Creme de la creme.
Agora que o mundo está ao contrário, o bege surgiu-nos como tom-desejo. Veio por uma brecha na parede, aquela que deixa entrar a luz. Porque queríamos? Não. Porque precisávamos.
Se não gosta de bege, é melhor hibernar e voltar daqui a dois anos.
Até porque não o quisemos durante anos. Chamámos-lhe aborrecido. Bocejámos quando o vimos espalmado nas paredes. Quando alguma coisa nos fazia adormecer, nos entorpecia; quando alguma coisa não tinha qualquer efeito na nossa frequência cardíaca, quando era morninho, tépido, inócuo, dizíamos que era bege. Chamem-lhe creme ou nude, chamem-lhe papas de aveia ou meia de leite, chamem-lhe pelo vosso nome, chamem-lhe o que quiserem, o que vos fizer sentir mais confortáveis, o que quer que vos leve a engolir as palavras de enfado que pronunciaram há duas estações, quando as primeiras peças bege começaram a imiscuir-se nas passerelles. Porque agora tiveram, como nós, de as engolir.
Bege. É verdade, a própria palavra é um tédio. Tem quatro letras e duas delas são “E” que nos faz logo pensar “Ehhh”, com um encolher de ombros. Em inglês e francês também não melhora: beige, assim arrastado, molengão – e quando as coisas não soam melhor em inglês e francês, está grave. É igual em espanhol e italiano, caso se estejam a interrogar. Sim, até nisso é aborrecido e fez-me gastar tempo útil no Google Tradutor.
Agora que já passámos tempo suficiente a enfatizar o quanto o mais neutro dos neutros funcionou como soporífero – o bege é o Xanax das cores – talvez seja importante explicar porque é que, de repente, ele está em todo o lado. Porque é que agora nos atrai quando antes nos maçava. Também é importante ressaltar que, quando falamos em
bege, estamos a falar de um mundo maior que ele: o tal das papas de aveia e da meia de leite, do marfim, do pérola, do creme, do areia, do chantili, do branco sujo, do sujo branco, do avelã, do feijão de soja, do amêndoa torrada, do champanhe, do café com gelo – atenção, muitas destas são denominações oficiais no catálogo Pantone. Todas elas se foram tornando as meninas dos nossos olhos. Todas elas foram deixando de ser só atiradas para a cor do trench-coat Burberry ou do casaco de sonho camel Max Mara. Por falar em Burberry, é aí que a história começa.
Com Riccardo Tisci e as suas 50 sombras de bege na primavera da Casa britânica. Previsível, talvez, mas bem recebido. O mesmo na MaxMara. Diferente na Balmain, Dion Lee, Acne, Ann Demeulemeester, Chanel, Chloé, Dior, Escada, Fendi, Hermès, Issey Miyake, J.W.Anderson, Jil Sander, Loewe, Louis Vuitton, Marni, Mary Katrantzou, Missoni, Miu Miu, Moncler, Ports 1961, Prabal Gurung, Prada, Rejina Pyo, Salvatore Ferragamo, Tom Ford. Isto só para dizer umas quantas – podíamos perfeitamente escrever todo este texto só na base de um name dropping básico. Porque o bege foi constante, permanente, omnipresente.
Aconteceu o mesmo há 10 anos. A Vogue americana falava numa autoridade tranquila, numa suavidade de estilo. No fim de 2018, lemos no Vogue Business, as pesquisas de peças bege no Lyst aumentaram 21% – no Tagwalk a percentagem sobe para 118 –, o Net-a-Porter aumentou o investimento nestes tons em 25%, o atlas de cor anual do Archroma Color Management – que prevê as cores que serão mais usadas com base em movimentos sociais e culturais – tinha os tons terra na lista. Pode ser por um motivo tão simples como aquele que, há uns anos, nos levou ao normcore: uma saturação das cores e dos padrões e dos volumes e dos folhos e dos tules, uma saturação do camp, uma saturação do excesso. A busca infinita pela normalização. Um respirar fundo no meio da confusão, descansar para conseguir continuar ou, paradoxalmente, este bege pode ser a única maneira de alguém se conseguir destacar num oceano de purpurinas. Exatamente como com o normcore – as T-shirts brancas, as calças de ganga, os Adidas Stan Smith –, este novo(-velho) neutro é a única forma de se ser diferentão.
Mas esta paixão redescoberta também pode ser fruto da recente obsessão pela terra, pelo orgânico, bio, natural – até porque o bege pode ser o centro da comoção, mas todos os tons que gravitam à sua volta (do castanho ao ocre, do argila ao caqui) foram presença assídua nos boletins de tendências. Aí, a culpa é um bocadinho do Instagram – outra vez – e de todas as it girls com os seus vestidos em linho e chapéus em vime e cestinhas pela mão, com os pés na areia e as casinhas pitorescas e as férias que não acabam, mas que são todas eu-centrada-em-mim-e-no-meu-bem-estar-mas-também-na-beleza-natural-do-universo-especialmente-deste-mercado-todo-bio-cenas. No fim, ficámos todos com feeds em tons sépia (olá, 2007) que nos dizem que só de usar esta roupa já estamos mais conectados com a Terra-Mãe. Aliás, se nos importamos minimamente com o aquecimento global, com as secas prementes e com a quantidade de plástico que consumimos não vamos andar aí de lantejoulas, pois não?
Podemos. Mas a verdade é que, na maioria das vezes, não nos apetece. Quando a vida está muito confusa, quando, ao nível das notícias, todos os dias são 1 de abril, quando os tais feeds de Instagram nos dão náuseas, o que mais queremos é descomplicar e não há nada mais descomplicado do que o bege. É o Xanax das cores e oh, como precisamos de um Xanax. O bege também não nos compromete com nada (a não ser com o molho de tomate do almoço, mas, ei, quem não arrisca não petisca), não nos exige muito e faz-nos parecer sérios, fiáveis, com os pés assentes na terra (ainda que apenas metaforicamente).
Para além de tudo isto, o bege tornou-se político. Porque com ele vem todo o espetro de nudes, vêm todos os tons de todos os corpos, e forrarmo-nos com a nossa própria pele, deixá-la assim, de fora, para todo o mundo ver, este corpo que é tão nosso, mas que estamos à beira de perder porque as decisões políticas parecem saídas de uma distopia. É uma tomada de posição. É tomar, ao contrário de um Xanax, uma atitude, uma causa. É dizer que não é a nudez que dá o direito a outro de invadir o nosso espaço privado, a nossa vida e a nossa autonomia. Quando as cores de pele, que são tantas, infinitas e bonitas, se podem vestir, e se podem vestir livremente, o vermelho do cravo é o melhor acessório.
Então tudo o que o bege traz com ele – a calma e a tempestade – fá-lo importante. Este agrupamento de cores é democrático e foi por isso que nos conquistou, porque a nossa sede de justiça é cada vez maior. Preenche-nos as necessidades e está tudo bem se quisermos paz e está tudo bem se quisermos luta. As cores de pele estão bem. Estão todas bem. ●