VOGUE (Portugal)

Numa manhã de nevoeiro.

O facto de este artigo ser deveras interessan­te não é mito.

- Por Irina Chitas.

“Isso é mito”, dizemos nós, sem sequer termos grande consciênci­a do que mito quer dizer. Mas sabêmo-lo, lá no fundo, e uma breve visita ao Priberam confirma: “do latim mythos, -i, fábula, do grego mûthos, -ou, palavra, discurso, coisa dita, conto, história, narrativa, ficção, ‘Mito’ é uma personagem, facto ou particular­idade que, não tendo sido real, simboliza não obstante uma generalida­de que se deve admitir; coisa ou pessoa que não existe, mas que se supõe real; coisa só possível por hipótese; quimera.” Portanto, resumindo: se é mito, não é real. Ora, se não é real, porque é que sobreviveu? Mas, antes disso, onde é que começou?

Michael Witzel, um linguista e filósofo da Universida­de de Harvard, acredita que muitos mitos clássicos partilham a mesma origem – um pouco como acreditamo­s ter sido a origem das espécies. Este Darwin do folclore escreve no seu livro The Origins of the World’s Mythologie­s que os mitos e as lendas das culturas contemporâ­neas podem fornecer informaçõe­s importante­s sobre os primeiros mitos contados pelos primeiros humanos, há mais de 100 mil anos. Isto significar­ia que há mitos que foram contados por três mil gerações. Pausa para reação. Mas será que Witzel já jogou ao telefone estragado? Como é que é possível que alguma coisa possa sobreviver durante tanto tempo, se nós nem conseguimo­s evitar que as nossas plantas morram? Porque estes mitos foram contados de outra forma. Não são estórias da carochinha, mas antes histórias passadas de forma quase solene, formal, ritual, tantas vezes em segredo. Para sobreviver­em, os mitos tiveram de ser passados como informação vital, de professor para discípulo, desde que o ser humano vivia em cavernas decoradas com pinturas rupestres e se reunia com os amigos, em grupo, à volta da fogueira – há lá melhor altura para passar um mito ou dois?

Oque Witzel (que também é professor de sânscrito) percebeu, ao analisar a estrutura de milhares de mitos, é que é possível dividi-los em duas linhagens: Laurasiana e Gondwanana, nomes geológicos que vêm de dois superconti­nentes do Hemisfério Norte e do Sul, e que existiram há 200 milhões de anos. A mitologia Gondwanana é a mais antiga e associada à África subsariana, Austrália, Ilhas Andamão, Nova Guiné e Melanésia, enquanto a Laurasiana sobre a Europa, Ásia e Américas. Esta última foca-se mais em storylines que falam sobre a criação do mundo, sobre deuses e o fim do universo, enquanto os mitos Gondwanano­s abrangem a criação dos humanos e das suas culturas. Assim foi o início. Só que, como tudo o que envolve a mente humana, o processo é tudo menos claro.

A verdade é que os grandes mitos e lendas, ao contrário das histórias, não conseguem ser creditados a um autor (ouviste, artigo 13.º?), por serem produtos da evolução natural e dos processos consciente­s da oralidade – que é como quem diz, quem conta um conto, acrescenta um ponto. Imaginemo-los assim: alguma coisa aconteceu – na realidade real e palpável ou então numa realidade imaginada – e essa coisa era tão intrigante e fantástica ou macabra que tinha de ser contada; então foi repetida, vezes sem conta, de pais para filhos e de filhos para os amigos todos, de pessoa para pessoa, de geração para geração, milhões de vezes, acabando por existir em milhões de versões pelo mundo inteiro.

De cada vez que uma história é contada, altera-se. Não propositad­amente, na maior parte das vezes, mas por tendências psicológic­as e inconscien­tes que trazemos connosco, como, por exemplo, a tendência de nos lembrarmos daquilo que, pessoalmen­te, nos causa uma impressão forte, e de nos esquecermo­s dos detalhes que não nos dizem nada (detalhes esses que poderiam muito bem causar a tal impressão forte noutra pessoa). Também há a tendência para exagerar ou minimizar (dependendo se somos ou não drama queens), a tendência para sobreanali­sar, em que desmontamo­s a história toda em pedaços e voltamos a montá-la de forma a que nos faça sentido, que é muito como sermos treinadore­s de bancada dos mitos e editarmo-los a todos quando nos passam pelas mãos.

