VOGUE (Portugal)

Beauty and the beast.

O tempo não volta para trás, e nós ficamos presos a ele. Ficamos mesmo? Ou somos mais livres?

- Por Patrícia Domingues.

Para uns, é a fera do tempo roubado, o inimigo das feições jovens e apelativas, a bruxa da magia branca, que se espalha pelo cabelo. Para outros, a besta de batalhas vencidas, o terror da inseguranç­a de outros tempos, o monstro das rugas em torno dos olhos e da boca, gastos pelos sorrisos. A idade é faca de dois gumes, com ponta afiada ao nosso mais profundo e unânime recheio: a certeza da mortalidad­e. A única dúvida, e também a nossa única decisão, será a aparência com que vamos estar no dia do nosso funeral.

Durante 14 anos Isabella Rossellini foi o rosto de produtos da Lancôme de todo o tipo. Creme de olhos. Batom. O perfume Trésor. E depois, aos 42 anos, a marca disse-lhe thank you, next. Despedimen­to de justa causa? Rossellini não viu as coisas dessa forma e fez questão de espalhar a contraprop­osta. “Despediram-me porque eu era forte”, disse em 2002. “Mandaram-me tantas flores no meu 40º aniversári­o que parecia a morgue. Sabia que estava morta. Eles disseram: ‘Sê grata, Isabella. Tiveste sorte por durares tanto tempo no negócio.’” Ela tinha deixado de ser “aspiracion­al” porque a sabedoria popular dizia que as mulheres queriam parecer jovens. Os anúncios de Beleza deveriam representa­r um sonho, não a realidade, disseram-lhe – muito embora as pesquisas de marketing apregoasse­m o contrário. As mulheres estavam contentes por ver uma modelo com 40 anos, mas a marca achou que sabia bem melhor aquilo que as mulheres sabiam do que elas próprias. Em 2015, a Lancôme voltou a bater-lhe à porta como um ex-namorado arrependid­o. “Não queria acreditar”, disse a atriz à Glamour americana. “Quer dizer, não se tinham passado três anos. 23 anos é uma vida. Eu só lhes disse ‘é melhor verem-me’, porque achei que talvez tivessem olhado para fotografia­s antigas [minhas] e pensassem que eu não tinha mudado.” Mas mudou. Só de aspeto, na verdade, porque de resto manteve-se tão opinativa como em qualquer idade. “Estavam a desenvolve­r várias versões do creme [Rénergie] e a última chamava-se Rénergie Multi-Glow. Tivemos uma longa discussão sobre isso, porque às vezes ainda é descrito como anti-idade – e eu disse: Anti-idade?! Isso irrita-me. Não podemos antienvelh­ecer. É contra a natureza!” E foi assim que a marca voltou a despedir-se de Rossellini. Calma, estava só a brincar – e essa reação efusiva que teve agora faz-nos perceber porque muita coisa muda em duas décadas. Por exemplo, a meio do ano passado, a Allure baniu das suas páginas o termo anti-aging. Como explicou Michelle Lee, diretora do título, a expressão reforçava a mensagem de que envelhecer era uma condição contra a qual tínhamos de lutar. “Uma celebração de crescermos na nossa própria pele – rugas e tudo”, definiu a mudança. O que não significa que deixará (aliás, não deixou) de promover produtos que prometam fazer-nos parecer mais novas. Como ela diz, “ninguém está a sugerir desistir do retinol”. Michelle e todas nós continuamo­s a querer produtos que nos ofereçam pele mais lisa, contornos de olhos livres de rugas, aquele glow natural e, claro, retinol – ou as prateleira­s não estariam a transborda­r de cremes, géis, séruns, máscaras e todo o tipo de poções com promessas delineadas a dourado. Isto é, nós queremos preservar a juventude da nossa tez, só não queremos ser estigmatiz­adas. Não queremos que nos digam que o nosso valor reside na nossa aparência e muito

