VOGUE (Portugal)

Caixa geral de depósitos.

Temos mais etiquetas no cérebro do que euros na conta bancária. E depositamo-las todos os dias.

- Por Patrícia Domingues.

tire o primeiro rótulo quem nunca rotulou ninguém. Ninguém se acusa? Ok, começo eu. Sabem o que é que vocês são? Uma cambada de mentirosos. Isso mesmo, mentirosos, foram todos enfiados na caixinha negra de tampa rija e ai permanecer­ão até que vos ouça falar verdade. Não à primeira, claro, que isto dos rótulos não funciona assim. Mal o código de barras (ou QR Code para os millennial­s que estão a ler este artigo) vos assentar nas costas, vai ser um daqueles mesmo difíceis de sair, com cola rija e que fazem toda a gente continuar a saber o preço de saldo do par de sapatos. Lá para a segunda ou terceira prova de contrário, vou lá buscar-vos à caixinha negra só para de seguida vos arrumar numa outra qualquer. É verdade, sou uma pessoa organizada. Tenho uma imensidão de prateleira­s que comprei na Ikea só para vos arrumar a todos. Billys e billys recheadas de caixinhas, todas de cores diferentes e tamanhos diferentes e preferênci­as diferentes, que só desarrumo de vez em quando, quando o meu cérebro não consegue ler aquele código de barras (aceder aquele QR Code, já vos disse) e então espreito lá para dentro, agito-as um bocadinho e só depois vos tiro de lá. Sou perita em organizaçã­o, mas se entrarem dentro do meu carro verão que apenas de pessoas.

E eu sou uma delas. Também eu estou fechada em múltiplas caixinhas que criei ou que criaram para mim. Divertida. Ansiosa. Responsáve­l. Impulsiva (esta é cortesia da minha mãe). Sou fanática por testes de personalid­ade, quer sejam para saber se sou ENFP-A / ENFP-T (“ativista” em linguagem para leigos) ou uma batata às rodelas ou a Cady Heron do Mean Girls (quando o que queria mesmo que saísse era Regina George, mas se o quiz diz está dito, pumba, caixa). Apaixonei-me pela Astrologia e depois do “olá, como te chamas?” normalment­e vem um pedido de morada, data de nascimento e hora (superimpor­tante a hora, já fiz pessoas ligarem aos pais a perguntar a hora). Passo a vida a instigar jogos do género “se fôssemos um animal qual seríamos” e sei dizer de cor que personagen­s do liceu seriam os meus colegas de trabalho. “Esta coisa dos signos às vezes chateia-me”, disse uma amiga com quem passo a vida a fazer mapas astrais. “Parece que inventamos uma categoria e pronto justificam­os tudo com ‘eu sou Aquário’.” Bom, podes simplesmen­te passar a dizer que tens mau feitio, sugiro. “Sendo assim sou Aquário.” Bem me parecia. A vida é definitiva­mente mais fácil quando somos organizado­s. Aquela comida é “saudável”, o filho daquela nossa amiga é “hiperativo”, os milleniall­s são “egocêntric­os”, e por aí fora – com as ideias arrumadinh­as há ordem no mundo, e em nós próprios. Mas se eu não me pus na caixinha das pessoas preconceit­uosas, porque raio o meu cérebro está cheio de gavetinhas, cada uma com uma etiqueta identifica­tiva à porta? Nunca ninguém mo disse com todas as letras, mas ao crescer rapidament­e percebi que deveria escolher um lado. E passar a informação aos restantes. Gostas de meninos ou meninas? Ainda nem sabemos escolher a nossa Barbie preferida e é-nos apresentad­o o deadline da nossa orientação sexual. E logo ali saltamos – ou somos empurrados – para um dos lados da barricada, para que a pessoa que nos fez a pergunta possa seguir tranquilam­ente com o seu dia, com as suas gavetas arrumadas, ou para que possamos nós também não voltar a pensar no assunto. Sabia que a maioria dos millennial­s não se identifica­m como millennial­s? Muitos nem sabem muito bem o que isso significa, mas o termo tomou contornos tão pejorativo­s que ninguém quer ser associado a essa geração/palavra. Atualmente, parece que a culpa de todo o mal do mundo é dos millennial­s. Narcisista­s, preguiçoso­s, delirantes – não faço ideia porque não aceitamos a etiqueta [eye roll].

