Caixa geral de depósitos.
Temos mais etiquetas no cérebro do que euros na conta bancária. E depositamo-las todos os dias.
tire o primeiro rótulo quem nunca rotulou ninguém. Ninguém se acusa? Ok, começo eu. Sabem o que é que vocês são? Uma cambada de mentirosos. Isso mesmo, mentirosos, foram todos enfiados na caixinha negra de tampa rija e ai permanecerão até que vos ouça falar verdade. Não à primeira, claro, que isto dos rótulos não funciona assim. Mal o código de barras (ou QR Code para os millennials que estão a ler este artigo) vos assentar nas costas, vai ser um daqueles mesmo difíceis de sair, com cola rija e que fazem toda a gente continuar a saber o preço de saldo do par de sapatos. Lá para a segunda ou terceira prova de contrário, vou lá buscar-vos à caixinha negra só para de seguida vos arrumar numa outra qualquer. É verdade, sou uma pessoa organizada. Tenho uma imensidão de prateleiras que comprei na Ikea só para vos arrumar a todos. Billys e billys recheadas de caixinhas, todas de cores diferentes e tamanhos diferentes e preferências diferentes, que só desarrumo de vez em quando, quando o meu cérebro não consegue ler aquele código de barras (aceder aquele QR Code, já vos disse) e então espreito lá para dentro, agito-as um bocadinho e só depois vos tiro de lá. Sou perita em organização, mas se entrarem dentro do meu carro verão que apenas de pessoas.
E eu sou uma delas. Também eu estou fechada em múltiplas caixinhas que criei ou que criaram para mim. Divertida. Ansiosa. Responsável. Impulsiva (esta é cortesia da minha mãe). Sou fanática por testes de personalidade, quer sejam para saber se sou ENFP-A / ENFP-T (“ativista” em linguagem para leigos) ou uma batata às rodelas ou a Cady Heron do Mean Girls (quando o que queria mesmo que saísse era Regina George, mas se o quiz diz está dito, pumba, caixa). Apaixonei-me pela Astrologia e depois do “olá, como te chamas?” normalmente vem um pedido de morada, data de nascimento e hora (superimportante a hora, já fiz pessoas ligarem aos pais a perguntar a hora). Passo a vida a instigar jogos do género “se fôssemos um animal qual seríamos” e sei dizer de cor que personagens do liceu seriam os meus colegas de trabalho. “Esta coisa dos signos às vezes chateia-me”, disse uma amiga com quem passo a vida a fazer mapas astrais. “Parece que inventamos uma categoria e pronto justificamos tudo com ‘eu sou Aquário’.” Bom, podes simplesmente passar a dizer que tens mau feitio, sugiro. “Sendo assim sou Aquário.” Bem me parecia. A vida é definitivamente mais fácil quando somos organizados. Aquela comida é “saudável”, o filho daquela nossa amiga é “hiperativo”, os millenialls são “egocêntricos”, e por aí fora – com as ideias arrumadinhas há ordem no mundo, e em nós próprios. Mas se eu não me pus na caixinha das pessoas preconceituosas, porque raio o meu cérebro está cheio de gavetinhas, cada uma com uma etiqueta identificativa à porta? Nunca ninguém mo disse com todas as letras, mas ao crescer rapidamente percebi que deveria escolher um lado. E passar a informação aos restantes. Gostas de meninos ou meninas? Ainda nem sabemos escolher a nossa Barbie preferida e é-nos apresentado o deadline da nossa orientação sexual. E logo ali saltamos – ou somos empurrados – para um dos lados da barricada, para que a pessoa que nos fez a pergunta possa seguir tranquilamente com o seu dia, com as suas gavetas arrumadas, ou para que possamos nós também não voltar a pensar no assunto. Sabia que a maioria dos millennials não se identificam como millennials? Muitos nem sabem muito bem o que isso significa, mas o termo tomou contornos tão pejorativos que ninguém quer ser associado a essa geração/palavra. Atualmente, parece que a culpa de todo o mal do mundo é dos millennials. Narcisistas, preguiçosos, delirantes – não faço ideia porque não aceitamos a etiqueta [eye roll].