menos que vai diminuindo com a idade. Como Michelle escreveu, “mudar a forma como pensamos sobre o envelhecim­ento começa com uma mudança na forma como falamos de envelhecim­ento”. Anti-idade é um termo sexista e datado, além de impossível (flash news: começamos a envelhecer a partir do momento em que nascemos). E assim surgiu uma nova linguagem de beleza assente nos mandamento­s do self-care e marcas que são “pro-skin”, como a Drunk Elephant, “a people-powered beauty ecosystem”, como a Glossier, ou “antirrugas”, como a Neutrogena, muito embora mal entramos no site demos de caras com uma fotografia de Kerry Washington, Jennifer Garner e Nicole Kidman com uma pele tão perfeita que nos custa a crer que têm a idade das nossas mães, mas ok. Falamos de pelo menos um século de ditadura, perdão, marketing anti-idade, por isso conseguimo­s admitir algumas falhas. “Por um lado, os seus produtos agradavam, mimavam e, sim, embelezava­m milhões de mulheres”, escreveu o jornalista Mark Tungate no livro Branded Beauty: How Marketing Changed the Way We Look, sobre as pioneiras da indústria anti-idade moderna, Helena Rubinstein e Elizabeth Arden. “Por outro, o seu discurso publicitár­io planeava persuadir as consumidor­as que envelhecer não era desejável e até, de certa forma, vergonhoso”, e foi este o tom com que os cuidados de Beleza foram vendidos até mais ou menos agora. O que me lembra que está na hora de chamar o elefante enrugado da sala para o centro da conversa: o medo da mortalidad­e é universal, envelhecer é desaparece­r (de capas de revistas e de filmes, de bons postos de trabalho e da definição de autossufic­iência, só para nomear alguns), por isso seguimos apagando tudo o que nos possa fazer lembrar da sua existência. A começar pela nossa cara. A primeira coisa que o mundo vê quando olha para nós, a nossa interface com os outros, centro dos nossos cinco sentidos, forma de manifestaç­ão, aquilo que nos faz ser reconhecid­os, que está no nosso cartão do cidadão, no passaporte e na carta de condução, no nosso perfil do Facebook, Instagram, WhatsApp e Snapchat, mesmo que com um filtro de coelhinho. Ver essa mesma cara ganhar rugas é como ver fissuras nas paredes da nossa casa. Experienci­ar uma nova permeabili­dade é como uma ameaça à sua grossura e estabilida­de. Ver as nossas expressões mudar de repente pode ser como perder a identidade.

Em 1972, no ensaio The Double Standard of Aging, Susan Sontag escreveu que “uma das maiores tragédias na vida de uma mulher é simplesmen­te envelhecer; é de longe a maior tragédia”, porque apenas uma jovem mulher é atraente e cada ano representa um decréscimo de qualidade. Claro que já não estamos nos anos 70 e uma mulher não é valorizada apenas pelo seu look ou pelo seu casamento. Outra boa notícia é que a par dos avanços de mentalidad­e, temos a ciência do nosso lado – mais especifica­mente o botox. Quando injetado, o botox paralisa os músculos. Menos movimento significa menos rugas e menos rugas todos sabemos o que quer dizer. O botox pode não acabar com a tragédia que o envelhecim­ento simboliza para algumas mulheres que continuam a sentir-se como descreveu Sontag, mas ajuda muitas pessoas a viver com ele. Mariana Morais, master de Medicina Estética e membro da Sociedade Portuguesa de Medicina Estética, diz que as principais preocupaçõ­es de quem a procura (cada vez mais pessoas mais novas) estão relacionad­as com o envelhecim­ento do rosto. “Querem tratamento­s que permitam um rejuvenesc­imento. Não querem grandes mudanças mas pretendem um ar mais ‘fresco’, aspeto menos cansado e menos triste.” Ainda assim, querer não é poder e avalia cada situação como caso único. “Tenho clientes com 20 anos de idade que já iniciaram algum tratamento e outras a quem só dei indicação para começarem aos 40 anos. Já tive clientes a perguntar quando deveriam trazer as filhas. Abaixo de 18 anos, por regra, não faço tratamento­s de Medicina Estética.” Sobre o preconceit­o que ainda existe sobre a Medicina Estética, defende que “todos somos livres de ter opiniões diferentes. O importante é perceber se quem critica está realmente informado de forma correta. Geralmente quem critica tem noções erradas relativame­nte à Medicina Estética. Quando os tratamento­s são feitos por um profission­al com boa formação, o resultado é

praticamen­te impercetív­el pelas outras pessoas. O que realmente percebem é que estão com um ar mais atraente, menos cansado e menos triste” – e não é esse o apelativo de uma noite bem dormida, um concealer na zona das olheiras, um vestido novo ou uma injeção de botox? Em 2002, um artigo do The New York Times perguntava-nos se não seria algo “surreal, injetarmos veneno na testa para paralisar músculos só para nos impedir de a franzir por uns meses”. Talvez. Mas não é também um pouco surreal que as mulheres sejam castigadas tanto por parecerem demasiado joviais como por não parecerem? Não é um pouco surreal que sejamos penalizada­s quer por não fazermos nada em relação ao facto de envelhecer­mos quer por fazermos? É suposto sermos cool em relação ao envelhecim­ento ao mesmo tempo que não envelhecem­os. É suposto sermos “superiores” ao botox (reservado à estirpe dos ricos e famosos, mas quem é que tu julgas que és? Não sabes que é a confiança que faz as pessoas bonitas?), mas termos 25 anos para sempre ou envelhecer­mos como a Helen Mirren, ela sim, surreal.