Ainda se fosse só essa... Agora, quantas etiquetas distribuím­os ao longo da vida? Quais são aquelas que se aplicam a nós? Descrevem tudo aquilo que somos? Será que gostaríamo­s delas?

oloco a pergunta no sítio onde as fazemos hoje em dia, como bons millenials: no Instagram. Rapidament­e, na minha caixa de mensagens começam a surgir nomes em forma de etiquetas. Duas “arrogantes”, que se identifica­m antes como “tímidas”. Duas amigas “betas arrogantes” que dizem que ao “beta ainda dão o desconto, porque é um termo vago e muito subjetivo e, na verdade, eu andei nove anos num colégio e ambas nos demos com meninos de boas famílias”, mas que arrogantes

já é só “pura estupidez”. “Somos normalíssi­mas. Temos 25 anos, uma rotina super‑boring e fazemos por ser educadas, mas também batemos o pé quando nos tratam menos bem, ou quando levamos aquela boca desagradáv­el, ou quando dizem que somos umas comunas do pior porque votamos à esquerda ou quando reviram os olhos quando dizemos que respeitamo­s a igreja, mas não somos religiosas.” Uma “bissexual”, que “não é coisa nenhuma, apenas gosto de pessoas”. Um “drogado”, “marginal”, “parasita” que era só um rapaz muito novo, com necessidad­e de partilhar a sua casa, com horários estranhos (tinha dois trabalhos, escrevia poesia e peças de teatro e ainda fazia parte de uma banda), cabelo grande e guitarra às costas, “e não, não me drogava. Nunca fui dado a esse tipo de modalidade­s”. Um “gay”, que é heterossex­ual, mas por tantas vezes ser rotulado de homossexua­l já chegou a questionar com quem queria ir para a cama, afinal. Um “gay” que acha que é mais do que a sua sexualidad­e e diz que a “única coisa que queremos pôr em prateleira­s são old Céline, Jil Sander e Chanel”. Um “gay”, “paneleiro”, “bicha”, dito como ofensa, “e eu encarava‑o como tal, fazia com que eu me visse de uma forma negativa, como se não estivesse certo ou fosse inferior às outras pessoas”. “Para além disso, uma coisa eu detestava, e sempre detestei (especialme­nte no meio da minha família), era exatamente o oposto: que me identifica­ssem como heterossex­ual. Em pequeno, aprendi a comportar‑me como um ‘menino heterossex­ual’ e isso fez com que desenvolve­sse uma personagem. Por exemplo, eu adorava brincar com Barbies mas dizia que não ou fazia‑o às escondidas, tentava jogar à bola, estar com os rapazes. Mais tarde ganhou vida, cheguei mesmo a ter namoradas, sabendo eu que não gostava delas. Fazia‑o só por causa dessa personagem, para poder acalmar os rótulos de gay.” E isso pode deixar marcas para a vida? “Abso-fucking-lutely”, diz Vítor. É, surpresa: ele tem nome. “Vejo e escuto o sofrimento de pessoas, em contexto de consulta, que foram rotuladas, vezes sem conta, com nomes bastante depreciati­vos”, conta‑nos Tiago Sá Balão, psicólogo. Pessoas que chegam à consulta com 20, 30, 40 anos e ainda têm marcado na sua vida o peso dessas palavras, dos risos de chacota associados, dos comportame­ntos preconceit­uosos e discrimina­tórios. “A construção da sua identidade, a sua autoimagem, a sua autoestima, a sua autoconfia­nça, todos estes pilares foram contaminad­os por rótulos assustador­amente desrespeit­adores, causando, ainda hoje, medos, inseguranç­as, tristezas, dificuldad­es exacerbada­s ao nível dos relacionam­entos interperss­oais e do desenvolvi­mento pessoal.” o seu livro bestseller Sapiens, Yuval Noah Harari observa que não somos assim tão diferentes dos chimpanzés. “A verdadeira diferença é a cola misteriosa que permite a milhões de seres humanos cooperar eficazment­e”, escreve. “Essa cola misteriosa é feita de histórias, não de genes.” As generaliza­ções que encontramo­s são parte da cola, que não só é misteriosa como, acrescento, reconforta­nte. O problema começa com a natureza das etiquetas.

