Quanto mais exagerado melhor.
Será exagero estarmos sempre a falar do exagero, ou estamos a exagerar?
Por Ana Murcho.
Stefani Germanotta ainda não tinha fraldas e já Cherilyn Sarkisian espalhava o terror com crop tops tão reduzidos que as senhoras mais católicas acendiam velas a favor do decoro e da inocência. Lady Gaga é fixe, mas Cher, ladies and gentlemen, Cher é a original.
Era o verão de 1926 no Folies Bergère, em Paris. Hordas de parisienses caucasianos reuniram-se no famoso teatro para ver o La Revue Nègre, um espetáculo musical que surgiu em França devido ao fascínio do país pela cultura do jazz. E ali, usando pouco mais que um colar de pérolas, pulseiras e uma saia feita de 16 bananas de borracha, Josephine Baker desceu de uma palmeira no palco e começou a dançar.” O relato, assinado pela jornalista Morgan Jerkins e publicado, em 2016, na edição online da Vogue US, celebra os 90 anos da famosa banana skirt. É um elogio ao arrojo e à mudança. “Esta dança, a danse sauvage, foi o que a estabeleceu como a maior estrela feminina do mundo. Ela tornou-se uma sensação da noite para o dia: milhares de bonecas com saias de banana foram vendidas em toda a Europa; editores de Beleza aconselharam as mulheres a esfregar óleo de noz nos seus rostos para escurecer a pele, como a de Baker; postais com Baker com um penteado brilhante e macio e a sua famosa saia de banana, com joias estrategicamente colocadas sobre os seios nus, foram amplamente distribuídos.” Baker, que nasceu Freda Josephine McDonald em St. Louis, no Missouri, irrompeu pelos anos 20 como uma Betty Boop ultra sexy e “redefiniu
radicalmente as noções de raça e género através do [seu] estilo e da performance de uma maneira que ainda continua a ecoar pela Moda e pela música, de Prada a Beyoncé.” Até os mais desatentos conseguem apontar a influência de Miss Baker: a coleção primavera/ verão 2011 de Prada não é só minimal e barroca, como nos fartámos de escrever, é também um poema de amor ao legado de Josephine Baker – e um piscar de olho às suas bananas, que surgem em grande parte dos looks; o outono/inverno 2016 de Marc Jacobs não foi apenas gótico, nele esteve também o cabelo ondulado, com gel, de Josephine Baker; e antes de tudo isto, porque as divas se reconhecem entre si, já Beyoncé tinha realizado a derradeira homenagem, ao usar uma maravilhosa banana skirt na edição de 2006 do Fashion Rocks. Mas não era apenas em palco, onde normalmente ostentava um sutiã bordado com lantejoulas que não deixava nada à imaginação (Britney, who?) e toucados ultrabrilhantes que podiam ou não incluir penas (Rihanna, is that you?) que esta artista maior-que-a-vida se destacava. Os roaring twenties permitiram veleidades outrora impensáveis e Baker soube usufruir da sua imensa celebridade. Vestiu-se nas melhores casas de Paris (Poiret e Vionnet), despiu-se para os fotógrafos mais cobiçados (George Hoyningen-Huene), usou os diamantes mais extravagantes. Foi a maior estrela do seu tempo. E o seu estilo perdura. Um século depois.
O que diferencia as lendas das estrelas? Numa altura em que estamos rodeados de celebridades e de insta-famosos, é interessante pensar que existe uma enorme diferença entre os dois conceitos. “I’m not going to be a star, I’m going to be a legend”, costumava afirmar Freddie Mercury nos primeiros tempos dos Queen. Não se enganou. Mais de 25 anos depois da sua morte, não são só as suas incríveis capacidades vocais que continuam a ser reconhecidas. Também os seus looks de palco são aclamados como verdadeiros momentos de reinvenção e subversão. De catsuits a military jackets, o seu estilo estava em permanente evolução. Sobre a importância da estética do grupo, explicou uma vez: “O que vocês estão a ver não é um concerto, é um desfile de moda.” E, se dúvidas houvesse, o logo do grupo foi elaborado pela designer Zandra Rhodes.
