Cordão umbilical.
O quinto álbum de Carminho são demasiados sentimentos para traduzir em palavras.
Quando chegamos à Lisnave, as nuvens não conseguem decidir se vestem ou despem o sol. Estamos a 10 de outubro e, lá ao fundo, Carminho faz ensaios de capa. Aproximamo-nos. Das colunas já sai o primeiro single de Maria, O Menino e a Cidade. A música desabafa, melancólica, com guitarras de embalo e Carminho está num vestido negro, plissado, transparente. “Não tenhas medo se o tempo foge sem razão. Não tenhas medo, serás maior que a solidão.” Mãos de fada e rosto severo e braços de bailarina. Lisboa vê-nos lá ao fundo, de colinas cortadas entre o sol e a sombra, entre a voz e a viola. O vento que ondula o xaile, que afaga Carminho, é poesia e sabemos ali que o fado não se canta com a voz. Carminho está calada, de olhos fechados, com o xaile negro como único par desta dança, e sabemos que está a cantar. O seu rosto, as suas mãos, o sobrolho franzido, no topo do seu silêncio cantam, todos são fado. Percebemos que está nervosa. Pede-nos que não fotografemos, que não filmemos, que observemos apenas: aquelas imagens só fazem sentido sob a visão de Giovanni – que apresentaremos daqui a pouco – e de mais ninguém. Era o último dia de gravações e todo o peso do mundo estava naquele xaile.
Voltamos a encontrar-nos dois meses depois, nos estúdios da Ruela Music. O sorriso já é mais leve, embora a promoção do álbum lhe ocupe todos os dias, mas o processo chegou ao fim, Maria respira-nos ao ouvido. Carminho não consegue precisar o momento em que o conceito de Maria se materializou, sólido e imbatível, dentro de si. “Talvez tenha começado a par do disco do Tom Jobim, há dois anos”, mas antes de Carminho Canta Tom Jobim já vinha o processo de procura de repertório, de poemas, de fados. Antes de ser Maria já era, percebeu Carminho, “um pensamento sobre fado, sobre o que o fado é para mim, sobre o que é que eu aprendi com o fado, mas sobretudo o que é que, ainda hoje, eu conseguia identificar como sendo fado
mesmo que não fosse exatamente cantado numa casa de fados, ou cantado por aquela pessoa, ou tocado com aqueles instrumentos. Todas estas questões que circulam a própria linguagem precisam de uma certa análise – porque é que esta linguagem cresce, em que direções e porquê – porque é uma língua viva, nunca para de crescer e de se mutar” e é por isso que não para de respirar. Então, em Maria, ouve-se uma metonímia das primeiras noites em que Carminho, de pijama ao colo dos pais, ouviu fado sair do coração de alguém.
O próprio nome, Maria, é um regresso. Regresso ao nome de Carminho, regresso ao nome tão português, mais antigo que a própria língua. Este regresso partiu pela estrada e foi-se despindo, tirando as artimanhas, subtraindo, subtraindo, até estar nu. “De alguma maneira, concluí que tem havido uma tendência grande de adição e de criar uma roupagem – é uma palavra muito comum, até é curioso porque roupa é algo que nos veste, portanto não somos exatamente nós, nós podemos esconder-nos atrás de uma roupa ou podemos ser simplesmente naturais na roupa que vestimos para podermos existir, e a roupagem é sempre alguma coisa que veste outra coisa mais importante, maior –, e tudo o que é roupagem não faz parte do próprio género. E depois também há peças de roupa que assentam melhor na pessoa do que outras [risos].” A roupa que esta Maria veste é uma emoção de seda. Nela está a casa de fados sem a casa de fados: estão os músicos embalados uns pelos outros e pela voz, juntos num live in studio porque gravar separadamente era tirar a alma à casa. “Às tantas eu até podia pensar que se tirasse a guitarra portuguesa, deixava de haver essa emoção e deixava de fazer parte do género”, confessa. “Mas não. Até que cheguei até uma voz, que começa o disco, e que vem dizer que a voz, num disco de uma fadista, pode ser eventualmente fado se assim o for, se assim for dada essa intenção e essa linguagem. E depois houve o processo inverso de começar a re-adicionar os elementos, primordialmente do fado, mas de uma forma também desordenada, porque nem tudo tem de estar em trio de fado, as coisas podem querer dizer outras coisas, a guitarra portuguesa e a viola têm expressões próprias.”