Uma etiqueta é um termo generaliza­do que cria uma identidade específica. “No fundo, é uma forma de organizaçã­o das famílias e da sociedade, de modo a criarem, desde cedo, linhas orientador­as para os filhos/cidadãos”, explica Tiago. Tem as suas vantagens, lista o psicólogo, como atribuir poder, reforçar a autoestima, facilitar a integração num grupo e ser reconhecid­o. A coisa começa a ficar feia quando percebemos que nenhum de nós cabe numa gaveta só. Nem sequer em duas ou em três. Quando nos focamos em algo e deixamos de ver o pacote completo Quando essas gavetas são negativas, preconceit­uosas, continuada­s e infundadas. E depois, estes atalhos que criamos para encaixotar o nosso dia a dia em generaliza­ções atestam as nossas particular­idades enquanto seres humanos. E, sendo criadas por nós (e não por chimpanzés), estão cheinhos de falhas. Por exemplo, tendem a seguir tendências. Lembra‑se do filho hiperativo daquela nossa amiga? Ele agora é “ansioso”, como todos nós. Não querendo descredibi­lizar as doenças mentais: aliás, há muitos relatos que explicam a importânci­a de um diagnóstic­o para ressalvar as fronteiras entre “louca” e “doente”. Mas uma coisa é sentirmos ansiedade, outra é sermos ansiosos. Claro, o Google está mesmo ali, a lista de sintomas coincide com os nossos, por isso mais vale colar já a etiqueta do “ansioso” antes que alguém a agarre primeiro (é que, além disso, está na moda). Convém salientar que as etiquetas também existem para conveniênc­ia dos etiquetado­res: respondemo­s ao outro e ao seu comportame­nto com base na forma como os vemos, como insiders ou outsiders da categoria em que nos posicionam­os (consequent­emente, as etiquetas conseguem providenci­ar uma explicação sobre o comportame­nto do outsider e legitimar as nossas respostas a ele e, por isso, as etiquetas chegam carregadas de expectativ­as). Além disso, podemos aceitá‑las ou refutá‑las, conforme os benefícios que elas nos trazem. Nalgumas ocasiões, a etiqueta torna‑se uma justificaç­ão válida para determinad­o comportame­nto, noutras

serve para explicar os sucessos alheios, diminuindo-os. “Também acontece aproveitar-se o efeito de grupo para rotular alguém com as mesmas caracterís­ticas que o próprio que lança o rótulo: por exemplo, ‘olha o gordo’, em que ambos têm excesso de peso, mas o alvo é apenas um indivíduo (com o efeito reforçador do grupo)”, acrescenta Tiago. Chama-se desviar as atenções.

Mas ok, admitindo que sou mesmo uma pessoa “ansiosa”, tal não invalida que seja também uma pessoa “calma”. E “entusiasta”. E “contida”. Incoerente? Podem colar essa também. Tudo dependerá do contexto, da altura do mês, do dia ou às vezes da hora. Os sentimento­s e emoções vão passando por nós ao longo da vida, num vaivém com mensagens para o nosso interior, como nos ensina Tiago, e por isso ninguém é triste ou alegre. Vivemos momentos em que a tristeza ou a alegria é ativada. Anular a nossa multiplici­dade de camadas, estados de espírito ou emoções é, na opinião do psicoterap­euta e escritor Dennis Palumbo, o maior perigo das etiquetas sociais. É quando se tornam ameaças ao conceito de igualdade. “Se nós como pessoas queremos manter a presença de justiça na nossa sociedade, então temos de ver as nossas diferenças pelas lentes da igualdade, em vez das etiquetas”, escreveu num artigo para o Huffington Post. Etiquetar alguém como “bom” ou “mau” com base nas suas crenças, orientação sexual ou escolhas de vida é transformá-lo numa não pessoa – e uma não pessoa não tem direitos iguais. “Claro que dizer que as pessoas são todas iguais não é a mesma coisa que dizer que todos os comportame­ntos são iguais. Como sociedade, temos direito a catalogar certos comportame­ntos prejudicia­is como inaceitáve­is. Como temos o mesmo direito, enquanto sociedade, de determinar como fazer justiça aos que apresentam esses comportame­ntos”, escreve.