Ainda se fosse só essa... Agora, quantas etiquetas distribuímos ao longo da vida? Quais são aquelas que se aplicam a nós? Descrevem tudo aquilo que somos? Será que gostaríamos delas?
oloco a pergunta no sítio onde as fazemos hoje em dia, como bons millenials: no Instagram. Rapidamente, na minha caixa de mensagens começam a surgir nomes em forma de etiquetas. Duas “arrogantes”, que se identificam antes como “tímidas”. Duas amigas “betas arrogantes” que dizem que ao “beta ainda dão o desconto, porque é um termo vago e muito subjetivo e, na verdade, eu andei nove anos num colégio e ambas nos demos com meninos de boas famílias”, mas que arrogantes
já é só “pura estupidez”. “Somos normalíssimas. Temos 25 anos, uma rotina super‑boring e fazemos por ser educadas, mas também batemos o pé quando nos tratam menos bem, ou quando levamos aquela boca desagradável, ou quando dizem que somos umas comunas do pior porque votamos à esquerda ou quando reviram os olhos quando dizemos que respeitamos a igreja, mas não somos religiosas.” Uma “bissexual”, que “não é coisa nenhuma, apenas gosto de pessoas”. Um “drogado”, “marginal”, “parasita” que era só um rapaz muito novo, com necessidade de partilhar a sua casa, com horários estranhos (tinha dois trabalhos, escrevia poesia e peças de teatro e ainda fazia parte de uma banda), cabelo grande e guitarra às costas, “e não, não me drogava. Nunca fui dado a esse tipo de modalidades”. Um “gay”, que é heterossexual, mas por tantas vezes ser rotulado de homossexual já chegou a questionar com quem queria ir para a cama, afinal. Um “gay” que acha que é mais do que a sua sexualidade e diz que a “única coisa que queremos pôr em prateleiras são old Céline, Jil Sander e Chanel”. Um “gay”, “paneleiro”, “bicha”, dito como ofensa, “e eu encarava‑o como tal, fazia com que eu me visse de uma forma negativa, como se não estivesse certo ou fosse inferior às outras pessoas”. “Para além disso, uma coisa eu detestava, e sempre detestei (especialmente no meio da minha família), era exatamente o oposto: que me identificassem como heterossexual. Em pequeno, aprendi a comportar‑me como um ‘menino heterossexual’ e isso fez com que desenvolvesse uma personagem. Por exemplo, eu adorava brincar com Barbies mas dizia que não ou fazia‑o às escondidas, tentava jogar à bola, estar com os rapazes. Mais tarde ganhou vida, cheguei mesmo a ter namoradas, sabendo eu que não gostava delas. Fazia‑o só por causa dessa personagem, para poder acalmar os rótulos de gay.” E isso pode deixar marcas para a vida? “Abso-fucking-lutely”, diz Vítor. É, surpresa: ele tem nome. “Vejo e escuto o sofrimento de pessoas, em contexto de consulta, que foram rotuladas, vezes sem conta, com nomes bastante depreciativos”, conta‑nos Tiago Sá Balão, psicólogo. Pessoas que chegam à consulta com 20, 30, 40 anos e ainda têm marcado na sua vida o peso dessas palavras, dos risos de chacota associados, dos comportamentos preconceituosos e discriminatórios. “A construção da sua identidade, a sua autoimagem, a sua autoestima, a sua autoconfiança, todos estes pilares foram contaminados por rótulos assustadoramente desrespeitadores, causando, ainda hoje, medos, inseguranças, tristezas, dificuldades exacerbadas ao nível dos relacionamentos interperssoais e do desenvolvimento pessoal.” o seu livro bestseller Sapiens, Yuval Noah Harari observa que não somos assim tão diferentes dos chimpanzés. “A verdadeira diferença é a cola misteriosa que permite a milhões de seres humanos cooperar eficazmente”, escreve. “Essa cola misteriosa é feita de histórias, não de genes.” As generalizações que encontramos são parte da cola, que não só é misteriosa como, acrescento, reconfortante. O problema começa com a natureza das etiquetas.