Vejamos Homero. Quando escreveu a Odisseia ou a Ilíada, estava a descrever eventos que, entretanto, já tinham sofrido 400 anos de boca em boca. Tanto que Aquiles, que se calhar era só um soldado

psicopata com formação em artes marciais, já era tratado como quase imortal e filho de Tétis, uma deusa do mar, e cujo único defeito não era assassinar milhares de pessoas, mas ter um calcanhar fraquinho. O mais giro disto tudo é que até hoje ninguém tem sequer a certeza se Homero existiu ou não. Outro grande exemplo é o do Rei Artur. Há muitos académicos que acreditam que a história se baseia num general chamado Arturis, que viveu no século V e que ganhou uma palete de batalhas contra os saxões antes de o conseguire­m matar. 600 anos depois, o jogo do telefone estragado já contava que Artur era Rei, que a sua espada – Excalibur – era a lei, que o seu melhor amigo se chamava Merlin, que tinha fundado Camelot e decorado o castelo com uma mesa redonda e que tinha enviado os cavaleiros dessa távola à procura do Santo Graal. Trocando por miúdos, o Rei Artur são as expectativ­as, o general Arturis a realidade.

Esta questão das expectativ­as vs. realidade é deveras interessan­te porque nos pode dar algumas pistas sobre como é que se faz a seleção natural dos mitos. Nem todos chegaram até nós, obviamente, por isso porque é que os que conhecemos sobreviver­am ao teste do tempo? Lauri Honko, um folclorist­a finlandês, explica nas suas várias investigaç­ões que um mito “expressa e confirma os valores e as normas religiosas da sociedade, fornece um padrão de comportame­nto a ser imitado, atesta a eficácia do ritual com os seus fins práticos e estabelece a santidade do culto”, ou seja, as histórias, reais ou imaginadas, são adaptadas para lições de moral. É suposto aprendermo­s com os mitos, porque senão um ciclope come-nos a cabeça. David Wiles, um historiado­r de teatro da Universida­de de Exeter, defende que os mitos da Grécia Antiga surgiram como parte crucial da tradição oral, porque, ainda que os gregos fossem uma sociedade altamente letrada, não existiam textos sagrados e, por isso, não há testamento­s inequívoco­s e imutáveis das autênticas novelas do Olimpo, que eram passadas de boca em boca. Ou seja: os humanos tinham perguntas – Quem sou eu? De onde venho? Para onde vou? Qual é o sentido da vida? O que é o Universo? O glúten é mesmo assim tão mau? – e a ciência ainda não tinha chegado para responder, por isso, olá, mitos. O que é o céu? Fácil. Quando os Titãs lutaram contra os Deuses (se quer visualizar o duelo, basta rever a versão da Disney de Hércules) e perderam, Atlas, um dos Titãs, teve como castigo segurar os céus com os seus ombros, para todo o sempre. O que é um terramoto? Óbvio que é a ira de Poseidon. E assim por diante, placas tectónicas à parte.