Confirmando o seu estatuto de pioneiro, Mercury vestiu-se de dona de casa desesperada no videoclipe de I Want to Break Free, que ajudou a redefinir as normas de género e sexualidade. A canção tornou-se um hino LGBTQ e o facto de o cantor aparecer várias vezes com elementos alusivos à cultura drag e BDSM (leotards, calças e cintos de couro, maquilhagem) transformou-o num ícone para milhares de jovens em todo o mundo. “Eu visto-me para matar, mas com bom gosto”, gostava de dizer o homem que sempre soube abraçar o ridículo. Um pouco à semelhança de um certo Reginald Kenneth Dwight, mais conhecido por Elton John. À distância confortável dos nosso ecrãs made in 2019, é fácil argumentar que o fato de Rato Mickey que usou num concerto em Los Angeles, em 1974, não é “nada de especial” ou que o vestido de abelha com que apareceu em Watford, Inglaterra, no mesmo ano, é “mais do mesmo”. Mas não é. Também podemos ser arrogantes ao ponto de pensar que a performance no programa The Muppets Show, em 1977, onde surgiu num misto de Carmen Miranda e viajante no espaço é “pouco original”. Pelo contrário. É a definição de murro no estômago. O inglês mais famoso depois da Rainha – que já se vestiu de Pato Donald, de Amadeus Mozart, de Louis XVI, que coleciona óculos de sol ultraextravagantes e que tem os casacos mais cool do showbiz (atenção para os que Alessandro Michele lhe está a fazer para a tournée Farewell Tour) – não precisava de nenhuma destas “ajudas de custo” – o seu sucesso foi de tal forma vertiginoso que em 1975 já tinha uma estrela no Passeio da Fama, em Hollywood. No entanto, Elton John é o verdadeiro entertainer. E, como tal, criou uma personagem que transborda glamour e ilusão.
Glamour e ilusão. É precisamente disso que trata a über concorrida Met Gala, fundada em 1948 por Eleonor Lambert para incentivar a alta sociedade nova-iorquina a fazer doações para o Costume Institute do Metropolitan Museum, em Nova Iorque. A edição deste ano decorreu no passado dia 6 de maio, e juntou o who’s who da indústria numa passadeira cor-de-rosa sob o tema Camp: Notes on Fashion. Na manhã seguinte, os sites especializados apressaram-se a reportar o evento, nomeadamente a atuação de Cher, que teria aparecido para uma performance-surpresa. “A artista não posou na pink carpet”, lia-se um pouco por todo o lado. Ora, isso não é verdade. Cher, a cantora de “Bang Bang (My Baby Shot Me Down)” até pode não ter aparecido in loco na longa carpete millennial pink que Anna Wintour escolheu para receber os convidados, mas isso não significa que Cher, a musa, não tenha por lá passado. Ela estava no vestido prateado de Jennifer Lopez, uma homenagem a um coordenado de Cher dos anos 2000. Ela estava no Peter Dundas verde de Ciara, uma reinterpretação do famoso look dos Óscares de 1986 (mais sobre isto, à frente). Ela estava naquela rede com que Emily Ratajkowski cobriu certas zonas do corpo, tal e qual Cher fez nos anos 70. Ela estava no little blue dress que Kim Kardashian levou à after‑party, alas, ela até estava no postiço liso ultracomprido de Gisele Bündchen! Portanto, sim, Cher estava na pink carpet. Cher é a personificação do camp e estas cinco celebridades, sabendo disso, abriram o livro Cher, o Ícone e tentaram, cada uma à sua maneira, recriar o seu estilo extravagante.
Nem de propósito, foi numa Met Gala, em 1974, que Cher usou um dos seus looks mais memoráveis (não há como explicá-lo; se realmente não sabe do que estamos a falar, o que duvidamos, sugerimos uma busca rápida no Google Images). Tão memorável, que acabou por ser capa da Time com fotografia de Richard Avedon. “Isso criou muito burburinho”, lembrou mais tarde Bob Mackie, autor do vestido. “Naquela época, a Time reservava as capas para líderes mundiais ou alguém que inventasse algo importante, como uma vacina. E de repente lá estava a Cher com aquela inacreditável peça de roupa, e as bancas de jornais esgotaram quase imediatamente. Algumas cidades até proibiram que fosse vendida – é engraçado, considerando como hoje em dia algumas estrelas mal conseguem manter a sua roupa.” Atriz, cantora, apresentadora, ativista, empresária, compositora, Cher construiu uma identidade em que o magnetismo da sua voz nunca
abafou o poder da sua sensualidade. Poucas artistas conseguiram atingir um estatuto de tal forma privilegiado que lhes permitisse experimentar (e ousar) com o vestuário. Cher foi todas as mulheres numa só, e rebentou com todas as best e worst dressed lists, inspirando designers de várias gerações. Revisitar o seu guarda-roupa, desenhado em parte pelo génio de Bob Mackie, é uma lição de Moda. Tão rápido quanto possível, porque o Instagram documenta isto, e muito mais, lembremos porque é que Cher é… Cher. Nos Óscares de 1973, a cantora brilhou (literalmente) num conjunto dourado em que o protagonista principal, um reduzido crop top, contrastava com umas calças de cintura ultradescida. Por outras palavras: pele à vista. Em 1984, altura da sua primeira nomeação, Cher apareceu num naked dress ultracoleante. Como acessório principal, Val Kilmer, o namorado da época. Dois anos depois, quando tinha como função apresentar um dos vencedores, a cantora decidiu romper com (o resto) as convenções, e subiu ao palco com um coordenado de duas peças que lhe destacava os abdominais e um headpiece dramático totalmente feito em penas. O look showgirl era tão arrojado que acabou efetivamente por se tornar um dos mais marcantes de toda a história dos Óscares. Para o bem e para o mal. “I don’t care. I don’t want to look like a housewife in an evening gown” (Não quero saber. Não quero parecer uma dona de casa num vestido de gala) terá dito Cher na época. Foi uma questão de tempo até a mulher-furacão voltar à carga. Quando recebeu o galardão por Moonstruck, em 1988, Cher era uma vez mais uma visão: vestido preto transparente com franjas e sutiã incorporado, xaile de lantejoulas, brincos XXL… está a seguir o nosso raciocínio? Long live Cher.
