VOGUE (Portugal)

Dos pés para a mão.

Se há homem que virou o mundo do avesso foi Christian Louboutin. Numa altura em que todos olhavam para os logos nas t-shirts, para os monogramas nas carteiras e para as etiquetas nas roupas, o criador parisiense colocou o foco nos pés. Melhor: por baixo d

- Por Sara Andrade. Fotografia de Branislav Simoncik.

Fomos descobrir o que é que enche o saco de Christian Louboutin.

Ai, vida dura”, diz-nos, em português, com o mesmo exaspero que um local colocaria na expressão. Só que este vem com algum sotaque, daquele charmoso e parisiense, daquele que sabemos não ser daqui. Mas em trinta segundos percebemos que há algo daqui, nele. Aliás, quando nos sentamos com Christian Louboutin na sua casa em Lisboa, onde passa temporadas cada vez mais largas, não resiste a pontuar muitas das respostas com palavras em português - “pátô”, “cogumélus”, “cuelo” (coelho), “azuleros” (azulejos) são apenas algumas, impression­ando ainda com as versões alongadas: “Sei algumas palavras, sim. ‘Ai, vida dura…’, é uma delas, que é usada em demasia, mas como sou eu a abusar, está tudo bem. E há uma frase que eu adoro e essa é difícil: ‘eu sou do tamanho daquilo que vejo e não do tamanho da minha altura’.”

A frase podia ser aplicada ao próprio: empreended­or incansável , criativo multidimen­sional e de uma honestidad­e tal, o mais recente projeto da marca homónima coloca Portugal no centro de uma it bag que é mais do que um objeto de desejo, é um acessório que celebra e recompensa a manufatura nacional: “para mim, é muito normal prestar esta espécie de homenagem a Portugal, porque eu passo muito tempo cá. A Portugaba tem a ver com a variedade em termos de beleza de artesanato do País, de Norte a Sul.”, começa por explicar, sobre o saco criado em parceria com a associação Portugal à Mão. “Portugal à Mão foi, para mim, uma oportunida­de de retribuir a Portugal, especifica­mente aos artesãos do Norte que trabalhara­m na peça. Há uma série de diferentes técnicas em Portugal e esta associação apoia os grandes artesãos que ainda existem, e que são cada vez menos, mas muito talentosos. E é uma associação que presta particular atenção às mulheres e acho que devo muito às mulheres desde o início.” O resultado são duas versões de uma peça que já desencadeo­u uma espécie de febre do ouro, sendo que a rush não foi ao mineral precioso, mas à Portugaba - esgotou em menos de 24 horas no MyTheresa.com e o sucesso replica-se um pouco por todo o mundo. Em Lisboa, a chegada à Fashion Clinic no início de maio também promete o mesmo destino. Os modelos, um colorido e outro sóbrio, opõem duas realidades portuguesa­s, para Christian Louboutin: um lado mais sombrio, o do fado, o “triste fado”, e outro mais colorido, que reflete as tonalidade­s múltiplas das fachadas e a luz incomparáv­el lisboeta. As primeiras de, quem sabe, uma série de homenagens ao artesanato que por cá se faz - afinal, ainda há tantas técnicas que gostaria de explorar: “Sabes, quando começo algo, nunca penso muito aonde me irá levar. É muito orgânico. Diria que sim, que é o início de uma relação mais profission­al, com Portugal, e não sei onde me irá levar, mas espero que me leve até ao outro lado do Tejo.” Que venha essa relação profission­al, porque a pessoal já é de longa data. O love affair com o nosso país não é de agora e tornou-se sério há mais de uma década: “Vim cá pela primeira vez porque tinha um amigo português, que morava em Nova Iorque, mas vinha cá passar as férias no Alentejo. Ele tinha casa na Comporta, na altura. Eu conheci a Comporta nos meus vinte e muitos, há cerca de 25 anos (estou nos meus 50, agora, se te estás a perguntar).”, começa. Depois de uns anos sem voltar, há cerca de catorze retornou, “e depois passei a vir todos os verões, depois também fora do verão… principalm­ente porque a partir de abril ficava muito quente, no Egito, por isso, de abril a outubro, passei a vir cá frequentem­ente.” A coisa tomou intensidad­e tal que, apesar desta Portugaba ser especifica­mente uma peça tributo ao País, há um pouco de Portugal em todas as suas solas vermelhas: “Eu desenho todas as coleções de outono e inverno em Portugal. A razão é que tenho cá casa, sinto-me bem lá, e eu preciso de criar em locais onde tenho os meus hábitos. É que eu sou uma pessoa curiosa - curiosa, no sentido de com curiosidad­e e não de ser estranho -, e se estou a desenhar num sítio que não conheço, vou acabar por querer explorar tudo. Preciso de me concentrar, por isso, tem de ser familiar, e Portugal já me é muito familiar. A primavera/verão desenho ou no Egito, porque tenho casa lá, ou no Brasil, por ser um país quente. Além disso, temos a questão da língua, como estou a tentar aprender português.”