Carminho está a falar d’A Tecedeira, a canção que abre Maria e nos abre também a meio, sem pedir desculpas. É só voz e silêncio, mas talvez seja ainda mais fôlego e respiração desgarrada, quase aflita. É ar de quem precisa de cantar para encher os pulmões, é ar de quem não tem vida se não fiar toda a beleza. A voz, só a voz, puramente a voz. É este o primeiro pilar de Maria. O segundo não é quantificável. “É a minha reinterpretação do ambiente, de uma atmosfera, de um espaço que encaminha as palavras e a música para o coração das pessoas, não um coração necessariamente emotivo, mas também o lado mais ancestral da própria pessoa, que recorda o que é que aquilo a faz sentir, porque tem a ver com a sua história. Nós só sentimos coisas com as canções porque temos a nossa história. Tem a ver com a nossa história, não com a história do fadista ou do artista. Há ali uma convergência de emoções, mas eu não faço emocionar ninguém, a pessoa é que se emociona porque essa pessoa viveu uma história.
Pode ser através de mim, eu posso ser um veículo, mas a pessoa é que tem esta capacidade de se emocionar.” Então vêm as histórias, as estórias. “O fado conta histórias, essa é a principal razão pela qual ele nasceu”, diz, e a voz acende. “As pessoas precisavam de contar as suas vidas umas à outras sem se expor demasiado, porque a exposição podia trazer alguma fragilidade, podia passar alguma fraqueza. Se eu te contar que estou a passar por uma dificuldade financeira, tu vais sentir uma fraqueza, mas se eu o cantar, eu fiquei satisfeita, e tu não sentiste que eu sou uma fraca. Eu sinto que o fado nasceu para as pessoas que viviam num ambiente de sobrevivência, tinham profissões difíceis, marinheiros, estivadores, prostitutas que viviam com dificuldades, e que a primeira coisa que as destrói é a fraqueza, é não serem firmes, não terem confiança para superar as suas coisas. Não podiam demonstrar essa dor, então cantavam-na e desfaziam-se das suas mágoas em comunidade, comunidade essa que acabou por ser uma expressão que se tornou artística. Isso acabou por ser muito bonito, pensar que as pessoas partilhavam através da beleza.”
Carminho sorri, mais para si mesma do que para nós. Olha para um ponto na sala e sabemos que está a voltar atrás dela própria. Volta a apoiar os cotovelos na mesa para contar: “Eu lembro-me de, quando era mais nova, quando tinha uns 16 ou 17 anos, uma amiga me perguntar se eu não tinha vergonha de cantar à frente dos meus pais. Foi a primeira vez que realizei tal coisa, e naquele segundo fiquei com vergonha. Disse: ‘Realmente nunca tinha pensado nisso, e eu exponho-me imenso, conto a minha história.’ Quer dizer, exponho-me desta forma controlada, desta forma poética. Tive ali um momento de constrangimento, de vergonha, mas automaticamente superei, porque foi assim que eu cresci, à volta dos meus pais. Os meus pais sempre me deram a liberdade total de eu ser quem eu quisesse. Eu não tinha que lhes dizer exatamente o que se passava comigo, com 15, 16, 17 anos, aquela altura mais difícil de uma pessoa se expressar, porque eles acabavam por me acompanhar. E eu dava-lhes. Eu era uma filha, acho que de alguma maneira saudável e boa para os meus pais porque eles não ficavam completamente em branco naquelas dificuldades que os adolescentes passam e se escondem. Eu abria-me à minha maneira. E como a minha mãe também sempre cantou, acabou por ser uma forma bonita de comunicar. E eu percebi, então, que na altura em que o fado nasceu era exatamente isso que acontecia. Era eu precisar de dizer uma coisa aos meus pais e eles precisarem de ouvir. Ficava ali
a comunicação feita e não havia necessidade de eu estar a explicar o que é que se passava – até porque era constrangedor.” Continua a fazê-lo? “Sim, acho que de alguma maneira sim. Cada vez há menos tabus, os meus pais são companheiros da minha vida. Mas continuo a fazê-lo, há coisas que não há necessidade de esmiuçar demasiado.”