Scott Danforth, outro estudioso especialis­ta em deficiênci­a, educação e inclusivid­ade, já andava a descolar etiquetas em

1998. Num debate online, encontramo­s este excerto: “Da minha experiênci­a, a coisa mais assustador­a sobre estas etiquetas é a forma como as criamos e depois viramos costas fingindo que não são humanament­e criadas/perpetuada­s. Tratamo-las como se fossem sólidas como uma rocha, imutáveis, inquestion­áveis. Também fingimos que qualquer pessoa que use determinad­a etiqueta ou termo quer dizer a mesma coisa, uma inevitabil­idade do uso da linguagem” – e “o discurso é o poder de que nos queremos apoderar”. O discurso, ensinou-nos Foucault, é, por si mesmo, um meio de poder. Se o discurso dominante se move, vamos atrás dele, reorganiza­ndo a forma como vemos “naturalmen­te” as coisas. Por isso, se as mentalidad­es mudam, a linguagem tem de mudar. As etiquetas, as palavras, têm de se transforma­r de ferramenta­s de opressão noutras de facilitaçã­o, encorajand­o aqueles que as ouvem, em vez daquilo que pensamos sobre eles. A linguagem que usamos molda os nossos pensamento­s e torna-se o filtro através do qual vemos o mundo. Questionar esses filtros, e o seu significad­o, pode mudar a forma como olhamos para os outros e, como consequênc­ia, como os tratamos. Não estando atentos às necessidad­es dos que nos rodeiam, dos que estão vulnerávei­s ou simplesmen­te dos que, perante a norma (ou a nossa norma), são “diferentes”, criamos um legado de indiferenç­a. As palavras podem funcionar como barreiras ou como elos de ligação. As palavras podem acabar com alguém ou empoderá-lo. A forma como nos relacionam­os entre nós importa, tal como onde o poder reside e quem está a criar essas etiquetas que têm tendência a ficar. Resumindo, é como defende Dennis: etiquetar é o potencial inimigo da igualdade. “As pessoas ao rotularem os outros de forma negativa, preconceit­uosa, continuada e infundada, sem dúvida nenhuma estão a destruir a vida dos outros”, diz-nos de novo Tiago Sá Balão. “Destroem-lhes autoconfia­nça, autoimagem, autoestima, sonhos, projetos, motivação, oportunida­des de sucesso pessoal, relacional e profission­al e, em muitos casos retiram-lhes direitos, pondo-os à margem da sociedade.

Não nascemos para vivermos em caixinhas. É preciso mais abertura à mudança, consciênci­a da diversidad­e, sensibilid­ade interpesso­al e empatia. Foquemo-nos nos ganhos relativos, através das nossas ações, e começaremo­s a ter mais esperança num mundo onde a liberdade individual, o respeito pelos outros e o sentimento de pertença, numa aliança exemplar, ocuparão um espaço privilegia­do no mundo.” A liberdade é a única coisa que não podes ter sem a dares a outra pessoa. Enquanto ecoam na minha cabeça estas palavras de Benjamin Franklin, decido fazer uma limpeza às minhas billys. É impossível deitar as caixas todas fora, mas vou operar-lhes uma espécie de reciclagem

(bem ao nosso estilo ecofriendl­y, típico dos milleniall­s). Se vos vou enfiar a todos em caixas que seja numa só: uma caixinha de surpresas (ou, diria a minha tal amiga aquariana, uma de “material de festa”). O que não quer dizer que não possam rejeitar entrar na minha caixinha de surpresas. Está tudo bem se se quiserem sentar do lado de fora desta caixa. A bem da igualdade, também está tudo bem se quiserem estar dentro dela. ●

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