Uma etiqueta é um termo generalizado que cria uma identidade específica. “No fundo, é uma forma de organização das famílias e da sociedade, de modo a criarem, desde cedo, linhas orientadoras para os filhos/cidadãos”, explica Tiago. Tem as suas vantagens, lista o psicólogo, como atribuir poder, reforçar a autoestima, facilitar a integração num grupo e ser reconhecido. A coisa começa a ficar feia quando percebemos que nenhum de nós cabe numa gaveta só. Nem sequer em duas ou em três. Quando nos focamos em algo e deixamos de ver o pacote completo Quando essas gavetas são negativas, preconceituosas, continuadas e infundadas. E depois, estes atalhos que criamos para encaixotar o nosso dia a dia em generalizações atestam as nossas particularidades enquanto seres humanos. E, sendo criadas por nós (e não por chimpanzés), estão cheinhos de falhas. Por exemplo, tendem a seguir tendências. Lembra‑se do filho hiperativo daquela nossa amiga? Ele agora é “ansioso”, como todos nós. Não querendo descredibilizar as doenças mentais: aliás, há muitos relatos que explicam a importância de um diagnóstico para ressalvar as fronteiras entre “louca” e “doente”. Mas uma coisa é sentirmos ansiedade, outra é sermos ansiosos. Claro, o Google está mesmo ali, a lista de sintomas coincide com os nossos, por isso mais vale colar já a etiqueta do “ansioso” antes que alguém a agarre primeiro (é que, além disso, está na moda). Convém salientar que as etiquetas também existem para conveniência dos etiquetadores: respondemos ao outro e ao seu comportamento com base na forma como os vemos, como insiders ou outsiders da categoria em que nos posicionamos (consequentemente, as etiquetas conseguem providenciar uma explicação sobre o comportamento do outsider e legitimar as nossas respostas a ele e, por isso, as etiquetas chegam carregadas de expectativas). Além disso, podemos aceitá‑las ou refutá‑las, conforme os benefícios que elas nos trazem. Nalgumas ocasiões, a etiqueta torna‑se uma justificação válida para determinado comportamento, noutras
serve para explicar os sucessos alheios, diminuindo-os. “Também acontece aproveitar-se o efeito de grupo para rotular alguém com as mesmas características que o próprio que lança o rótulo: por exemplo, ‘olha o gordo’, em que ambos têm excesso de peso, mas o alvo é apenas um indivíduo (com o efeito reforçador do grupo)”, acrescenta Tiago. Chama-se desviar as atenções.
Mas ok, admitindo que sou mesmo uma pessoa “ansiosa”, tal não invalida que seja também uma pessoa “calma”. E “entusiasta”. E “contida”. Incoerente? Podem colar essa também. Tudo dependerá do contexto, da altura do mês, do dia ou às vezes da hora. Os sentimentos e emoções vão passando por nós ao longo da vida, num vaivém com mensagens para o nosso interior, como nos ensina Tiago, e por isso ninguém é triste ou alegre. Vivemos momentos em que a tristeza ou a alegria é ativada. Anular a nossa multiplicidade de camadas, estados de espírito ou emoções é, na opinião do psicoterapeuta e escritor Dennis Palumbo, o maior perigo das etiquetas sociais. É quando se tornam ameaças ao conceito de igualdade. “Se nós como pessoas queremos manter a presença de justiça na nossa sociedade, então temos de ver as nossas diferenças pelas lentes da igualdade, em vez das etiquetas”, escreveu num artigo para o Huffington Post. Etiquetar alguém como “bom” ou “mau” com base nas suas crenças, orientação sexual ou escolhas de vida é transformá-lo numa não pessoa – e uma não pessoa não tem direitos iguais. “Claro que dizer que as pessoas são todas iguais não é a mesma coisa que dizer que todos os comportamentos são iguais. Como sociedade, temos direito a catalogar certos comportamentos prejudiciais como inaceitáveis. Como temos o mesmo direito, enquanto sociedade, de determinar como fazer justiça aos que apresentam esses comportamentos”, escreve.