Também não é preciso esmiuçar muito Maria. É um disco muito claro, límpido, lavado. É puro, é fado. Carminho assina muita da composição – quatro das canções com letra e música, e apenas letra em mais duas – e as outras músicas originais são de Joana Espadinha. Duas mulheres, portanto. “Foi uma coincidência”, explica-nos. “É bonita a coincidência. Acho que prova que as mulheres têm cada vez menos medo de se afirmar. Pelo menos falo por mim: este é um grande passo para mim, esse rasgar daquele pano tem a ver com esta afirmação como mulher na música, como compositora, como produtora. É uma forma de passar às outras mulheres uma confiança. Não que eu sinta não que sejamos capazes, e às vezes até insistir muito nesta ideia de que somos capazes acaba por nos diminuir – pelo menos na nossa conjuntura social, não falo nisto para outras estruturas sociais, de outros países, onde as mulheres realmente vivem um problema. Mas na nossa sociedade portuguesa, ou europeia, tem de haver uma naturalidade da própria mulher de conviver com a sua força, de não achar que essa força é especial, mas de achar que essa força é natural. Todas estas mudanças muito significativas que foram grandes conquistas de mulheres muito fortes somos nós que estamos a colher, e nós temos de as colher de uma forma confiante. Sou super a favor desta força feminina, mas eu acho que as mulheres têm de saber abraçá-la, têm de ser dignas dessa força, têm de achar que essa força é natural, têm de normalizar essa posição, não torná-la demasiado especial porque isso é uma forma de preconceito também.” Sim, Carminho é também a produtora de Maria, não porque o tivesse planeado, mas porque este salto para dentro era tão pessoal que ninguém o retrataria tão bem. Mas dentro de Maria não há só Carminho: há Bernardo Couto, José Manuel Neto e Luís Guerreiro na guitarra portuguesa, Flávio César Cardoso na viola de fado, José Marino de Freitas no baixo acústico, João Paulo Esteves da Silva no piano, Filipe Cunha Monteiro no pedal steal e guitarra elétrica. Ah, na guitarra elétrica também há Carminho, que a toca em Estrela. É, Carminho também toca.
O que é que Carminho não faz? A imagem. Começamos pela capa: uma imagem de Mariana Maltoni em que Carminho rompe com o vermelho sangue, quase num parto, quase numa travessia. “Sim, há um renascer”, explica. “Eu acho que todos os discos são um renascimento. Há ali uma fase de descoberta, porque cada disco é um procura sobre quem és tu naquele momento, e às vezes isso é deparares-te com tudo o que isso tem de bom e de mau. Tudo o que é uma análise verdadeira sobre nós próprios é algo que pode trazer alegrias e dissabores, mas que tem de ser ordenado, que tem de ser organizado dentro de nós, para realmente percebermos quem é que somos naquele momento. Há sempre um nascimento dessa pessoa [diz, enquanto sorri], pelo menos tem sido assim para mim. Tem sido uma espécie de nascimento por fases [risos] neste caso por cinco fases. E esta foi mais uma, mais uma fase da minha vida que me fez renascer, este disco é essa sensação.”
