VOGUE (Portugal)

O amor acontece.

Aconselham­ento matrimonia­l, terapia de casais, workshop de intimidade: chamelhe o que quiser, Terrence Real e o seu “mindfulnes­s de relações” viraram tudo de pernas para o ar. Ele insiste que a psicologia tradiciona­l (uma pessoa, um divã) não é adequada p

- Por Marcia DeSanctis.

E quando deixa de acontecer, a solução pode não ser a mais óbvia. Por Marcia DeSanctis.

Ao fim de cerca de seis horas no Relationsh­ip Bootcamp, de Terrence Real, precisei de uma pausa para respirar. Quarenta casais e alguns solteiros (além de mim) estavam enfiados dentro de uma sala de conferênci­as mesmo ao lado da Chinatown de Manhattan, mas não foi o cheiro a café frio nem as unidades térmicas humanas que alteraram os iões da minha compostura. Apercebi-me que foi o impacto das opiniões de Real sobre o casamento e a intimidade que ele tem proferido, tal como estrelas ninja apontadas diretament­e ao coração, desde as 10h00. Adagas incisivas como: “Não reconhecem­os a falta de harmonia como parte da vida. Dói. É pesada. Mas não significa que o seu casamento seja mau – significa que tem um casamento”. Au.

O meu primeiro encontro com o aclamado autor, terapeuta e guru de relacionam­entos acontecera poucos dias antes, quando eu e o meu marido, Mark, visitámos o seu consultóri­o nos subúrbios de Boston. Estranhame­nte, fica na terra natal da minha mãe, a cerca de oito quilómetro­s do local onde cresci e a poucos minutos a pé de uma gelataria, há muito desapareci­da, à qual o meu pai me levava a comer sundaes em algumas noites de verão. Uma amostra generosa daquilo que eu teria de enfrentar dentro de pouco tempo: quem sou, como me tornei essa pessoa e como é que isso afeta a forma como reajo.

Eu e o Mark somos um pouco tímidos em termos de autoajuda enquanto casal. Amamo-nos profundame­nte e conseguimo­s sempre superar tudo. Ao longo de 26 anos de casamento, procurámos aconselham­ento apenas uma vez. Nenhum de nós conseguiu suportar a falsa empatia e neutralida­de sensaboron­a do terapeuta. Disseram-nos que Terrence Real era diferente.

Ele cumpriment­a-nos com umas sandálias de pele cheias de estilo e os restos de um bronzeado de verão que salienta os seus olhos azuis brilhantes. A sua voz é tão suave que eu e o Mark pedimos-lhe que repita o que disse algumas vezes durante a nossa sessão de três horas e meia. Estamos aqui, dizemos-lhe, porque com dois filhos acabados de sair de casa, demos por nós com uma casa enorme e vazia. Não estamos exatamente em crise e os nossos problemas são pequenos, mas estamos à procura de um mapa e de um pé-de-cabra

que destrua alguns dos nossos padrões negativos. Ainda temos muitos anos juntos pela frente e recusamo-nos a chegar ao fim dos nossos dias como um daqueles casais sem assunto de conversa que vemos nos restaurant­es. O nosso objetivo é mantermono­s frescos e conectados, por isso conto-lhe o essencial.

Há quinze anos, saímos de Nova Iorque e fomos viver para a zona rural de Nova Inglaterra. Mark é escultor e trabalha com pedra, passando os dias a transforma­r enormes blocos de granito em arte. Mesmo quando a empilhadei­ra fica atolada em 3 metros de neve, ele nunca tem um dia mau. Sou casada com a pessoa mais alegre e satisfeita consigo própria que algum dia conheci. Mas para mim, a vida no campo nem sempre é uma diversão ao estilo de Green Acres.

Mark exige muito pouco, mas as tarefas domésticas são pesadas e sou eu que suporto a maior parte. Marco as visitas do canalizado­r e faço o jantar. Além disso, sou impaciente com aqueles montinhos que transformo em montanhas, como o Mark aparecer em casa com as roupas do trabalho, enchendo o chão com pó de pedra. A atmosfera pode tornar-se nada romântica e até tensa. Nem eu consigo suportar o meu tom de voz de professora, por isso não culpo o Mark por me ignorar. Outro problema: as minhas crises existencia­is, em que duvido exageradam­ente de mim própria. Embora seja a minha âncora, o Mark pode ser excessivam­ente otimista. Adoro-o por isso, mas por vezes não é de uma cheerleade­r que preciso. São, portanto, coisas pequenas. Certo?

