Inverter o Manicómio: amor com amor se paga
Ninguém nos diz, mas a loucura é uma forma de amor. Essa “alienação mental” que muitos ainda consideram perigosa, grotesca, contém uma candura que se assemelha ao estado de enamoramento. Perdem-se as fronteiras entre o bem e o mal. O mundo assume, subitamente, todas as cores - e nenhuma cor. Há um desvario que nos comanda a alma. Deixamo-nos ir. Ninguém nos diz, mas a loucura é uma forma de amor, e é essa loucura, e esse amor, que se celebra no Manicómio, um lugar de criação e “hub social” para pessoas com experiência mental que inaugurou no passado mês de março no Beato, em Lisboa. Para que não haja dúvidas sobre as pretensões deste projeto, o espaço, integrado no coworking Now, está sinalizado com um néon azul onde se lê “Manicómio, based on a true story” (baseado numa história real, em português). O seu interior é habitado pelas obras dos artistas que ali trabalham, independentemente do seu historial clínico. Aqui, a cabeça não manda nada. Quisesse ela, e não podia: a arte faz-se do coração. Os mentores desta ideia são Sandro Resende e José Azevedo, fundadores da Associação de Desenvolvimento Criativo e Artístico P28, que dá aulas de artes plásticas a doentes do Hospital Júlio de Matos há cerca de 20 anos. Neste Manicómio longe do manicómio, pretende criar-se um ambiente novo, saudável, que rompa com o preconceito associado às perturbações mentais. Todos, público e criadores, podem entrar e sair livremente. “Aqui não estamos à parte, estamos ao lado”, confessou uma das artistas à agência Lusa, aquando da inauguração. É esse o sentimento que se procura: inclusão. Sem que isso pareça uma fachada ou uma manobra de diversão. “Se queremos mudar o estigma temos de usar a palavra com alguma normalidade. Se todos os dias dissermos que vamos para o manicómio trabalhar, torna-se efetivamente um local de trabalho” afirmou Bárbara Noronha, responsável de comunicação do projeto, em conversa com a Vogue. “O ponto do Manicómio é pegar em pessoas com um quadro clínico, umas mais grave outras menos grave, e reconhecer-lhes um talento inato que permita posicioná-los a nível de artistas consagrados. Temos uma Anabela que já expôs ao lado de Emir Kusturica. Nós já estamos neste ponto. Não queremos que o enfoque seja ‘Coitadinhos dos doentes.’”, reforça. Nesta primeira fase, o Manicómio arranca com dez artistas a quem foram atribuídas bolsas de estudo com a duração de um ano. Podem criar, podem ensinar - há workshops de pintura, de escultura, de desenho… Para o futuro, garante Bárbara, já se pensa em colaborações em áreas tão distintas como a edição de livros de autor, a tecnologia ou a restauração. Uma das estrelas do Manicómio, Pedro Ventura, fotografa e escreve. Há tempos publicou um microconto, O amor dos vivos, que começa assim: “No princípio, apenas existia a luz. Depois as pedras. Os vulcões surgiram mais tarde; os gases tóxicos que estes expeliam formaram a primeira atmosfera — o que tornou o céu avermelhado. No interior do vulcão nasceu o primeiro casal.” Perante isto, porque nos haveria de interessar a sua condição mental?
Manicómio, Rua do Grilo, 135, Lisboa. Seg-Sex, 09.00-19.00. Entrada livre. Informações: estudiomanicomio@gmail.com.