Afadista admite que todo o mundo, hoje, passa por uma imagem, e é nesta sede de estar presente, de completar a audição com a visão que nasce o projeto visual de Maria. “Eu sentia uma grande sede de corresponder em termos visuais àquilo que eu estava a fazer no meu estúdio. [...] Isto é um bocadinho elogiar-me a mim própria, mas quero dizer que tinha de ser tão honesto como eu estava a querer fazê-lo, com a mesma potência de conceito, com a mesma vontade de criar algo que era consistente desde o princípio e que vinha desde o nascimento da produção do disco até ao fim, até ao palco.” Começou então a procura por um diretor criativo que serviria como tradutor desta visão. Não foi fácil. Esta era a lista de exigências: “Tinha de ser alguém que tivesse sensibilidade para perceber que eu sou uma artista que já tem uma história, e que tem uma história não só da minha vida pessoal e da minha carreira, mas também uma história num género musical que tem uma história grande desde há 200 anos. Eu não sou uma artista pop que tem uma imagem que se renova a cada disco, eu não me sinto uma outra pessoa, eu sinto-me a mesma pessoa sempre, não sou o tipo de artista que muda de visual de uma forma leviana – e não acho mal que os outros o façam, acho até brilhante, acho fantástico e tenho uma grande admiração por essa construção de imagem. No meu caso, tinha de ser alguém que tivesse muita sensibilidade, muito conhecimento de mim e do meu trabalho, mas também um conhecimento enorme do mundo para poder puxar por mim e fazer com que eu rompesse com as minhas próprias prisões.” Foi assim que chegou a Giovanni Bianco, o diretor criativo da Vogue Italia. Um amigo em comum, Mario Canivello, fez a ponte. Carminho pensava que seria impossível, até porque, desabafa, “nós sabemos que as condições de produção de certos países não são iguais a outros, e nós perdemos um bocado a possibilidade de concretização, apesar de o resultado poder ser igualmente extraordinário. Acontece que o Giovanni é uma pessoa muito generosa, é uma pessoa muito apaixonada. Ele viu, através daquilo que ele já conhecia do meu trabalho e talvez daquilo que eu já representasse na cabeça dele, que era algo
que ele queria fazer, e como tem essa liberdade decidiu oferecer-me o trabalho dele. Para isso, houve também uma luta grande porque isto envolve produção, e essa luta só pôde ser travada com uma grande generosidade”. Quando Giovanni veio a Lisboa fotografar a capa da Vogue italiana com Madonna, encontrou-se com Carminho para um café. E disse que sim. E, semanas depois, voltou. “Esteve cá três dias, e nós corremos Ceca e Meca os dois, Lisboa inteira, a almoçar e a jantar em sítios que eu gostava, fomos à Mesa de Frades, ele conheceu a minha mãe, estivemos horas à conversa sobre fado, ele foi à minha casa, eu cozinhei para ele… percebes? Tudo foi construído através de uma relação emocional. Teve de haver uma dádiva, teve que haver uma generosidade, mas também houve uma partilha muito grande de mim, neste aspeto mais concetual. E ele estava muito aberto a receber.” Os dois começaram a pesquisar, a tecer o seu fio de nomes. Mergulharam em exposições, percorreram um livro de Delfim Sardo de fio a pavio e chegaram a fotógrafos artistas. “Eu sou muito amiga do Julião [Sarmento] e, por isso, o Julião foi a pessoa com que eu disse que gostava muito de trabalhar. Nós entendemo-nos muito bem, já trabalhámos juntos antes, somos amigos, é uma relação verdadeira, real. Depois, eu tinha acabado de vir de uma exposição do José Pedro [Cortes], incrível, muito inspiradora para nós, que o Giovanni também foi ver, trouxe o livro.” O terceiro nome, proposto por Bianco, foi Inês Gonçalves e, com Mariana Maltoni (que oferece um olhar mais fresco e sem vícios, por nos ver de fora) que veio com Giovanni do Brasil, estava fechado. “Eu convidei-os e eles os três ofereceram-me o trabalho deles. Eu contei com a generosidade de quatro artistas incríveis que simplesmente aceitaram este desafio, pela arte, pela experiência emotiva. Eu saio a ganhar, claro [risos], porque tenho fotografias incríveis, tenho uma forma de comunicar o meu disco e acaba por ser uma forma de comunicar às pessoas, portanto quem ganha mais sou eu [risos], e por isso é que eu acho muito generoso estas pessoas todas terem feito isto. Mas eles também me davam feedback, diziam que era giro serem desafiados a fazer coisas diferentes, e foi bom eu saber que alguma coisinha eles
“EU SINTO QUE O FADO NASCEU PARA AS PESSOAS QUE VIVIAM NUM AMBIENTE DE SOBREVIVÊNCIA, TINHAM PROFISSÕES DIFÍCEIS E QUE A PRIMEIRA COISA QUE AS DESTRÓI É A FRAQUEZA, É NÃO SEREM FIRMES, NÃO TEREM CONFIANÇA PARA SUPERAR AS SUAS COISAS. NÃO PODIAM DEMONSTRAR ESSA DOR, ENTÃO CANTAVAM-NA E DESFAZIAM-SE DAS SUAS MÁGOAS EM COMUNIDADE.”