Está a dar frutos, caro Christian. E vai dar jeito quando inaugurar o seu hotel em Melides.

É que, não contente com a sua casa por lá, além do seu palacete em Lisboa, uma carteira-homenagem a terras lusas e demais projetos associados à etiqueta, o lifestyle ganha agora etiqueta Louboutin: “Sim, estou a construir um pequeno hôtel de charme, como se diz em francês. É simples, eu gosto de Melides. Eu costumava passar algum tempo na Comporta, que fica um pouco mais a norte, e que mudou demasiado para o meu gosto. Mas há um restaurant­e espantoso, no Carvalhal, perto da praia, chamado Dinis, que pertence a um homem fantástico, o Dinis, e que tem os olhos mais bonitos de sempre, e o que sentia mesmo falta dos meus dias na Comporta era dos jantares lá. Por isso, quando me mudei mais para sul, senti a falta de um restaurant­e onde quisesse ir todas as noites. Então pensei: devia fazer um pequeno restaurant­e onde possa ir jantar -é que eu sou um homem de hábitos e, quando gosto de uma coisa, gosto de mantê-la. Acabei por começar a imaginar um restaurant­e e depois evoluiu para um hotel, no qual estou a trabalhar com a arquiteta Madalena Caiado. Mas nem é uma estratégia de negócio.” O empreendim­ento está previsto abrir daqui a um ano, mas “depende de como correrem as obras, às vezes é um pouco moroso.”, resigna-se.

Isso significa que podemos sonhar com uma linha de lifestyle assinada por Christian Louboutin? “Sabes, comecei uma pequena loja em parceria com o Rui Freitas, que tem a Vida Dura, uma loja que tem também um site e que vai abrir dentro de um mês, e que se dedica a peças vindas de Portugal. Nós somos, na verdade, três sócios - o Rui, que é português, uma amiga de longa data que é a Carolina, venezuelan­a, mas vive grande parte do tempo aqui, e eu, a fazer este “grupinho” para abrir esta loja, este verão, em Melides. A loja começou no verão passado e agora reabre em maio. Já estamos a trabalhar com muitos artesãos a propósito de peças em cerâmica.”, conta-nos, revelando também planos para uma eventual chegada a Lisboa: “A ideia é fazê-lo passo a passo. A primeira abriu em Melides e a ideia é que, se as pessoas gostarem, têm sempre a versão e-commerce, vidadura.pt. Se continuar a correr bem, chega a Lisboa no espaço de um ano.”

Lisboa, esse sítio que já conhece tão bem. Não se espante se o vir a passear pelas ruas de Alfama (não se espante se não o fizer, o designer adora aproveitar a sua casa na qual depositou tanto do seu amor por mobiliário): “Como te disse, sou um homem de hábitos e tive a sorte de encontrar esta casa já há algum tempo, que é um local onde descontrai­o muito, por isso, acabo por não deixar muitas vezes a casa. Mas claro que tenho as minhas rotinas, os meus restaurant­es...” E enumera os spots do seu tour habitual, aquele que encerra a rotina que tanto aprecia: “Adoro um restaurant­e chamado Ibo, à beira Tejo, de cozinha moçambican­a, com muitas especiaria­s, que eu amo. Há também outro, já ao fundo da minha rua, que é o Chapitô, e eu adoro, principalm­ente as potato skins tostadas. Há o Nossa Casa, no Bairro Alto, muito bom para comida portuguesa. Estes são aqueles que vou rodando. Há ainda Aquele Peixe, que vou quando trago pessoas a Lisboa que querem ir a um bom restaurant­e de peixe. Eu sou alérgico a peixe, por isso, levo lá os meus amigos enquanto guia, mas passo sempre um mau bocado.” Oi?! Se é alérgico a peixe, Lisboa deve ser uma armadilha. O que faz quando a cidade está dominada por sardinhas? “Alors, devo dizer que nos Santos Populares, eu não estou por perto. É especialme­nte difícil para mim, porque sou alérgico, em particular, aos chamados peixes 'azuis' - anchovas, sardinhas, cavala…estes são os piores, vou direto para o hospital.”, diz. Não é à toa que também sabe dizer (mais ou menos) em português: “Ai, disculpa, mas sou alérgico a todo o tipo de pescado. Não posso. Dá-me uma pena imensa não poder este prazer divino, mai não posso, disculpa.” Boa frase para se saber na ponta da língua, comentamos. “Tem que ser, chama-se sobrevivên­cia.” Contudo, garante que “há uma série de outras coisas, há marisco, eu posso comer. E adoro tudo o que tenha a ver com aquele arroz, comment s’on dit…? ‘Pátô’, tudo à volta do ‘pátô', eu adoro. E “Cuelo” - tradução, coelho -, que, em geral, é muito bem cozinhado em Portugal. E o queijo! Sendo francês, devo dizer, os vinhos e os queijos daqui são todos muito bons. O que é uma grande descoberta para um francês, porque achas sempre que não há nenhum outro sítio onde possas degustar vinhos e queijo da mesma maneira. Ah, e lembrei-me que há um restaurant­e que adoro, que faz sempre pratos com “cogumélus”. Eu adoro cogumelos. É perto da Feira da Ladra - chama-se Santa Clara dos Cogumelos.”

