Mocktail: Awaken, not blurred.
Mock: Algo não autêntico, mas sem intenção de ludibriar. Tail: Cauda, extremidade traseira. Cock: É só um galo, não sejam maliciosos.
Precisa de álcool para se divertir? Precisava. Vamos mudar juntos este tempo verbal. Por Nuno Miguel Dias.
No tempo em que Portugal ainda não o era, muito se pelejava de norte a sul para expulsar daqui os Mouros, esses velhacos que nos ensinaram as regras mais básicas de higiene, o cultivo de regadio (e, logo, em extensão), a Matemática (ah malditos, que trouxeram o Zero e complicaram isto tudo) e o álcool proveniente da destilação, que permitia as mais mirabolantes práticas médicas, como a remoção de cataratas, por via da esterilização dos instrumentos. Ingeri-lo? Nem pensar!
O Islão, como a esmagadora maioria das religiões, não é rígido. São as interpretações que alguns ramos fazem dos “Escritos Sagrados” que originam dogmas. Esses, que também existem no catolicismo (um dos muitos ramos do cristianismo), é que originam comportamentos de grupo que, numa análise sociológica que nem precisa de ser muito profunda, em pouco ou nada divergem do corriqueiro bullying de fedelhos no recreio do ensino básico exercido sobre quem não cumpre as “regras” do “bando”. O que se torna especialmente problemático, porque justificado, quando há um “mentor” a replicar mensagens pouco apaziguadoras a partir do altar, púlpito ou palco. Ali um pouco atrás, as “regras” estão entre aspas porque não o são. São meras recomendações. Quem as transforma em leis são os intérpretes mais indispostos e azedos. Quando se diz, pois, que a maioria das guerras travadas pela humanidade têm como origem a religião, pasme-se, afinal foram os homens. Estamos, claro, a falar de um tempo mais ou menos recente. Quando o muçulmano diz, por exemplo, que a carne de porco é impura, está a falar de uma recomendação feita há muito tempo, numa região onde as temperaturas e as parcas condições de armazenamento da carne de gado suíno trariam epidemias de tudo e mais alguma coisa. O mesmo se aplica ao consumo de álcool. Ali H., cujo apelido decidimos omitir por razões que se tornarão óbvias já de seguida, é proprietário de um estabelecimento de restauração em Lisboa. Está cá há muitos anos, com uma das três famílias. As outras duas estão, respetivamente, em Londres e no Paquistão. “Acha que lá porque o Islão nos diz que podemos ser polígamos as nossas mulheres vão aceitá-lo como se hoje em dia ainda não tivessem uma palavra a dizer? Isso eram outros tempos!”, queixa-se, mas com um sorriso travesso. Álcool já é outro assunto. Não tabu, claro. Aliás, Ali H. acredita que a conversão à religião que professa pode ajudar a ultrapassar não só o alcoolismo como outros vícios: “O Islão encoraja o arrependimento. Deus perdoa quem lamenta as suas ações e procura um novo caminho”, diz. E explica: “Qualquer coisa que seja prejudicial à saúde do homem é desaconselhada. Pelo contrário, promove-se o seu bem-estar. Mas o mal de cada um é responsabilidade sua. O problema é que o álcool é, potencialmente, o inverso de tudo aquilo em que os muçulmanos acreditam. Potencia comportamentos desviantes por toldar o julgamento. Gera inimizades entre pessoas, até ódio, mina a família e a comunidade onde esta se insere. Todos nós o sabemos, sejamos católicos, muçulmanos, judeus, não interessa”. Ali H. não se considera abstémio. É muçulmano, ponto. A religião não é uma motivação. Muito menos desculpa. Mas um estilo de vida exige sempre uma profunda crença em algo que consideramos maior. Nem que seja a saúde.