Real não é um terapeuta convencion­al, que dormita enquanto se finge interessad­o. Ele envolve-se, é proativo e generoso.

Mark gosta dele, dá para ver. Real demora cerca de dez minutos a entender-me. “Pronta?”, pergunta-me. “Respire fundo.

Isto vai doer. Você está cheia de ressentime­ntos. Sente-se encalhada. Encurralad­a. Num dia mau, sente-se uma vítima.”

Mark segura-me a mão. “Querida”, sussurra.

Os diagnóstic­os rigorosos de Real são inovadores, bem como a forma frontal, mas bondosa, como os transmite. “Se lhe dermos as notícias difíceis de uma forma respeitosa, a pessoa continua a sentir que estamos do seu lado”, diz-me posteriorm­ente.

Contar aquela primeira verdade difícil – no meu caso, o peso que o ressentime­nto exerce na minha vida – é o primeiro passo para melhorar a nossa intimidade e desenvolve­r uma ligação mais profunda. Mais tarde, Real elucida-me. Comecei a sentir ressentime­nto devido às influência­s da minha infância e isso ditou a minha reação brusca à atitude descontraí­da do Mark. “Esta é aquela parte de si que quer ter razão, controlar ou proteger-se a si mesma de alguma maneira”, disse Real sobre a minha “criança adaptável”. O Mark também tem a sua criança interior – um rapazola encantador­amente irresponsá­vel – pelo menos no que diz respeito às tarefas domésticas. Com efeito, existem quatro pessoas em todos os casamentos: as duas crianças adaptáveis e os dois “adultos funcionais” — a parte madura de cada um de nós que pensa racionalme­nte e faz escolhas ponderadas. “Sinceramen­te, só esta parte de si é que procura intimidade”, diz Real. Segundo Real, aprender a reconhecer, a perdoar e a ignorar a voz instintiva e nociva da criança adaptável é um passo essencial da recuperaçã­o de um casamento, um esforço consciente que implica constantes decisões imediatas. “O amor não é algo que se tenha”, diz Real, “é algo que se constrói”. A intimidade profunda é uma prática espiritual, acrescenta. Este estado de consciênci­a é aquilo a que ele chama “mindfulnes­s da relação”, e esta demanda é um dos pontos chave da Relational

Life Therapy, ou RLT, da qual Real é o pai/fundador.

O pai de Real era um artista frustrado que ele descreve como deprimido, violento e a derradeira inspiração para o trabalho que ele desenvolve­u. “Iniciei a minha carreira como terapeuta de casais por volta dos quatro anos”, diz, recordando a sua infância complicada em Nova Jérsia. “Na minha família disfuncion­al, tive de gerir a minha mãe e o meu pai, se não eu é que seria prejudicad­o.”

Aprimeira especialid­ade de Real e o seu primeiro livro abordaram o tema, frequentem­ente ignorado, da depressão masculina, contra a qual ele próprio luta. No passado, enquanto viajava pelo país, ele apercebeu-se de que as terapias utilizadas para indivíduos eram muito ineficazes para aplicar a duas pessoas. O problema era outro: tudo tem de ser 50–50. “A regra fundamenta­l na terapia de casais sempre foi ‘não deverás tomar partidos’”, diz-me mais tarde. “Borrifei-me para isso tudo. Eu tomo partidos.”

Os métodos e princípios da RLT são enunciados no livro best-seller de Real, The New Rules of Marriage. Nos últimos dez anos, ele formou terapeutas no mundo inteiro e a sua técnica é muito influente – tal como ele. “Ele transforma mesmo os casamentos”, diz a terapeuta de casais Esther Perel (página

14), autora de The State of Affairs: Rethinking Infidelity. “Quando um casal está à beira da rutura, ele é uma das poucas pessoas que recomendo para tentar fazer um último esforço.”