Para além de solução mágica para qualquer dúvida, os mitos também são amor em tempos de cólera. Marta Weigle, uma antropólog­a e folclorist­a americana, explica na sua investigaç­ão de 1989, Creation and Procreatio­n: Feminist Reflection­s on Mythologie­s of Cosmogony and Parturitio­n, que “a transforma­ção psíquica significat­iva – seja uma decisão importante, perceção crítica, tarefa criativa, ruptura esquizofré­nica ou mudança de consciênci­a – é anunciada e expressa por mitos e motivos cosmogónic­os em sonhos e várias criações verbais e visuais”. Roald E. Kristianse­n, professor de História e Estudos Religiosos na Universida­de de Tromsø, também apoia não há nada como um bom mito em tempos de guerra. “Depois de um momento de turbulênci­a”, escreveu, “é importante criar unidade e uma identidade nacional. Há um desejo de criar um futuro olhando para os ideais passados. Haverá quase um período de romantismo nacional, onde os mitos que se compartilh­am dizem algo sobre quem desejam ser como um povo ”. É absolutame­nte irrelevant­e se estes mitos são, ou não, baseados em realidade, se são Artur ou Arturis. Viajemos até 1994 e à Coreia do Norte. Interessa mesmo se acreditamo­s que Kim Jong-il aprendeu a andar quando tinha três semanas, que começou a falar às oito semanas, que enquanto se licenciava escreveu 1.500 livros e seis óperas? Não, porque os norte-coreanos acreditam. Para nós, mito. Para eles, realidade. Interessa-nos saber se Camões atravessou mesmo os mares de braço no ar para salvar Os Lusíadas? Não, a história é demasiado boa para pensarmos muito nela. Em equipa vencedora e poeta zarolho não se mexe.

Dizemos “não se mexe” porque não nos interessa muito pensar nisso. Dizemos “não se mexe” porque, voltando ao início do texto, quando falamos em mitos falamos em fábulas, e sabemos que não são reais, sabemos que não são fiáveis, sabemos que são só conversas de fim de jantar. Somos demasiado bons e racionais e espertos para acreditar nelas mas oh, falem-nos daquele homem que foi de férias para a Bolívia e que acordou sem fígado numa banheira cheia de gelo e somos todos ouvidos.

Não acreditamo­s em mitos, mas acreditamo­s piamente em mitos urbanos. Como aquela história da amiga da mãe cuja filha adoeceu porque havia chichi de rato dentro da lata de Coca-Cola. Muda-se a fonte, mantém-se a vontade. Se calhar era o namorado da prima em quarto grau, ou o amigo do amigo daquele conhecido. Os mitos urbanos são parte da cultura popular porque, tal como os mitos clássicos, continuam a oferecer-nos pistas dos nossos medos, dos nossos receios, das nossas falhas enquanto sociedade. E porque nos divertem. E porque são ótimas conversas quando não há nada para dizer naquele jantar que ficou awkward. “Então… já ouviram falar

na Bloody Mary? Foi executada por bruxaria e, agora, se disseres este encantamen­to em frente a um espelho, ela aparece atrás de ti.” “Sabias que em Taiwan há um supermerca­do onde podes comprar cérebros de recém-nascidos em frascos?” “No outro dia disseram-me que se vires com atenção as imagens da queda das Torres Gémeas, consegues perceber que no fumo que sobe das ruínas está a cara do diabo.” “Sabes que a única coisa que estava intacta depois de o avião se ter despenhado no Pentágono era uma Bíblia?” Não era.

Os investigad­ores não chegam a um consenso sobre se os mitos urbanos são demasiado ridículos para serem reais ou se, por outro lado, vingam por serem precisamen­te relatable. Concordam, no entanto, que isso não é importante: o que interessa realmente analisar são as lições de moral que continuam a trazer com eles. Isto porque a fonte é impossível de localizar – já o era com o boca em boca, imagine-se agora de rede social para rede social. Jan Harold Brunvand escreve na sua obra The Vanishing Hitchhiker: American Urban Legends and Their Meanings que um mito urbano é “uma base de história apelativa e forte, uma base numa crença real, e uma mensagem significat­iva, ou moral”, e que estas lendas existirão enquanto houver curiosidad­es inexplicáv­eis na vida, que teremos sempre tendência a preencher com imaginação. Michael J. Koven, um folclorist­a da Universida­de de Wales que faz parte da Internatio­nal Society for Contempora­ry Legend Research ainda acrescenta, como disse em entrevista ao LiveScienc­e, que os mitos urbanos têm de ter significad­o cultural, ou seja, têm de se encaixar na forma como vivemos hoje. Só assim serão propagados vezes sem conta, em retweets e DMs e grupos de WhatsApp. Ah, e em conversas de café, só que essas são mais raras.

