Somos todos bipolares?
Estima-se que em Portugal existam cerca de 200 mil casos de bipolaridade. Mais do que simples mudanças de humor, trata-se de uma doença psiquiátrica nem sempre fácil de diagnosticar. O conhecimento facilita o reconhecimento – aos próprios e aos outros.
Odiamos este texto que adoramos. Por Joana Moreira.
Não olha a género. Há tantos homens quantas mulheres. A bipolaridade é absolutamente democrática e estima-se que cerca de 1% da população sofra com ela. Hoje, o conhecimento das causas da perturbação (ou transtorno) bipolar continua a ser incompleto. Estamos em 2019 e ainda não conseguimos perceber quais os mecanismos cerebrais que determinam estas variações acentuadas de humor, que rapidamente alternam entre mania e depressão.
Sabemos, porém, que há uma série de fatores internos, isto é, do foro biológico e químico, e externos, como situações da vida, que predispõem a perturbação. Mas continuamos sem poder dizer com certeza: é isto. “Eu costumo dizer que as perturbações mentais resultam de uma dança contínua entre a nossa biologia e o ambiente”, conta, à Vogue, Diogo Telles Correia, médico psiquiatra, psicoterapeuta e professor na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.
“O surgimento de crises depressivas ou maníacas pode surgir espontaneamente ou desencadeada por eventos de vida indutores de stress. Lembro-me de uma paciente que tenho cujas crises maníacas e depressivas são fundamentalmente precipitadas por conflitos familiares. Mas obviamente para padecer de uma perturbação bipolar tem de haver um terreno de base fértil, genético, por exemplo. É por isso frequente haver familiares que já padeciam deste tipo de perturbação. Há uma certa hereditariedade”, explica.
A perturbação bipolar
Perguntamos-lhe o que significa sofrer de doença bipolar, mas o psiquiatra corrige-nos na terminologia. “Em psiquiatria evitamos o termo doença. Porque existem especificidades das perturbações psiquiátricas, em relação às doenças médicas”, justifica. “Nomeadamente não se podem diagnosticar na maioria dos casos por análises ou exames de imagem, e dependem muito de fatores psicológicos, como reações psicológicas a situações de vida, por exemplo, além de dependerem da Biologia e da genética”, acrescenta. Assim, opta-se pelo termo “disorder”, do inglês, que, por cá, é traduzido de duas formas: perturbação ou transtorno.
Com o léxico atualizado, resgatamos a questão. “A perturbação bipolar é uma doença psiquiátrica caracterizada por duas fases que ocorrem em dois polos distintos (daí o nome bipolar). Por um lado, ocorrem fases depressivas, com tristeza anormal e desproporcional em intensidade e duração em relação às situações que a provocam, falta de prazer pelas coisas que antes davam
prazer, falta de apetite, etc. Noutras alturas da vida surgem fases de euforia, as chamadas fases maníacas, com uma alegria exagerada, desinibição, compras exageradas e desnecessárias. Há pacientes que compram 20 vassouras, 50 relógios… [têm] uma energia desmesurada... Estas pessoas podem ficar muito agitadas e mesmo agressivas”, descreve o psiquiatra.
Um paciente com perturbação bipolar experimenta ao longo da vida várias fases depressivas e várias fases de euforia graves. Este cenário é, para o médico, uma clássica perturbação bipolar, a chamada perturbação bipolar tipo I. Há ainda um outro tipo de perturbação bipolar, “mais ligeira”, garante, cujas fases não são “tão exuberantes”.
Mas, se todos temos oscilações de humor, podemos todos considerar-nos um bocadinho bipolares? “Existe de facto uma certa banalização da perturbação bipolar”, confirma. Mas o que vemos como situações pontuais não podem ser interpretadas como regra. “A oscilação de humor é perfeitamente normal, todos temos dias em que estamos mais animados e outros em que estamos mais tristes, mesmo sem estímulos que o provoquem. Isto nada tem a ver com os extremos patológicos presentes na perturbação bipolar”, esclarece. “Para se ser bipolar não basta ter fases depressivas. Além destas é essencial haver fases do polo oposto, as fases de euforia ou maníacas”, menciona.
Fica esclarecido: não somos todos bipolares. Contudo, a utilização do termo no dicionário rotineiro pode ser vista sob outra perspetiva. “Acho que as pessoas usarem estes termos sugere que estão mais familiarizadas com a terminologia psiquiátrica”, sugere Patrícia Pinheiro, psicóloga clínica, não sem ressalvar a importância da educação e consciencialização quanto a estas temáticas. “Ainda temos de tornar as pessoas mais conscientes do que são as perturbações mentais e do tipo de tratamento mais adequado”.
Além da banalização da perturbação, existe outro fenómeno recorrente: a confusão com outros tipo de diagnósticos. “O que distingue a perturbação bipolar da depressão é a presença dos episódios de euforia que na depressão unipolar, isto é, na depressão pura, sem os polos de euforia, não existem. Em alguns casos, sobretudo nas fases de euforia, os pacientes podem ter pensamentos que descarrilam da realidade, como que têm poderes especiais (...) e aqui pode confundir-se esta perturbação com outra mais grave, a esquizofrenia, caracterizada exatamente por estes pensamentos irreais e também pelas alucinações, como ouvir ou ver coisas que não existem”, afirma o psiquiatra.