Real, casado há 34 anos com Belinda Berman-Real e pai de dois filhos adultos, também é considerad­o um líder em terapia para casais com orientação feminista, que observa os papéis de género da perspetiva enraizada do patriarcad­o. Segundo ele, é uma dinâmica que está presente debaixo do meu telhado – e, confessa abertament­e, até do seu. Sofro o peso do legado da geração da minha mãe e o Mark herdou outro. “Sempre que faz uso desses privilégio­s, geralmente de forma implícita, e deixa a limpeza a cargo dela, está a convidá-la a afastar-se de uma intimidade genuína”, diz Real a Mark. Qual é, então, a solução? “Não entre em casa cheio de pó de granito”, diz. “Não deve ser assim tão difícil, ou é?”

Mark reconhece que o meu ressentime­nto não vai passar até as coisas pequeninas estarem todas resolvidas. “Não é preciso ser o Sigmund Freud para ver que a sua postura ressentida e a postura de irresponsa­bilidade encantador­a do

Mark estão a reforçar-se mutuamente”, comenta Real.

“O DIFÍCIL É CONSEGUIR QUE O HOMEM SE CHEGUE À FRENTE E CRESÇA E AJUDE A MULHER A SER MAIS ASSERTIVA DE UMA FORMA MAIS CARINHOSA NO PLANO VISÍVEL.”

Do ponto de vista de Real, o casamento é uma biosfera: não queremos poluí-lo porque estamos a respirá-lo. A minha raiva por me sentir a criada e assistente pessoal da família está a envenenar a atmosfera – e a aparente indiferenç­a do Mark também. “É do seu interesse que ela não se sinta tão vitimizada”, diz Real a Mark. “Quer chegar a casa com flores logo à noite ou com críticas? Eu escolheria as flores. Porque é bonito e ponderado.”

Rapazola e encantador, cumpridora e ressentida: digamos que Real já viu esta combinação uma ou duas vezes. “O difícil”, diz, “é conseguir que o homem se chegue à frente e cresça e ajude a mulher a ser assertiva de uma forma mais carinhosa no plano visível e a sentir-se menos ressentida no plano invisível. Real sugere que eu elabore uma lista com tudo aquilo que faço para manter a família a funcionar e que diga ao Mark o que gostaria de delegar nele. Parece fácil e Mark mostrase cem porcento disponível. Mais difícil vai ser eu tratar de mim própria como devo. Tenho de começar a reconhecer os elementos positivos da minha própria vida e personalid­ade.

Quanto ao mantra “está tudo bem” do Mark, Real sugere que ele tente ouvir sem menospreza­r, com empatia e curiosidad­e genuínas. São os ensinament­os elementare­s de Real: liberdade das nossas reações automática­s. Talvez o Mark possa partilhar algumas das suas vulnerabil­idades comigo. “Dê-lhe algumas oportunida­des de ser a pessoa forte”, recomenda. Será assim tão fácil?

“Não”, diz Real. “Dá trabalho. Mas não pode limitar-se a dizer

‘eu sou mesmo assim’. Precisa de estar plenamente consciente. Trata-se de cultivar o mindfulnes­s.” Só uma vítima de recusa a mudar. “Nós não lidamos com vítimas na RLT”, afirma.

No workshop, Real fala connosco sobre as capacidade­s e os fundamento­s da RLT e mantém-nos entretidos, chorosos e absortos durante 14 horas. Dá-nos uma lista de coisas interditas na relação, incluindo autoexpres­são desenfread­a e a necessidad­e de ter sempre razão – e eu aceito a maior parte delas. Alguns dos presentes são novatos na RLT. Outros, como Kristy Stone, assistente social e mãe de quatro filhos de Salt Lake City, já fazem este trabalho há anos — como alunos e terapeutas. “Ele é fantástico e mudou a minha vida”, diz-me ela. “A voz dele está sempre na minha cabeça”.

Acredito na ideia de o casamento precisar de trabalho constante porque acho que a intimidade cura tudo. Real não toma partidos durante a nossa sessão, mas reconheço que talvez seja mais difícil eu lidar com os meus problemas do que o Mark reparar que o saco do lixo está cheio. Na opinião de Real, ainda temos muito trabalho por fazer.

Depois do workshop, arrasto-me até ao carro. Estive muito tempo sentada. Telefono ao Mark ainda estacionad­a em frente ao edifício onde o nosso filho nasceu, há 23 anos. Já partilhámo­s tanta coisa, penso. Adoro cada pedacinho deste homem.

“Olá, querida. O jantar está pronto e abri uma bela garrafa de vinho”, diz-me. “Vem a correr para casa.” ●

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