VOGUE (Portugal)

#CoupleGoal­s.

Pixy Liao não é a fotógrafa do amanhã. É a do hoje.

- Por Irina Chitas.

Há 12 anos que Pixy Liao trabalha na série Experiment­al Relationsh­ip.

Há 12 anos, quando falar na dominância feminina numa relação a dois era trabalhar na ótica do surrealism­o, Pixy partiu do que era seu para falar do que era de todas nós, de todos nós. Há 12 anos que namora com Moro e há 12 anos que nos conta a sua história, que é a nossa história, de forma às vezes rude, às vezes bruta, às vezes injusta e às vezes terna, como todas as relações são. Há muito mais dentro de cada imagem, porque há muito mais dentro de cada coração.

Pixy viu Moro pela primeira vez no primeiro dia da orientação para estudantes internacio­nais. A cara dele ficou-lhe, não sabia nada a não ser que estudava música, mas pensou que gostaria de saber qual era a sensação de ser namorada dele. Nunca tinha pensado em nada de semelhante em relação a qualquer outra pessoa, e só falou com ele um ano depois. Convidou-o para sair? Para um date? Um café? Não. Perguntou-lhe se queria ser modelo nas suas fotografia­s.

Liao tinha-se licenciado na China e, quando saiu da faculdade, tornou-se designer gráfica autodidata durante três anos. Sentiu-se frustrada, queria ter o total controlo criativo do seu trabalho e, por isso, mudou-se de Xangai para Memphis, em 2006, para estudar Fotografia no College of Art. “Era a primeira vez que saía do meu país e a primeira vez que estudava Arte. Levou-me entre um a dois anos a conseguir familiariz­ar-me com o novo ambiente e a perceber quem é que eu queria ser neste novo ambiente”, conta à Vogue. Foi em Memphis que conheceu Moro. No início, Pixy só queria usá-lo como um prop nas suas imagens – pedia-lhe que se fingisse morto na banheira ou que se enrolasse, todo nu, dentro de uma mala de viagem. Quando mostrava estas imagens nas aulas, professore­s e colegas perguntava­m, “Como é que tratas o teu namorado assim?” e Pixy não entendia a pergunta, encarava as imagens como absolutame­nte normais. “Reparei que as pessoas não queriam saber das minhas fotografia­s, em vez disso estavam muito preocupada­s com a forma como eu o tratava. Algo que eu tomava como garantido era visto como anormal”, conta-nos. Se era natural para o casal, porque é que não era natural para os outros? Se ela pedia e Moro fazia, o é que os outros não entendiam? Pixy adicionou-se às imagens e Experiment­al Relationsh­ip nasceu.

Só o nome, por si só, é um rasgo de génio: “No início, sendo uma mulher chinesa a namorar um homem mais novo, que é japonês, não parecia que esta fosse ser uma relação muito duradoura. Por isso chamei-lhe ‘experiênci­a’, só para ver quanto tempo duraria. Era o que sentia em relação a esta relação. Acho que, no geral, todas as relações são experiênci­as, umas mais do que outras.” Verdade. Passamos a vida a experiment­ar, dure a experiênci­a apenas uma noite ou apenas uma década, e só sabemos que acertámos quando morremos e não podemos experiment­ar mais. Mas aqui a chave, para além do amor e da incógnita que é a vida, é Pixy falar no facto de ser uma mulher chinesa e Moro ser um homem japonês. Denotamos aí algum preconceit­o? “Nunca me considerei uma pessoa preconceit­uosa. Mas quando soube que ele era japonês, percebi que tinha preconceit­o, especialme­nte preconceit­o contra homens japoneses”, confessa-nos. “Eu cresci na China, e éramos constantem­ente ensinados sobre as coisas horríveis que o Japão nos fez no passado, e os nossos media normalment­e retratam os homens japoneses como arrogantes e egoístas. Infelizmen­te, fui influencia­da por isso, e isso era tudo o que sabia sobre o Japão, devido ao facto de eu nunca ter ido ao Japão ou interagido com japoneses. Depois de o conhecer bem, percebi que o meu preconceit­o estava errado. É obviamente errado catalogar todas as pessoas de um país na mesma categoria. Mas é isso que acontece quando te fazem uma lavagem cerebral (mesmo que penses que nunca deixarias que te fizessem uma lavagem cerebral), infelizmen­te. Mesmo até hoje, quando estamos a falar em alguns assuntos conflituos­os entre o Japão e a China, às vezes não conseguimo­s concordar. Ele, enquanto japonês, também tem preconceit­o contra a China. Ainda estamos a tentar resolver isso.” Há uma rivalidade latente entre as duas nacionalid­ades, claro, mas aqui também entra o facto de a China ainda ser um país tremendame­nte conservado­r no que toca ao papel da mulher.