também levaram aqui disto, deste processo todo.” À ficha técnica de luxo, à generosidade sem limites e ao talento sobre‑humano ainda se junta Helena Silva e a equipa da Snowberry, que carregaram todos os dias de sessões de fotografia e vídeo aos ombros com a leveza e o amor que só se encontram na melhor equipa de produção do País. O resultado são imagens que descem ao âmago, “não só à origem de mim mas à origem do próprio fado, onde é que ele nasce, que emo‑ ções é que traz e porque é que ele é tão nostálgico. Tem a ver com um bairro, tem a ver com o mar, com o rio que nos leva para longe, ou então que nos faz esperar, que nos faz angustiar, tem a ver com memórias e com saudade talvez de muita coisa que nunca vivemos. É assim uma transfiguração do próprio tempo, que não tem princípio nem fim, mas que dá origem a um outro universo de emoções e de expressão artística”.
Tudo isto para que a Maria possa contar a sua história. As suas histórias. “Conta histórias de crescimento pessoal, conta histórias de superação, reconhece nos outros também a nossa própria força, porque nós dependemos também muito dos outros para continuar, portanto há ali uma espécie de ode à amizade, e à cooperação entre nós, entre as pessoas que se amam, e podemos contar com elas, nós não estamos sozinhos e temos de saber isso, temos de confiar nisso. Há uma espécie de fé, uma fé no outro, uma fé na vida, que a vida nos faz recuperar de tudo o que vivemos, de tudo o que possamos ter perdido, de que há uma constante renovação da nossa energia e da nossa capacidade de superação, há sempre um novo dia. É uma grande esperança que ela canta, mesmo que às vezes esteja a falar de momentos mais difíceis que tenha vivido. É isso que ela acaba por querer dizer. Nós todos passamos por dificuldades, mas o mundo renova‑se. O mundo é como aqueles tecidos mágicos do corpo humano que estão sempre a criar novas células e a renovar‑se, é uma espécie de ferida que sara, e isso é bonito, é mágico. Eu tenho uma dificuldade enorme de perceber certas coisas, por exemplo, perceber como é que os telemóveis funcionam. Mesmo aquele sistema
dos fios… como é que a minha voz vai reproduzida até ao outro lado, e a minha avó fala comigo e eu percebo a voz da minha avó e é igual a quando eu estou ao lado dela. Não consigo materializar. E também não materializo este milagre do corpo. De uma ferida sarar. É uma coisa muito simbólica e muito poética para mim. E que me dá imensas ideias. Isso pode‑se multiplicar para muitas outras coisas da nossa vida, esta nossa capacidade de regeneração.”
No fim do dia, no fim de tudo, o que Carminho queria para Maria é que fosse honesta. E isso dói? Assusta? “Sim. Para já porque é preciso alguma coragem, e se é preciso coragem pressupõe que alguma coisa mete medo. Há esta dualidade. Se damos o passo em frente, temos de seguir a nossa intuição. E eu segui muito a minha intuição. Sem‑ pre segui, e sempre me dei bem com isso. Tudo o que eu conquistei foi fruto de eu nunca me mentir a mim. Até posso às vezes tentar enganar‑me, de me convencer que outra coisa seria melhor para mim, mas no fim eu não consigo ceder. E essa não cedência acaba por trazer uma consistência. Mas essa honestidade toda, de olhar para o que se está a sentir e não deixar passar, às vezes implica a pessoa ter de se afirmar e ter de lutar mais um bocado, e os outros já não estarem preparados para aquilo ainda ser mais exigente. A exigência está dentro de nós, não está dentro dos outros. Aquilo que nós queremos para nós não está dentro dos outros. Os outros até podem vir connosco. Às vezes também há aquela tendência de não querer exagerar, não querer puxar demais porque pode ferir alguma suscetibilidade, por isso eu acho que tem de ser feito com honestidade, tem de ser feito com carinho, com delicadeza, até por nós. Uma delicadeza comigo mesma.” ●
“NÓS TODOS PASSAMOS POR DIFICULDADES, MAS O MUNDO RENOVA-SE. O MUNDO É COMO AQUELES TECIDOS MÁGICOS DO CORPO HUMANO QUE ESTÃO SEMPRE A CRIAR NOVAS CÉLULAS E A RENOVARSE, É UMA ESPÉCIE DE FERIDA QUE SARA, E ISSO É BONITO, É MÁGICO.”