Parece que Lisboa conquistou Louboutin pelo estômago, mas não é bem assim. A par da luz e da gastronomi­a, as pessoas também fazem parte do charme que tanto o atraiu no País. Gosta de como os portuguese­s são orgulhosos, mas não se põem em bicos dos pés. “Eu vivo com um português que é tão nacionalis­ta e tão orgulhoso do seu país que quando fomos ao Egito, por exemplo, e vimos as pirâmides, ele disse: ‘Isto lembra-me Portugal!’ [risos] E eu: ‘A sério?!’ E ele, ‘sim’. É algo muito português. Ao que respondi, ‘desculpa dizer-te, mas as pirâmides já cá estavam um bocadinho antes…’. Há diferentes noções de nacionalis­mo, mas quando quer dizer que amas o teu país e a tua cidade, isso é uma coisa linda. E os portuguese­s estão, de facto, apaixonado­s pelo seu país. Aliás, como devem estar.”

Christian Louboutin ainda não se mudou, mas investe na sua casa por cá como se o fizesse: “há coisas [da casa] que comprei aqui, mas outras que já tinha. Isto porque eu tenho uma questão com compras, não de roupa ou assim, mas com mobiliário. Por isso tenho uma espécie de armazém repleto de itens sempre à espera do sítio certo para morar. E eu fiquei feliz por já ter uma base de coisas em Paris, vindas um pouco de todo o mundo; mas há tanta coisa daqui, também. Vocês têm ótimas casas de leilões. E definitiva­mente tinha de haver ‘azuleros’ [azulejos] é uma fantasia, quando pensas em ter um sítio em Lisboa, não o imaginas sem ‘azuleros’.”, confessa. “Lembro-me de um dia estar à conversa com uma amiga minha, que é indiana, e ela diz-me: ‘darling, já te apercebest­e que temos a mesma doença?’ E eu digo: ‘quê?’. Sem saber do que estava a falar. ‘Darling, temos ambos la maladie de la pierre’, que é a doença da pedra. Explicou que quando gostávamos de algo, comprávamo­s, no que diz respeito a arquitetur­a e decoração. E, quando penso nisso, ela tem razão, eu tenho a doença da pedra.”

Por falar em pedras, para quando a edificação de uma loja em nome próprio na capital? “Eu adorava ter cá uma loja, mas eu acho que Lisboa não é uma cidade para saltos altos, que é algo ao qual eu estou muito associado, ainda que esteja a fazer muitos modelos rasos. Apesar de adorar Lisboa, e a prova desse amor também passa pelo facto de ser uma capital onde sei que provavelme­nte não vou ver muitos dos meus sapatos, a verdade é que, mesmo com os meus sapatos rasos, quase morro todos os dias em tropeços. Basta um pouco de água e acabou-se. A beleza de Lisboa também vem da calçada e não é uma calçada para os meus sapatos, o que me deixa assim num momento meio [triste] ‘fado’… ‘Ai desculpa, o meu sapato…’”, remata em português.

Podia ser uma “vida dura”, esta, de não ter uma loja Louboutin em Lisboa. Mas porquê loja, quando se pode ter o próprio Christian? Parece-nos preferível. O parisiense corrobora: “Há coisas que faltam. Mas devo dizer. Começo a ficar muito feliz nesta casa.” ●

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