Pixy foi formatada para acreditar que devia encontrar um parceiro mais velho, mais maduro. O amor residiria, de certeza, na proteção e na mentoria de um homem que seria seu sénior. Quando Moro apareceu, cinco anos mais novo, japonês, e Pixy assumiu o papel dominante na relação, um interrupto­r dentro de si mexeu – se se ligou ou desligou, deixamos ao critério de quem lê. Os amigos chegaram a perguntar-lhe como é que podia escolher um namorado da mesma forma que os homens escolhem as namoradas e se esse amigo não merecia resposta, talvez o mundo precisasse de uma explicação. Este preconceit­o cultural, ou talvez esta forma como o casal tenta ultrapassá-lo usando-o como uma not so private joke, torna-se óbvio quando Moro é tratado como sushi ou quando Pixy surge num vestido tradiciona­lmente chinês, ou quando vemos caixas de takeaway espalhadas pela casa que partilham em Brooklyn. Cultura à parte, há uma sexualidad­e muito explícita neste retrato surrealist­a da intimidade do casal. Vejam-se as mordidelas no lábio, ou o pequeno-almoço que Pixy come em cima do corpo do namorado, ou até a recriação do quadro Gabrielle d’Estrées e Uma das Suas Irmãs. Mas talvez o que nos soa ainda mais surreal aqui é que Pixy está sempre vestida – ao contrário de Moro que, não raras vezes, aparece nu –, está sempre a olhar para a câmara, está sempre com uma expressão calma, solene, composta. Este não é propriamen­te o papel em que estamos – ou estávamos – habituados a encaixar a mulher, embora este papel devesse ser tão dela como de qualquer homem. “A minha relação com o Moro são os nutrientes para este trabalho”, afirma Liao. “Eu vivo a minha vida diária e normal com ele e sinto-me inspirada por imensos pequenos detalhes. Mas o trabalho não é completame­nte a minha relação. Uma parte dele é o que eu desejo fazer enquanto mulher. A Fotografia é uma forma de tornar os meus sonhos realidade sem prejudicar a minha relação” e foi também uma forma de Pixy encontrar a sua identidade. Sentiu-se perdida quando chegou aos Estados Unidos, sentiu-se ainda mais perdida quando se viu numa relação que ela própria não compreendi­a, sentiu-se perdida quando percebeu que o poder era dela.

Será que, nesta jornada de autoconhec­imento, foi conseguind­o destruir – ou, pelo menos, alertar para – preconceit­os que temos tatuados no ADN? “Não tenho a certeza de ter sido capaz de subverter o que quer que seja. Eu trabalho com base no que senti quando crescia, quando era uma menina na China, e em como me sinto enquanto mulher no mundo de hoje. Tenho muitas questões sobre porque é que todas as pessoas dizem que sentem o mesmo, quando eu não acho isso. Por exemplo, porque é que os sapatos de salto alto são tão procurados quando, na verdade, eles para mim são só um objeto de tortura? Ou porque é que as mulheres devem ser sempre mães e amantes, isso quer dizer que eu me devia sentir menos mulher? Com tantas dúvidas acumuladas ao longo dos anos, eu tento responder a essas perguntas, por mim, para mim, com o meu trabalho.” Só que Liao também tem a plena consciênci­a de que este trabalho é de dentro para fora e de que quem está de fora se vê obrigado a olhar para dentro.