Estes episódios, no entanto, devem ser controlados. “As pessoas diagnosticadas com perturbação bipolar não estão constantemente em episódios maníacos ou hipomaníacos. Para o diagnóstico ė necessário que apresentem estes sintomas por alguns dias, uma semana. Esses sintomas são claramente uma alteração no humor e no comportamento habitual da pessoa”, elucida a psicóloga, lembrando que autoestima elevada, diminuição da necessidade de dormir, fala e pensamento acelerado, envolvimento excessivo em atividades que podem representar perigo para a pessoa ou para os outros (como conduzir a alta velocidade, ter um comportamento sexual desprotegido ou fazer compras excessivas), são alguns exemplos de sintomas maníacos.
“O delírio é sofrimento infinito”
É difícil imaginar como se sente alguém com esta perturbação, mas há um consenso no sentimento que as crises depressivas comportam. “As fases depressivas provocam muito sofrimento no momento em que surgem”, aponta o médico de psiquiatria. “É uma tristeza desesperante, a pessoa deixa de ter prazer por nada, tem vontade de ficar no quarto, às escuras... pode mesmo pensar que a vida não tem mais sentido...”.
Esta ideia é descrita também por António Portela, no livro Eu Sou Bipolar, ao relatar o seu primeiro delírio: “...olhava para a família e para os amigos e estava perfeitamente convencido de que eles me queriam matar”. “Sentia-me enclausurado num universo paralelo de dor e sofrimento onde, a cada minuto, julgava que ia morrer (...). Honestamente, o delírio, a mania, a
depressão são indescritíveis. Haverá sempre algo que ficará de fora de qualquer explicação que se tente dar”, escreve o autor. “Durante esses dias, a sensação era sempre a mesma: sofrimento. Conhecem o conceito de infinito? O delírio é sofrimento infinito”, sumariza.
No outro polo, no extremo oposto, está a fase de euforia. E se por um lado, como refere o psiquiatra Diogo Telles Correia, o doente “se sente muito bem”, com “uma felicidade imensa”, a verdade é que nem tudo é benéfico. “A euforia e desinibição exagerada, e mesmo a irritabilidade, que por vezes surge, levam a pessoa a ter atitudes de que se vem a arrepender depois”, explica. Compras exageradas, envolvimento sexual com desconhecidos, consumo de drogas, agressão ou mesmo o crime são apenas alguns exemplos apontados pelo profissional de saúde como frequentes.
Medicamentos controlam, mas não curam
Atualmente, não há um tratamento que cure a bipolaridade. No entanto, é possível controlar a perturbação: encurtando a duração das crises, prevenindo-as, com recurso a medicamentos - os chamados estabilizadores do humor. O lítio e o valproato são os mais utilizados. A estes ainda se podem juntar antidepressivos ou antipsicóticos, caso o médico ache adequado.
Mas além da medicação farmacológica, há outro pequeno (grande) detalhe que pode fazer toda a diferença. Patrícia Pinheiro, psicóloga clínica, não tem dúvidas: “a eficácia do tratamento, ou seja, a redução dos sintomas, melhoria da qualidade de vida e funcionamento, e redução de recaídas, é maior quando, para além de medicação, as pessoas fazem psicoterapia. A psicoterapia, isto é, a intervenção terapêutica realizada por psicólogos, pode ajudar no tratamento da perturbação bipolar, principalmente quando conjugada com medicação psiquiátrica. A combinação destes dois tipos de intervenção é essencial no tratamento das pessoas diagnosticadas com esta perturbação.”
O psiquiatra Telles Correia partilha a mesma filosofia: “o tratamento requer intervenção a nível dos fatores biológicos, através de fármacos, e também psicológicos, com psicoterapia”. Casos mais extremos podem, todavia, exigir mais. “A sensação de grandiosidade [nas fases de euforia/maníacas] pode elevar-se tanto que elas [pessoas bipolares] têm pensamentos que escapam à realidade, como por exemplo que têm poderes especiais... Estas fases são tão graves que pode ser necessário o internamento”, alerta o médico.
O conhecimento profundo da perturbação e de todas as suas especificidades facilita não só o reconhecimento da mesma como o seu controlo. “Entre outros objetivos, a intervenção psicoterapêutica envolve também ajudar o paciente a desenvolver estratégias para monitorizar a ocorrência, gravidade e curso dos sintomas, bem como estratégias para lidar com esses sintomas”, diz Patrícia Pinheiro. A psicóloga reforça que a consciência da perturbação é particularmente necessária, uma vez que “frequentemente as pessoas tendem a deixar a medicação nestes períodos em que se sentem com um humor acima do normal”.
Com um diagnóstico nem sempre facilitado, há que ter algumas precauções. “Em alguns casos as pessoas que sofrem desta perturbação estão mais focadas nos sintomas depressivos do que propriamente nos sintomas maníacos ou hipomaníacos, o que pode tornar mais difícil fazer o diagnóstico diferencial com perturbação depressiva”, explica Patrícia. Daí que possa fazer sentido recorrer a familiares e fontes que estejam próximas do paciente, que “possam identificar a existência de alterações significativas no humor e comportamento da pessoa”.
Além disso, este envolvimento da estrutura social circundante pode ser benéfico a outros níveis. “Todos os familiares e amigos de pessoas diagnosticadas com perturbações bipolares devem estar informados sobre o caráter cíclico da perturbação, bem como sobre as dificuldades no tratamento, como o abandono da medicação. Devem estar atentos a alterações no humor e comportamento para que se adapte o tratamento de forma a prevenir o agravamento do quadro clínico”, diz, lembrando que “tal como noutras perturbações mentais, importa salientar que os familiares também precisam de apoio, já que lhes é exigido muito e são frequentemente esquecidos”. ●