Scott Danforth, outro estudioso especialista em deficiência, educação e inclusividade, já andava a descolar etiquetas em
1998. Num debate online, encontramos este excerto: “Da minha experiência, a coisa mais assustadora sobre estas etiquetas é a forma como as criamos e depois viramos costas fingindo que não são humanamente criadas/perpetuadas. Tratamo-las como se fossem sólidas como uma rocha, imutáveis, inquestionáveis. Também fingimos que qualquer pessoa que use determinada etiqueta ou termo quer dizer a mesma coisa, uma inevitabilidade do uso da linguagem” – e “o discurso é o poder de que nos queremos apoderar”. O discurso, ensinou-nos Foucault, é, por si mesmo, um meio de poder. Se o discurso dominante se move, vamos atrás dele, reorganizando a forma como vemos “naturalmente” as coisas. Por isso, se as mentalidades mudam, a linguagem tem de mudar. As etiquetas, as palavras, têm de se transformar de ferramentas de opressão noutras de facilitação, encorajando aqueles que as ouvem, em vez daquilo que pensamos sobre eles. A linguagem que usamos molda os nossos pensamentos e torna-se o filtro através do qual vemos o mundo. Questionar esses filtros, e o seu significado, pode mudar a forma como olhamos para os outros e, como consequência, como os tratamos. Não estando atentos às necessidades dos que nos rodeiam, dos que estão vulneráveis ou simplesmente dos que, perante a norma (ou a nossa norma), são “diferentes”, criamos um legado de indiferença. As palavras podem funcionar como barreiras ou como elos de ligação. As palavras podem acabar com alguém ou empoderá-lo. A forma como nos relacionamos entre nós importa, tal como onde o poder reside e quem está a criar essas etiquetas que têm tendência a ficar. Resumindo, é como defende Dennis: etiquetar é o potencial inimigo da igualdade. “As pessoas ao rotularem os outros de forma negativa, preconceituosa, continuada e infundada, sem dúvida nenhuma estão a destruir a vida dos outros”, diz-nos de novo Tiago Sá Balão. “Destroem-lhes autoconfiança, autoimagem, autoestima, sonhos, projetos, motivação, oportunidades de sucesso pessoal, relacional e profissional e, em muitos casos retiram-lhes direitos, pondo-os à margem da sociedade.
Não nascemos para vivermos em caixinhas. É preciso mais abertura à mudança, consciência da diversidade, sensibilidade interpessoal e empatia. Foquemo-nos nos ganhos relativos, através das nossas ações, e começaremos a ter mais esperança num mundo onde a liberdade individual, o respeito pelos outros e o sentimento de pertença, numa aliança exemplar, ocuparão um espaço privilegiado no mundo.” A liberdade é a única coisa que não podes ter sem a dares a outra pessoa. Enquanto ecoam na minha cabeça estas palavras de Benjamin Franklin, decido fazer uma limpeza às minhas billys. É impossível deitar as caixas todas fora, mas vou operar-lhes uma espécie de reciclagem
(bem ao nosso estilo ecofriendly, típico dos millenialls). Se vos vou enfiar a todos em caixas que seja numa só: uma caixinha de surpresas (ou, diria a minha tal amiga aquariana, uma de “material de festa”). O que não quer dizer que não possam rejeitar entrar na minha caixinha de surpresas. Está tudo bem se se quiserem sentar do lado de fora desta caixa. A bem da igualdade, também está tudo bem se quiserem estar dentro dela. ●