Levantados do chão.
A vida no trapézio, sem rede, é a vida de quem escolhe ter o corpo suspenso, mas a alma em solo firme.
Ver a vida de cabeça para baixo é ser livre de tudo. Por Joana Moreira.
Ocirco tradicional está a morrer”. A manchete de um artigo publicado no jornal Público, em janeiro, espelha o estado atual do universo das artes circenses. As palavras duras são de Dirce Noronha
Roque, porta-voz do grupo de uma dezena de artistas e exartistas que lançava então uma petição para salvar o circo. O documento, endereçado ao Governo, pedia “maior regulação e fiscalização da atividade do artista de circo e promoção de políticas públicas culturais que promovam o circo tradicional”. A petição foi, até à data, assinada por 162 pessoas — seriam precisas mil para ser considerada em comissão parlamentar.
A precariedade da profissão não impede que os jovens continuem a lutar pelos sonhos de voar. Até porque os laços que se estabelecem do circo são quase todos de sangue, atravessam gerações. Falar de circo continua a ser falar de família.
Cíntia Modesto tinha 12 anos quando fez o seu primeiro número de trapézio. Hoje, com 21, tem recordações de ver a mãe, também ela trapezista, lá no alto do objeto mágico que tanto a apaixona. “Sempre foi uma coisa que me fascinou”, conta à Vogue, sem saber apontar efetivamente o motivo que torna o trapézio tão especial. A adrenalina de estar vários metros acima do chão parece ser um potenciador claro do entusiasmo. “Já ensaiei números que não
envolvem alturas e não é a mesma coisa, não me puxa. Eu gosto mesmo das alturas. Porquê não sei. Acho que já nasceu comigo”.
A jovem do Porto tem a história clássica (mas nem por isso menos especial) de quem vive neste mundo. O pai é o diretor do circo onde trabalha, o Super Circo Modesto, a mãe, outrora trapezista, executa hoje os truques de magia no espetáculo, a irmã mais velha faz malabarismo e a irmã mais nova é responsável pelos truques com arcos. Toda a família pertence ao circo, ficando-se com aquela sensação de que existe um universo fechado no qual as fronteiras com o exterior nem sempre são permeáveis. “É difícil sair do circo”, assume Cíntia. “A empresa é dos meus pais, o que me empurra ainda mais para o circo. Mas vai muito da vontade da pessoa, e do gosto. É preciso gostar muito, porque há tempos muito difíceis. É preciso lutar muito”.
A luta, as frustrações, os medos: nada disso faz parte do número do espetáculo. Os momentos mais difíceis da vida pessoal ficam fora da porta – neste caso, da tenda. “Temos de respeitar quem nos paga para ver. Isto é uma profissão em que as pessoas pagam para ver o melhor de nós. Não é o estabelecimento de uma loja, em que se vai pelos produtos. É um espetáculo ao vivo em que não pode haver falhas, e se houver têm de ser corrigidas logo a seguir”, diz a ginasta com pragmatismo.
A consciencialização da gravidade, a noção da distância dos pés ao centro da Terra, torna este um número impróprio para quem sofra de vertigens. No entanto, o medo de cair do trapézio é aterrador até para o mais comum dos mortais. Perguntamos-lhe se quando está “lá em cima” isso nunca lhe passa pela cabeça. “Já passou, quando era mais nova. Não é que eu não pense. Não tenho medo, mas tenho respeito. Estou concentrada e sei o que estou a fazer e sei, se faço mal, as consequências”, diz, com a mesma segurança com que fala de qualquer detalhe que implica lançar-se a um trapézio. Mas a queda é uma possibilidade, por mais ínfima que seja. Em muitos casos, pode ser fatal. Cíntia, tal como muitos trapezistas que executam números a solo, não usa qualquer rede de segurança. Entre ela, no trapézio, e o chão está o ar. Apenas isso.