Na sociedade onde nos integramos, o consumo do álcool é um fenómeno social. Só isso explica o facto de, apesar de termos acesso a tanta informação que comprova, com base na ciência, as centenas de malefícios do álcool, o consumamos com mais ou menos regularidade, sem que haja, sequer, o mais pequeno estigma social. Começamos muito novos, nas festas da escola ou universidade, festas de amigos, festivais de música ou saídas ao fim de semana. Quem não bebe, é pária. E lá estão os papás, à espera à porta da discoteca, para levar os seus petizes de volta a casa com toda a segurança, uma garrafa de água com gás para diluir a coisa, um snack antes de dormir, tudo aquilo que atenua a ressaca no dia seguinte. Como é que os atenciosos progenitores sabem estes segredos? Porque também o fizeram, no seu tempo. A única diferença é que tinham de esperar pelo primeiro transporte da manhã. Como os seus pais só tinham de “ouvir” a esposa, quando chegavam tortos da taberna, um jaquinzinho para “embeber”, meio papo-seco para “empurrar”. Foram séculos de um Portugal sobre o qual o negro fantasma do álcool pairou, um povo de juízo toldado, de prioridades trocadas, de “maus vinhos”, de famílias desfeitas como fígados em cirroses pestilentas e chegamos ao século
XXI como beberrões oficiais. A coisa é tão light que, num País próspero em criatividade, onde a escrita e a música agraciaram sempre o mais comum do popular, contam-se pelos dedos de uma mão as obras que chamam a atenção para aquele que sempre foi um problema social, principalmente no tempo da ditadura (Salazar chegou a proibir a refrigeração das bebidas destiladas, que as tornava mais “suaves”). Contrastando com o aviso sério de Amália, a Voz de Todos Nós: “Oiça lá ó senhor vinho, vai responder-me, mas com franqueza, porque é que tira toda a firmeza a quem encontra no seu caminho? Lá por beber um copinho a mais, até pessoas pacatas, amigo vinho, em desalinho vossa mercê faz andar de gatas”, ao que O Vinho responde: “Eu já fui, responde o vinho, a folha solta a bailar ao vento. Fui raio de Sol no firmamento que trouxe a uva, doce carinho. Ainda guardo o calor do Sol e, assim, eu até dou vida, aumento o valor seja de quem for, na boa conta, peso e medida. E só faço mal a quem me julga ninguém e faz pouco de mim, quem me trata como água. É ofensa? Pago-a! Eu cá sou assim”, há o eterno escárnio dos Irmãos Catita: “Terras e casas num sopro ganharam asas, tudo o vinho destruiu. Talento e sonhos, em pesadelos medonhos o maldito diluiu. Não bebas jovem, que o vinho não é ser homem, o vinho é ser animal. Cruel castigo, sombra negra, inimigo deste nosso Portugal.” Mas há quem tome outra estrada. Para além dos abstémios por razões religiosas, de saúde, ou de traumas advindos de casos de alcoolismo na família, há os que não bebem álcool, sob qualquer forma ou em nenhum evento social, só porque não. Não é razão? É pois! E a melhor delas.