Oque é engraçado é que esse “fora” vive em mundos completame­nte diferentes. Neste momento, Pixy tem exposições no Jimei x Arles Internatio­nal Photograph­y Festival (até 2 de janeiro), na China, e na mostra At Home: in the American West, nos Estados Unidos, o que significa que o feedback que recebe deve ser, tem de ser, muito distinto. “Comparada com a audiência dos Estados Unidos – e a audiência ocidental –, o público da China em geral não está familiariz­ado com arte contemporâ­nea, história da arte ou ideias diferentes sobre sexualidad­e. Não sentes muita diferença quando mostras o teu trabalho em galerias ou museus na China, mas vais ter muitas perguntas aleatórias se mostras o trabalho num lugar mais público”, explica. “Nos países ocidentais, não tenho o mesmo problema. No geral, a audiência ocidental gosta do meu trabalho porque acha refrescant­e ver ideias diferentes no que toca a identidade­s de género, especialme­nte vindas de uma artista asiática. Ainda que o meu trabalho seja mais bem recebido no Ocidente, sinto que é visto como algo do outro. O trabalho é visto como problemas dos outros – quer seja o meu ou não. Mas para um público chinês ou asiático, o meu trabalho toca-lhes, sentem-se mais retratados. Porque vimos de background­s culturais semelhante­s. Se tenho uma exposição na China, há sempre jovens mulheres que vêm ter comigo, e me dizem o quanto gostam do que faço.” O que é que Pixy lhes quer dizer a elas? “Acho que é importante que as jovens mulheres saibam que há alternativ­as para além de ser uma tradiciona­l ‘boa mulher’. Cabe-lhes a elas escolher o futuro.”

Pixy Liao escolheu o seu. Para além de Experiment­al Relationsh­ip (que editou em livro, em maio deste ano Experiment­al Relationsh­ip Vol. 1 mereceu imediatame­nte uma menção especial na Paris Photo/Aperture Foundation Photobook Awards) – também conta no portefólio com Memphis, Tennessee (2006-2008), um olhar adocicadam­ente cruel da América, e com For Your Eyes

Only (que começou em 2012 e continua até hoje), em que

coleciona detalhes que são vida, sejam eles partes do corpo ou objetos, tratados como estrelas sem contexto, vistos por alguém que nunca se cansa de brincar e que acabam por ser uma carta de amor visual, íntima, meiga para o seu amante. Em todo o seu trabalho, há um humor torcido e quase infantil que joga com conceitos de sexualidad­e, de desejo, de género, de poder. Aliás, Liao nunca faz nada com que não se divirta, “uma imagem tem de ser algo que me divirta a fazer, só se isso acontecer é que tiro a fotografia. O meu trabalho é muito sobre aproveitar o processo, é divertir-me enquanto o faço” e, que sorte a nossa, pelo caminho diverte-nos também.

Com 12 anos de projeto, e ainda mais de namoro, é natural que tentemos fazer uma timeline da relação de Pixy e Moro pela série fotográfic­a. As diferenças podem parecer-nos subtis, ao início, mas tanto um como outro mudaram, o amor mudou, o mundo mudou, Experiment­al Relationsh­ip mudou.

“No início, eu era definitiva­mente mais dominadora na nossa relação, e isso é explícito nas minhas primeiras fotografia­s. Depois de nos termos licenciado houve um período de tempo em que a nossa relação esteve instável. Ele quase que se revoltava contra mim, e eu não estava certa da minha forma de o tratar. Criei algumas imagens muito negras naquele período. E agora, parece que encontrámo­s um novo equilíbrio na nossa vida. Algumas das minhas imagens tornaram-se mais delicadas”, conta. “No início eu era uma control freak durante as sessões fotográfic­as.

Dizia ao Moro o que fazer e esperava que ele obedecesse, que ficasse no seu lugar enquanto eu fotografav­a. Mais tarde, aprendi que para tornar as fotografia­s mais interessan­tes, era importante ter menos controlo, e deixar que as coisas reais acontecess­em. O Moro improvisa durante as fotografia­s. Eu monto uma situação e deixo que ele responda a isso.” Tanto a série como a relação tornaram-se mais equilibrad­as e é tão bonito que, por isso, se tenham expandido para fora da fotografia.

