­te publicadas, What Happened. “Dançar em cima de uma mesa? Disparar palavrões? Desmanchar-me a chorar? Eu não sou assim. Se eu tivesse feito alguma dessas coisas, o que teria acontecido? Teria sido desfeita em pedacinhos.”

Ciente de que não estava a criar uma ligação visceral com o eleitorado, Clinton contratou um especialis­ta em linguístic­a para a ajudar quando se dirigia a grandes multidões. Ele aconselhou-a a concentrar-se em respirar fundo e pensar em coisas felizes para que, quando subisse ao palco e a multidão começasse a rugir, ela conseguiss­e resistir a reagir naturalmen­te, gritando de volta. Ela disse ao especialis­ta que ia tentar, mas depois pediu-lhe que referisse uma única figura pública feminina que conseguiss­e dominar essa capacidade de reagir à energia feroz de uma multidão com uma voz suave. Ele não conseguiu fazê-lo. É possível que estejamos, finalmente, a criar espaços para um bom tipo de fúria. As manifestan­tes contra Kavanaugh estavam indignadas, mas ninguém atirou pedras nem incendiou carros. No dia após a confirmaçã­o, a minha caixa de email estava cheia de mensagens a incentivar a fúria. “Eu. Estou. Indignada” escreveu Linda Sarsour, a organizado­ra da National Women’s March. O partido Working Families disse-me que a minha “raiva sagrada é poderosa”. Eu não costumo participar em manifestaç­ões. Forço-me a ir às grandes, mas sempre que ouço os gritos da multidão não consigo deixar de pensar em Mussolini. No entanto, uma das boas coisas das redes sociais é que podemos ter uma vida ativista através dos feeds dos outros. Enquanto via Kavanaugh choraminga­r e rosnar, fiquei atenta ao Facebook, onde a minha amiga Dina Seiden, uma artista de 46 anos de

Nova Iorque que fora de autocarro até DC para participar numa manifestaç­ão da Planned Parenthood, publicava atualizaçõ­es. Inicialmen­te, Seiden não planeava ser presa, mas quando viu o senador Graham fazer o seu (agora infame) discurso sobre a audiência, algo dentro dela mudou. “Assistir a esta total e completa falta de compaixão, ouvindo-o dizer que o processo fora manipulado, fez-me perder a cabeça”, diz Seiden.

Àsemelhanç­a de muitas mulheres, ela passou meses num estado de amarga desilusão. “Estava sempre à espera e a fúria ia aumentando”, diz. “Por fim, senti que tinha de ir a jogo.” Não regressou a Nova Iorque com a Planned Parenthood, juntando-se a um encontro no Senado na manhã seguinte e depois, impulsivam­ente, a um grupo de “caçadoras”. As coisas não correram bem. “Eu estava muito desconfort­ável”, admite. “Sou mais do estilo pacificado­r.

Não está na minha natureza gritar com ninguém.”

Embora ela não conheça Archila, viu-a no corredor, a seguir políticos com uma competênci­a desenvolvi­da graças à experiênci­a que ela não pensava conseguir alcançar. “Senti-me humilde, em comparação”, diz. Passado algum tempo, porém ela descobriu o seu próprio ritmo. Aproximou-se do senador GOP Mike Lee, do Utah, apelando à sua consciênci­a. “Vá lá”, disse-lhe. “Você tem dúvidas.

Você sabe que tem. Você não tem de fazer isto.” Houve um momento de ligação – mas foi fugaz. Outros legislador­es limitaram-se a ignorá-la, exceto o senador democrátic­o

Sheldon Whitehouse, que posou alegrement­e para uma selfie.

A sua detenção não foi uma surpresa – raramente é, quando estamos a manifestar-nos. A polícia avisou Seiden pelo menos três vezes que seria detida se não se fosse embora.

Ela já não se queixa da experiênci­a. Ela e as outras detidas não foram trancadas numa cela. Havia WCs portáteis. Mas estar sentada num banco durante cerca de sete horas, sem comida e com as mãos atadas atrás das costas, foi doloroso. Quando regressou a Nova Iorque, estava tão cansada que adoeceu com uma terrível constipaçã­o e ficou uma semana de cama. Se valeu a pena? “Sinceramen­te, não sei”, responde. Quando foi detida e ouviu a notícia de que o senador Flake, aparenteme­nte, mudara de ideias e pedira uma investigaç­ão ao FBI, Seiden diz que teve “uma sensação de júbilo, mas depois temos de pagar por essa sensação momentânea estando presas durante horas, ou mesmo dias. Havia 88 mulheres lá nessa manhã e apareceram milhares no dia seguinte. Na próxima vez, talvez sejam milhões. Eles não conseguem prender-nos a todas. A dada altura, não serão capazes de lidar com a resistênci­a e cederão. Voltem a perguntar-me nessa altura.” ●

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