Daniel Alves é cabeleireiro, quarentão, preocupadíssimo com o físico e a indumentária. Começou a carreira em TV. Todos os cabelos de que nos lembramos das telenovelas nacionais eram da sua responsabilidade. Hoje, é proprietário de um salão na Margem Sul, para chegar ao qual os clientes de Lisboa (e Odivelas e Sintra e Mafra) enfrentam os piores engarrafamentos. Há quem venha de França, Inglaterra, até Buenos Aires e Cidade do Cabo, não obstante a vinda tenha outros fins, que não perdem a oportunidade. Para marcar, só com um mês e meio de antecedência. Agora, por razões amorosas, frequenta também o círculo de restauração gourmet de Campo de Ourique às Avenidas Novas. É um cocktail (e não ainda mocktail) terrível para quem não bebe álcool. Sara Marques, a outra sócia dos Cabelos Atómicos (Estrada Nacional 10, Corroios), também não toca numa gota. É uma casa abstémia, por opção. “Não me sabe bem. Já o fiz, não me dá prazer, prefiro outras coisas”, repetem, quase em coro. Sara afirma ainda: “De todas as vezes que bebi, não me senti bem. É tão simples quanto isso.” Na Margem Sul do Tejo, quando o calor aperta, um pratinho de caracóis é a visão mais vulgar. Choco frito é todo o ano. Na mesa daqueles dois, há refrigerantes ou mesmo água. É uma imagem dissonante, que chama a atenção dos outros clientes. “Não me rala. Não julgo ninguém por beber cerveja como quem bebe água, não me importo que me julguem por beber água como quem tem sede.” Saídas à noite? Tudo piora. A não ser que alguém, um dia, tenha inventado uma coisa chamada mocktail, a Oitava Maravilha do Mundo para quem não quer álcool ou, simplesmente, não gosta. Sim, eles existem. Vamos estimá-los.
Um cocktail foi, durante séculos, um tipo de corte do pelo da cauda do cavalo inglês, que fazia com que se assemelhasse remotamente à cauda de um galo. Usava-se muito nas zonas mais rurais, pelo que o termo definia, em termos gerais, um cavalo sem raça ou nobreza. Mas em 1844, Charles Dickens escreveu, no romance homónimo, que Martin Chuzzlewit conseguia “beber mais rum-toddy, mint-julep, gin-sling e cocktail”. Estas bebidas misturadas eram servidas em copos com a forma de ovo, que em francês são denominados coquetier. É capaz de estar explicada a origem do nome. Há muito que as bebidas misturadas são opção anglo-saxónicas. Mas só no século XX a coisa passa de uma vulgar long-drink, que pressupõe ser bebida com vagar, para uma “arte no copo”, com decorações e “armações”, do cómico chapéu de papel à solitária azeitona, passando por uma rodela de limão ou laranja no bordo do copo. Por vezes, os exageros decorativos são de tal ordem que se assemelham a caudas de galo. A literatura é uma bela forma de darmos conta do consumo generalizado deste tipo de bebidas. Em Boneca de Luxo, Truman Capote descreve uma celebração onde não faltam Manhattans, White Angels e Champagne Cocktails. No incontornável romance À Espera no Centeio J.D. Salinger escreve que Holden Caulfield
pede um scotch and soda no Edmond Hotel. Jack Kerouac imortaliza o Wine-Spodiodi em Pela Estrada Fora e John Steinbeck o Beer Milkshake em Bairro da Lata. Finalmente, Ian Fleming, criador de James Bond, cujas adaptações para cinema elevaram o dry Martini (“shaken, not stirred”) a um estatuto de presença obrigatória em qualquer cocktail bar, descreve a receita do Brandy Alexander em For Your Eyes Only, uma coleção de contos. E por falar em cinema, quem ousa esquecer-se (ou não se lembrar, lendo agora) do White Russian de O Grande Lebowski, do The Red Eye no Cocktail, do French 75 de Casablanca, do Singapore Sling no Delírio em Las Vegas, do Moloko Plus em Laranja Mecânica ou do Cosmopolitan em Sexo e a Cidade? E se pudéssemos transpor todo este mundo mágico de criatividade ao dispor dos convivas em amena cavaqueira pela noite fora, para o planeta dos que se recusam a consumir qualquer coisa que lhes seja prejudicial? Podemos. E cada vez mais.