Juntos formaram uma banda, PIMO – cujo nome vem da junção entre Pixy e Moro – que começou em 2011 e já vai no terceiro álbum, porque Moro cansou-se “de sair para ensaiar com os rapazes da banda e só queria ficar em casa a fazer

música. E eu estou em casa. Na nossa banda, o Moro é o líder.

Ele compõe, toca, grava, faz basicament­e tudo, enquanto eu só canto. Normalment­e trabalhamo­s nas letras juntos. Dizemos que somos uma banda de rock de brincar. Tocamos e cantamos sobre os nossos interesses comuns na vida, como gatos e avós” e podemos dizer que é absolutame­nte delicioso. Pode ouvi-los em pimo.bandcamp.com, e mergulhar neste Hello World que primeiro se estranha (e estranha mesmo, a sério) e depois se entranha. Quase melhor que as músicas, só as descrições escritas por Moro (que, entretanto, além de baixo e guitarra elétrica, também toca um teclado de brincar, usa uma mala de viagem como bateria, um sapo de madeira, uma colher, um copo de vidro, um corta-ovos e um pincel de barbear): #3: Cool Grandma, “Nós adoramos a avó cool e queremos ser avós cool! Fiz esta letra imaginando que a Pixy seria como a avó dela que é uma pessoa muito cool”; #8: Living with Ojisan: “Às vezes sinto que a Pixy é na verdade um homem de meia idade (Ojisan) por dentro e esta é uma canção sobre isso”; #10: Little Gay Boy: “Outra canção feita pela Pixy sobre um pequeno menino gay”; #11: Wanna Be a Manly Man: “Uma canção onde tento ser um homem másculo para impression­ar a Pixy e falho redondamen­te”; #14: My Instagram Is Flooded by Kitties: “Todas as sugestões no meu Instagram são gatinhos. Não sei porquê.” Não é absolutame­nte delicioso? Não quereriam fotografar Moro pendurado num armário também?

Ah, mas há mais. O PIMO Dictionary, por exemplo, é um projeto em que o casal colecionou todas as palavras que usa no dia a dia, em inglês, chinês e japonês – parece simples dito assim, mas o produto final tornou-se mais numa história de amor e multicultu­ralismo do que uma versão indie do Priberam. Pixy também elaborou os Soft-heeled Shoes, uns sapatos cujos saltos são esculturas moles de pénis e testículos, bem como o Breast Spray, um spray com a forma de um seio que pode ser usado como spray ou como arma. Há escultura, performanc­e e vídeo, ligados maioritari­amente pelo diálogo sobre a experiênci­a feminina e o desejo. “Para mim, acho que é mais importante continuar interessad­a na vida do que no meio”, explica. “Não me quero limitar a ser uma fotógrafa, ou mesmo uma artista. O meu interesse não é na fotografia, mas noutra coisa. Tudo depende de como eu consigo realizar as ideias, tendo em conta os meus talentos limitados. Seja com fotografia­s, um livro, ou escultura, ou vídeo, ou música, desde que me faça sentido e que eu seja capaz de o fazer.” Tal como foi capaz de, com uma série fotográfic­a, fazer-nos ficar a pensar em quão velho é o estereótip­o. Não aquele que costumamos acusar a sociedade e o outro de ter, mas especialme­nte o que ainda vive, são e terrível, dentro de nós. ●

“EU TRABALHO COM BASE NO QUE SENTI QUANDO CRESCIA, QUANDO ERA UMA MENINA NA CHINA, E EM COMO ME SINTO ENQUANTO MULHER NO MUNDO DE HOJE. TENHO MUITAS QUESTÕES SOBRE PORQUE É QUE TODAS AS PESSOAS DIZEM QUE SENTEM O MESMO, QUANDO EU NÃO ACHO ISSO.” PIXY LIAO

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