Chama-se va-va-voom. Não tem propriamente tradução em português, mas é essa qualidade que faz com que qualquer coisa seja excitante ou especial. Como Diana Ross, que rapidamente se destacou das outras Supremes e se tornou um dos maiores símbolos do século XX. O seu guarda-roupa faria inveja a Beyoncé, nomeadamente o jumpsuit cor de laranja com brilhantes que usou num concerto em Central Park, em 1983. Ou como Mick Jagger, vocalista dos Rolling Stones, que nos seus tempos áureos decorava o rosto com uma sombra brilhante nas pálpebras e espalhava lantejoulas nas bochechas. Mais é mais. É o lema que parece empurrar estas almas sem medo, que revolucionaram a forma de vestir e de pensar. Estende-se a praticamente todos os homens que fizeram música nos anos 80, de Robert Smith, dos The Cure, a Prince, um e outro com os rostos carregados de maquilhagem, as mãos cheias de anéis e os olhos cuidadosamente delineados com lápis preto. Va-va-voom. Podia ser o segundo nome de Grace Jones, essa pantera negra que apareceu como um cometa no palco do Studio 54 e que remodelou o conceito de androginia com elevadas doses de látex e cabedal. Ou de Alexis Colby, personagem fictícia interpretada por Joan Collins na série Dinastia (1981-89), uma deusa do gelo que transformou o dramatismo do lamé, dos turbantes, das ombreiras e das plumas numa religião, como se vivesse numa bolha de Alta-Costura em ácidos.
Pausa. “E o vestido-pizza da Rihanna, quase tudo o que a Beyoncé usa em palco, e fora dele, o meat dress da Lady Gaga ou as perucas da Katy Perry, onde estão?”, pergunta a leitora, prestes a rasgar a revista. Resposta: não estão. Porque os estamos a ver constantemente. É preciso olhar para trás e perceber o que foi efetivamente inovador, e em que contexto. As indumentárias de todas estas artistas são fantásticas, mas, enquadradas numa linha temporal própria, pouco têm de revolucionário. Se colocarmos os decotes de Nicki Minaj ao pé da ousadia de Josephine Baker, quem é realmente avant-garde?
David Bowie ainda não tinha trocado a terra por outra galáxia qualquer quando, em 2013, o museu Victoria & Albert, em Londres, lhe dedicou uma exposição. “Era o primeiro nome de uma lista muito pequena, de apenas três artistas, sobre os quais o museu discutia preparar, ou não, uma exposição”, confessava na altura Victoria Broackes, comissária da retrospetiva David Bowie Is, que se revelou um sucesso. Aí, era possível ver uma ínfima parte do guarda-roupa do britânico, cujas influências se estendiam do expressionismo alemão ao surrealismo, da literatura ao cinema, da filosofia ao teatro. No palco, essa miscelânea de intenções ganhava vida através de uma série de personagens que vivem para lá da História da música. Bowie, o camaleão, deixou uma herança inconfundível. A sua identidade criativa permitiu-lhe ser Major Tom (astronauta que protagoniza, entre outras, a canção Space Oddity); Ziggy Stardust (surge com o álbum The Rise And Fall Of Ziggy Stardust And The Spiders From Mars e, como tal, é uma espécie de mensageiro andrógino que faz a ponte entre o planeta azul e os extraterrestres); Aladdin Sane (substituto do anterior alter ego, que ameaçava tornar-se maior que o criador); Halloween Jack (um gato descontraído que vive em Manhattan e aparece em Diamond Dogs); Pierrot (como o nome indica, é o Pierrot da música Ashes to Ashes – a maquilhagem para conseguir o boneco perfeito demorava cerca de hora e meia); The Thin White Duke (associado ao disco Station to Station, de 1976, impecavelmente vestido com camisa branca, calças pretas e colete, o Duke foi a última persona de Bowie, a mais sombria e decadente, que refletia um período em que o cantor vivia “de pimentões vermelhos, cocaína e leite”). Todos David Bowie. Nenhum David Bowie. A eternidade inteira repleta de imagens do homem que vendeu o mundo. E pensar que tudo isto começou com uma simples peça de roupa. ●