Lá porque a indústria de Beleza está a substituir anti-idade por glowing há quem não deixe de querer uma testa igual a um rabinho de um bebé. Mónica Sabrosa é uma delas. É advogada, tem 33 anos e muito provavelme­nte continuará a tê-los durante os próximos anos. Não a tê-los, tê-los – a parecê-los. Aos 18 já usava “cremes bons” para a idade e há uns anos começou a colocar fillers na zona das olheiras e injeções de botox na testa. “Nenhuma destas coisas tem tanto a ver com a idade porque, por exemplo, eu tenho mais rugas de expressão na testa que a minha irmã de 45 anos.” Da velhice, e além das questões de saúde, preocupa-a a flacidez, as manchas, as rugas, os cabelos brancos... “Não é um cenário bonito e que eu queira para mim. Eu sei que o politicame­nte correto é dizer que é tudo muito bonito, envelhecer, até se faz aquela comparação com as estações do ano, mas para mim não dá.” Admira mulheres que não estão nem aí para os julgamento­s e que fazem o que querem e como querem, de Monica Bellucci a Diane Lane, Rihanna, Zoë Kravitz e Kim Kardashian (imagina-se uma Kris Jenner daqui a uns anos). Diz que a maioria das suas amigas acha ridículo e fútil todas estas preocupaçõ­es com o envelhecim­ento, “só lhes digo: ‘Vemo-nos nos vossos 60 e nos meus 35.’ Talvez se venha a cruzar com os 35 de Pedro Marques, que mal chegou aos 20 e sentiu que era adulto começou uma rotina de cuidados extremos com a pele (afinal, ele vive da imagem). “Aos 21 estava a fazer a minha primeira aplicação de botox” e continuou até hoje, uma década depois. O objetivo não era ficar mais novo (até porque ninguém fica mais novo do que 21) mas a preservaçã­o. “Fiz peelings, dermoabras­ões, ácido hialurónic­o, mas o Botox é o que faço com mais regularida­de. O que mais me assusta com a idade é perder a noção do que é um tratamento para dar uma versão melhorada e ficar com aquelas caras de almofada. Os tratamento­s devem ser feitos apenas para melhorar o que já se tem. Com 50 anos não haver rugas nenhumas e ter uma pele reluzente não é natural.” Os efeitos secundário­s menos bons já os sentiu na pele, quando criou um granuloma na pálpebra inferior esquerda, e é por isso que diz que uma parte muito importante do processo é garantir que nos colocamos em boas mãos. Pergunto-lhe se estes procedimen­tos têm alguma coisa a ver com inseguranç­a. “Não. Apenas não me vejo a desistir de mim. Terei rugas e aceitarei a minha idade, mas em bom.” Uma versão homem da Madonna, sugere.

Não desistir. Ter rugas. Aceitar a idade. O conteúdo é o mesmo, a “embalagem” nem tanto. Sento-me para falar com Manuela Furtado, diretora da Birdsong Press & PR, depois de há umas semanas a ter descoberto com uma nova cor de cabelo na inauguraçã­o da loja da Louis Vuitton. Não foi um loiro acetinado ou um castanho com laivos de ruivo. Grisalho, a escolha de Manuela para colorir a nova estação é tão cinzenta quanto o tempo – e, tal como quando faz chuva ou faz sol, nem por todos apreciada. Houve quem passasse por ela e se aproveitas­se da conveniênc­ia do silêncio, que não deixa de ser compromete­dor. Quem a elogiasse de imediato. Quem usasse o exemplo de uma prima que também assumiu os brancos e, “confesso, pôs-lhe uns anos em cima”, dizendo tudo sem dizer nada. Quem lhe gabasse “a coragem”. Coragem, a sério? Sim, ouviram bem, coragem. “É raro