“Nunca tive uma queda, mas já tive um susto uma vez”, confessa. “Doíam-me um bocado os músculos, então não agarrei bem o trapézio. Não ia cair, mas senti uma fraqueza, então voltei para cima desse truque e desisti logo de o fazer na altura. Mas depois voltei logo a ensaiar, e pensei ‘não, eu vou conseguir, não vou desistir’. Voltei a ensaiar e coloquei-o no espetáculo.”
A resiliência é um requisito básico da vida de um trapezista. O esforço físico, as lesões, o cansaço, são cobertos pelo manto da invisibilidade: “Quando temos vários espetáculos ao dia, chega às vezes ao último ou ao penúltimo e estamos já ali nas últimas, mas temos de fazer. Essa é a parte mais difícil [de trabalhar como trapezista]. Se estamos menos bem, ou doentes, temos de fazer tudo igual, como se não se estivesse a passar nada”.
Os protagonistas da arte circense, em 2019, mantêm o empenho e dedicação dos seus antepassados, mas tiram partido das ferramentas que o mundo contemporâneo lhes concede. Sim, os novos rostos do circo pertencem à geração millennial. Têm Instagram. Estão no Facebook. Aprendem no Youtube. “Há muitas coisas que aprendi sozinha, a ver vídeos, a ver Youtube(...), a ver também os nossos próprios vídeos, a ouvir a opinião de quem sabe, e ir melhorando. Costumo dizer que, mesmo na hora do espetáculo, vamos sempre melhorando, porque vamos sempre pondo um truque ou outro novo. E devagarinho vamos melhorando”, resume.
Melhorando, refazendo, experimentando, aperfeiçoando. Tudo é pensado, porque “o público repara em tudo”, garante Cíntia Modesto. “Temos de fazer tudo o mais perfeito possível”. Até o guarda-roupa é feito ali, no circo, reforçando a noção de uma comunidade que trabalha para si mesma. “Tenho uns 10 fatos diferentes para cada número. Queremos sempre mais. Acaba por ser um vício. Vemos na Internet, queremos logo tirar ideias e fazer. Estamos sempre à procura de um melhor”, diz a jovem, explicando que a mãe e a sogra são as responsáveis pelo que veste nas suas atuações. “Elas sabem costurar e já o fazem há muitos anos. Nós no circo temos de saber um bocadinho de tudo. Temos de fazer o vestuário, de aprender a maquilhar...”
A beleza do espetáculo é mais um departamento que ganha com as plataformas digitais. “Sou eu que faço tudo”, garante. “Vejo tutoriais de maquilhagem no Youtube e vamos aprendendo. Com o cabelo, igual; agora, também temos o Instagram (risos), por isso é muito mais fácil. A minha irmã mais nova é fascinada por pinturas, e ela faz mesmo coisas muito loucas e profissionais. Os vídeos ensinam-nos muita coisa”.
Pela estrada fora
Fora do trapézio, há estrada, viagens intermináveis e milhas que, trocadas, certamente dariam para uma volta ao mundo. Além de todo o esforço investido nos treinos, do sacrifício associado ao culto do corpo - que tem de estar sempre na forma mais atlética possível há outro ponto indiscutível no ritmo circense: a vida permanentemente em viagem pela estrada fora.
“São dias muito cansativos. Todos nós conduzimos, e temos de viajar 100, 200 quilómetros... depende. Hoje tanto podem ser 20 como amanhã 100. Se está a chover muito, é muita hora a conduzir... E depois também não vamos à velocidade que as pessoas vão normalmente, porque temos material do circo, etc. É muito cansativo, mas tem de ser”, diz Cíntia. A sazonalidade da profissão obriga a que estes profissionais sejam completamente nómadas. A época das festas populares que se avizinha é rainha, com espetáculos de Norte a Sul. Mas “a melhor altura do circo é mesmo
o Natal”, solta a jovem ginasta. “Por causa das empresas, temos quatro a cinco espetáculos no mesmo dia.
E estamos o mês todo no mesmo sítio”. A casa ambulante para e, durante um mês, é apenas isso: uma casa. ●