Omocktail, ou cocktail fingido nasceu oficialmente nos idos 80s, provavelmente ao som de um hit de Madonna ou Michael Jackson (ou The Smiths, para agradarmos também a quem não opta pelo mainstream, que é de facto o caso de quem não bebe álcool). O princípio é o mesmo. Uma mistura inteligente de bebidas que produzem algo agradável, saboroso, refrescante, conforme as ocasiões ou preferências. Cores vibrantes e sabores extravagantes podem exigir alguns corantes, por vezes. Mas na sua generalidade, misturam-se sumos de fruta, naturais ou pré-preparados (o de limão é, geralmente, o mais usado), frutos esmagados (banana ou morango, o mais das vezes), gelado, creme de coco, refrigerantes, leite, café e chocolate. É uma bebida festiva e é uma opção cada vez mais procurada, constando no menu dos mais importantes cocktail bars. Em Portugal, é uma tendência. Na Gin Lovers, e muito embora o nome indique a que tipo de bebida é consagrado (os pairings com a maravilhosa cozinha do chef Miguel Castro e Silva no LESS, restaurante que ocupa o mesmo espaço, são de caráter obrigatório), casa de onde saem alguns dos melhores barmans e barmaids nacionais (exemplo máximo na Ana Morgado, que agora é a Brand Ambassador da Martini na Península Ibérica, mas que foi galardoada com o mais cobiçado prémio do mundo dos bares), existem apenas dois: Schweppes Mule (ginger beer, sumo de lima e pepino, hortelã e xarope de açúcar – € 6) e Castaway By The Beach (sumo de ananás e limão, compota de framboesa, manjericão, xarope de açúcar – € 6). Mas falámos com João Daniel, o bar manager desta Meca lisboeta, para entender melhor o fenómeno do mocktail. Colocado perante uma situação que é comum à maioria dos barmans, um momento em que está no auge da sua inspiração, com mixes perfeitos e, de repente, alguém lhe pede um mocktail. Para o nosso imaginário, isto seria uma afronta. Não para ele: “Tenho ainda mais vontade de aplicar a minha criatividade. É um desafio maior ainda, combinar apenas elementos sem teor alcoólico. Optaria por combinar uns frutos, cordiais (curds) e aromas naturais”, revela, para grande surpresa nossa. Mas rapidamente descobrimos que, afinal, as coisas estão mesmo a mudar: “Nota-se muito o crescimento da procura de mocktails. As pessoas têm mais cuidado com a saúde, fazem detox, preferem os produtos naturais e bio, até o desporto é mais exigente, como o crossfit. Isto e o álcool não combinam.” Ficamos também a saber que os mocktails já são uma tendência: “Há muito que já se ultrapassou o conceito de ‘bebida para crianças’ do mocktail, ou o facto de ser conotado com mulheres. Hoje em dia é para todos e é uma forma de saber quem é que está a cuidar da saúde. Aliás, se eu tivesse um bar só de cocktails sem álcool, chamar-lhe-ia Healthy Bar. E para mim, um mocktail sem fruta fresca, esmagada ou espremida no momento, não dá. É um sintoma, certo?”, sorri. Este Mercado tem crescido de tal forma que, por incrível que pareça, já há marcas de gin sem álcool. E quando esta “moda” passar? João Daniel, muito mais experiente nestas andanças, é perentório: “Todas as modas (ou febres) trazem algo que fica para sempre. Aqui não será diferente. Aliás, imagine-se que as bebidas alcoólicas sofreriam da mesma intolerância que os cigarros sofrem de há uma década para cá. Isso pode não estar longe de acontecer. A sociedade tende a separar as suas diferenças e não respeitar o próximo, infelizmente.” Até que esse dia chegue, ficamos com três receitas originais cedidas pelo próprio. Pedimos que use e abuse. E na próxima edição, revele-nos quanto poupou em táxis e Uber. À nossa, dito com uma dicção correta e sem visão turva. ●
APERITIVO
Sumo de tomate
Tempero (sal e pimenta preta) Espuma de requeijão
Cenoura desidratada estaladiça
DURANTE A REFEIÇÃO
Sumo de maçã-verde Lúcia-lima (fresca) Sumo de meloa Espuma de lima
ACOMPANHAR A SOBREMESA
Puré de abacate Água de coco Gengibre
Leite de soja