ter assim algum gesto de loucura, digamos. Não que para mim tenha sido”, diz Manuela, que se tem divertido não só com o seu novo/velho cabelo, como com as reações. “Nós mulheres, não podemos aparecer com pelos, temos de estar sempre arranjadin­has, temos muito esta coisa de ter de combater a idade... e acaba por ser uma pressão muito grande. Eu ouvi coisas como ‘cabelo grisalho só fica bem aos homens’. E eu tipo, ‘ok, fica bem ao George Clooney, mas não pode ficar bem a uma mulher?’ Porque não? Numa sociedade machista, o cabelo grisalho é sinal de desleixo porque não vamos de 15 em 15 dias ao cabeleirei­ro pintar as raízes. Não pintar as raízes é desleixo. E eu não sou desleixada, gosto de me arranjar. Mas uma coisa é fazer porque gostamos, outra é porque é imposto, porque fica mal não termos as mãos arranjadas, porque fica uma série de coisas porque as mulheres têm de estar sempre arranjadas para os homens/ maridos para ‘os manter’ porque se nos desleixamo­s eles vão embora. E quem não tem ‘para arranjar’. Nunca é posto em cima da mesa, então porque não fazemos isto para nos sentirmos bem? Tenho dado conta, sem querer, do quanto as pessoas são condiciona­das por aquilo que a sociedade aceita ou não aceita numa mulher.” Quando Manuela partilhou imagens de Helen Mirren e Jamie Lee Curtis de cabelo grisalho, disseram-lhe que era “ok, claro, porque eram mais velhas”. Quando encontrou Cara Delevingne de melenas cinzentas, gritou vitória antes de tempo porque rápido lhe respondera­m “ah mas ela é maluca e é modelo, por isso pode”. Guardou para ela as referência­s que a acompanham há anos ou as de agora, como a da escritora Arundhati Roy, e seguiu para o cabeleirei­ro sem consultar ninguém. Na pior das hipóteses volta a pintar o cabelo de castanho. Na melhor, ajudou a baralhar as cartas do preconceit­o e chegará com o melhor da idade à casa dos 50. A autoconfia­nça.

Com 70 anos, Linda Rodin, stylist e it girl depois dos 60, é um destes exemplos positivos de que Manuela fala. “Há três anos, olhei para o espelho e vi que não só as minhas rugas estavam a espalhar-se pelos olhos, pés de galinha e tudo isso, mas estavam a ir para debaixo das minhas bochechas. Foi como se estivessem a ir em todas as direções. E depois houve um momento horrifican­te”, diz-nos Linda por email. Ai, o que foi? Descobriu manchas ao pé das orelhas? Os seus lábios estavam a perder a forma? Não me digas que foi mais uma mecha de cabelos brancos... Que momento foi esse, Linda? “Habituei-me”, responde, como a encolher de ombros. “E depois a próxima coisa foi, oh meu Deus, tenho papadas agora. Todos os dias há um set de coisas que não notavas antes que se tornam mais proeminent­es. A escolha é entre arranjá-las ou viver com elas.” Hoje escolheu alegrement­e a segunda opção, dizendo bom dia às novas rugas que lhe surgem todas as manhãs. Mas houve uma altura em que Linda, que não parece humana mas é, teve dúvidas como qualquer uma de nós e recorreu às maravilhas do botox. Só que... não ficou maravilhad­a. “Conhecia um dermatolog­ista e ele recomendou-mo. Parei porque estava horrível e estranha”, simplifica. E aí sim deixou-se levar pelo lado mágico da idade, já que o cabelo grisalho a acompanha desde os 35. Uma marca preferida da idade? “Oh. A sabedoria.” Os benefícios de envelhecer? “É mais fácil ser honesta e não querer saber o que os outros pensam.” O que a faz sentir-se jovem? “Dormir bem. Comer bem. Apreciar a vida.” Por favor revela-nos a localizaçã­o da tua fonte de juventude. “Dormir é a minha arma secreta e sempre fui apaixonada pelo que faço criativame­nte.” Ok, mas a fonte de juventude onde está? “Isso simplesmen­te não é verdade.” Mas... Como... Porquê... Não recebi resposta até hoje, mas, e esta sim é a verdade, não há nada que Linda possa dizer que me vá fazer gostar mais desta ruga maléfica que me apareceu há dois anos no meio da testa. Nem de todas as que estão por vir fazer-lhe companhia. Não é o dever de Linda, Pedro ou Manuela, nem das marcas de Beleza, nem deste artigo fazer-nos sentir bem com a nossa aparência à medida que ganhamos os contornos da idade. Esse encargo é – tal como todos os cremes que temos na prateleira da casa de banho, todas as injeções de botox que fizermos ou todos os cabelos brancos que decidimos ver no reflexo do espelho – da nossa única e inteira responsabi­lidade. ●

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