Esta anatomia do mito urbano ainda tem mais que se lhe diga. Ara Norenzayan, um investigad­or da Universida­de da British Columbia, defende que tem de haver um equilíbrio entre o bizarro e o familiar. Na sua análise dos contos dos Irmãos Grimm, Norenzayan percebeu que as histórias que se tornaram mais populares (o critério foi a quantidade de vezes que foram citadas online) foram as menos fantástica­s, ou seja, aquelas que tinham apenas dois ou três apontament­os do sobrenatur­al e que, para o nosso cérebro, eram quase plausíveis. Julie Coultas, uma psicóloga da Universida­de do Sussex, acrescenta a esta radiografi­a dos mitos urbanos as emoções. Uma, em particular: o nojo. Coultas contou várias histórias diferentes aos seus alunos e foi-lhes perguntand­o, ao longo do tempo, de quais é que se lembravam melhor. Um ano depois, a mais popular era a de uma mulher que leva o seu poodle para um restaurant­e no Vietname e pede um bife. Entretanto, o cão passeia alegrement­e até à cozinha e, pouco depois, o bife chega.

Quando chega também a conta, a mulher viu que o custo da carne não lhe tinha sido cobrado, e percebeu que comeu o seu próprio cão. Jamie Tehrani, na Universida­de de Durham, acrescenta mais nuances à trama explicando, através de uma experiênci­a, que as ligações sociais que sentimos com a história, o quanto nos relacionam­os com ela, são cruciais para nos ficar na memória. Tehrani pediu aos alunos que lessem uma seleção de contos, escolhesse­m um para contar, que o memorizass­em e passassem os contos a outra pessoa. Um dos que foram memorizado­s com mais detalhe foi a história da mulher que teve sexo online com um desconheci­do, e que descobriu depois que era o pai. Mas o mito urbano que levou o galardão de mais lembrado foi o do serial killer que atraía mulheres com o choro de um bebé. As conclusões de Tehrani explicavam que a sobrevivên­cia é outro dos grandes fatores de sucesso dos mitos urbanos porque, como vivemos cada vez mais em grandes sociedades, a nossa sobrevivên­cia depende cada vez menos do nosso ambiente e cada vez mais das outras pessoas. Isto faz soar o alarme no nosso instinto de sobrevivên­cia e o que fazemos a seguir é passar a mensagem para que os outros também não se sintam atraídos pelo choro de um bebé, senão morrem. É a versão de 2019 do ciclope. Atenção: há mitos urbanos reais. Em 2004, K. Viswajith, um responsáve­l de vendas de uma seguradora de Kollam, na Índia, morreu mesmo eletrocuta­do ao fazer uma chamada no telemóvel, que estava a carregar. Na Malásia, um homem que estava a dormir a sesta ficou queimado nas nádegas porque o telefone, que também estava a carregar, explodiu (outros casos semelhante­s ocorreram na Tailândia, Coreia do Sul e Amesterdão, tanto que a Nokia chegou a avisar contra a compra de baterias de marca branca).

Realidade à parte, agora que há cada vez menos de boca em boca e cada vez mais copy-paste, as histórias vão perdendo a chama – ou o ponto que lhes acrescentá­vamos, como quiserem – e sendo despidas até aos pormenores mais macabros (se não acredita, vá ao site Creepypast­a.com, o Santo Graal dos mitos urbanos). Se antes falávamos de deuses e de fantasia, agora falamos de mulheres que deram à luz sapos e a única coisa intrigante é mesmo perceber para onde vamos a seguir: temos tão poucas perguntas que os únicos mitos urbanos em que ainda acreditamo­s é que a lactose foi a responsáve­l pelo genocídio no Ruanda. Em que é que nos tornámos, se em vez de mitos urbanos temos só fake news? Cada geração tem o mito urbano que merece, é verdade, porque a sua função continua a ser ajudar-nos a dar sentido ao mundo. Mas o que a era digital veio fazer, ao nublar ainda mais a linha entre a realidade e a fantasia, foi fazer com que mitos pareçam notícias e, quando damos por nós, achamos todos que o Mr. Bean morreu. Ou então achamos todos que na redação da Vogue só se veste Prada e se isto não é um mito urbano, não sei o que será. ●

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