VOGUE (Portugal)

Corta, cose, like.

- Por Joana Moreira.

Cirurgia estética na adolescênc­ia: quando é preciso dar tempo ao corpo, os jovens não têm tempo a perder?

Quando a aceitação corporal e o amor-próprio parecem finalmente ganhar espaço no universo da Beleza, paralelame­nte, há cada vez mais jovens a recorrerem a cirurgias estéticas. Mas quando se trata de influencia­dores, com milhares de seguidores, qual é o impacto da partilha dos procedimen­tos? As opiniões dividem-se.

Quantas pessoas conhece que tenham feito uma cirurgia estética? Numa questão de anos, o número poderá ser diferente (spoiler alert: será superior). Os números da Sociedade Internacio­nal de Cirurgia Plástica e Estética relativos aos procedimen­tos realizados em 2017 mostram – surpresa, surpresa – que são as mulheres que continuam a impulsiona­r a indústria. São responsáve­is por 86,4% dos procedimen­tos estéticos em todo o mundo. Mas é o aumento das cirurgias na juventude que está a levantar alguma inquietaçã­o. De acordo com a Academia Americana de Cirurgia Plástica e Reconstrut­iva Facial (AAFPRS), com dados sobre o último ano, 72% dos cirurgiões plásticos norte-americanos viram um aumento no número de cirurgias estéticas ou procedimen­tos injetáveis (como os populares fillers) em pacientes abaixo dos 30 anos. Num documento sobre as tendências para 2019, a AAFPRS vai mais longe: “ao contrário das gerações anteriores, que normalment­e tinham discrição nos seus procedimen­tos, os millennial­s estão a deparar-se com um tempo em que a cirurgia plástica é normalizad­a – até vista como mainstream por alguns, numa era da “resting rich face”, selfies e Snapchat.

Sem dúvida que as novas gerações estão mais expostas. Além do Snapchat, há o Instagram, o Facebook e, claro, o Youtube. Neste último, não faltam testemunho­s de pessoas sobre a sua cirurgia, muitas com cativantes fotografia­s de “antes” e “depois”. O assunto ganhou novo destaque nos últimos meses, graças a uma sequência de influencia­doras digitais portuguesa­s que decidiram realizar cirurgias plásticas e partilhá-las online com os seus seguidores, obrigando-nos a questionar o impacto dessas partilhas. Pode um vídeo no Youtube incitar ao desejo de uma parte do corpo “melhorada”? “Não cria o desejo, o desejo é algo interno, não é o vídeo que vai criar o desejo em si”, explica Eva Francisco Pinheiro, psicóloga. “Mas é o vídeo que vai incentivar e vai criar força nesse desejo. As redes sociais são isso, a vida desejada, a vida imaginada, são a projeção dos desejos que nós temos da nossa própria vida, ao contrário da vida real”. A psicóloga assegura que as populações mais jovens (adolescent­es e jovens adultos) são os que podem estar mais vulnerávei­s à influência destes vídeos de testemunho­s de operações plásticas. Porque “estão em fase de construção de identidade e construção de imagem corporal”, garante. Numa altura em que a insatisfaç­ão é propícia, “porque é habitual, está relacionad­a com as mudanças que o corpo vai passando nessa faixa etária”, justifica, cria-se “a ideia de que podemos construir a nossa identidade com base no culto da aparência e de um padrão cultural de beleza e que podem existir defeitos que até então não estavam aí”. Segundo a psicóloga, “há uma busca acentuada de defeitos corporais que a pessoa pode não possuir, mas que começa a acreditar por estar constantem­ente exposta a este tipo de situações”. Um dos alertas dado por Eva é a falta de acompanham­ento psicológic­o em

muitos casos. “Temos de comparar aquilo que é a cirurgia estética no Serviço Nacional de Saúde e no privado”, diz. “Enquanto no SNS há uma obrigatori­edade de fazer um despiste, uma espécie de triagem, para perceber se não existe uma perturbaçã­o mental associada (...) aquilo a que me tenho vindo a aperceber na cirurgia estética privada é que esse despiste não é feito”, aponta.

“Num mundo ideal, seria ótimo se todas as pessoas pudessem ter um acompanham­ento psicológic­o”, admite a cirurgiã Luísa Magalhães Ramos. No trabalho que executa na sua clínica, recorre à ajuda de psicólogos quando acha que “as motivações pelas quais as pessoas se querem submeter às cirurgias não vão ao encontro da realidade”, quando “há uma perceção errada do próprio corpo” ou quando sente que “há um mal-estar mental geral que pode interferir com o processo de recuperaçã­o”. Já o presidente da Sociedade Portuguesa de Cirurgia Plástica, Reconstrut­iva e Estética (SPCPRE) desvaloriz­a a necessidad­e de um psicólogo em todos os casos. “Acho que é algo que deve ser avaliado caso a caso. Não me parece de todo necessário que uma senhora que tenha uma hipertrofi­a mamária, ou mesmo que queira um aumento mamário, tenha de passar por um psicólogo ou por um psiquiatra para lhe dizer que o pode fazer ou que o deve fazer”. Manuel Caneira diz que está na sensibilid­ade de cada profission­al detetar os comportame­ntos “desviantes”, algo que garante que “faz parte da competênci­a global da formação médica.”

O perigo da réplica

Querer aquele vestido, querer aquele batom, querer... ser igual a alguém? “Essa tendência é um bocadinho natural e impõe-se por várias razões, às quais não será alheia a questão da divulgação na Internet por pessoas que podem ter mais ou menos influência junto das classes mais jovens”. O presidente da SPCPRE diz que o perigo da réplica “existe sempre, obviamente, mas na verdade cabe aos profission­ais a que as pessoas depois vão recorrer que lhes expliquem as coisas como elas devem ser”. No entanto, para o cirurgião plástico, desde que as pessoas recorram a profission­ais apropriado­s, esta não é uma questão que o “preocupe particular­mente”. “Pelo menos no estado atual, não sei o que é que vai acontecer no futuro”, acrescenta.

Na verdade, o desejo pela replicação de um look – regra geral perfeitame­nte enquadrado no estereotip­ado padrão de Beleza da época – é, pelo menos, tão antigo como a própria cirurgia plástica. Se nos anos 90 e início dos anos 2000 os cabeleirei­ros já conheciam de trás para a frente o bob de Rachel, de Friends, os cirurgiões plásticos também já estavam perfeitame­nte familiariz­ados com as fotografia­s

de celebridad­es que eram tidas como inspiração para conseguir os lábios perfeitos, o nariz ideal, a cintura sonhada. Hoje, esse lugar parece estar ocupado por outros ideais de Beleza, criados a partir do pequeno objeto que temos sempre na mão. “Eu costumava dizer que isso [de levar fotografia­s de celebridad­es para as consultas] não era tão frequente como se gostava de dizer, mas na semana passada tive duas consultas diferentes em que aconteceu algo que me preocupou muito. Duas jovens pediram para ficar com um nariz igual ao dos filtros do Snapchat”, conta, à Vogue, Luísa Magalhães Ramos.

Mãe de duas raparigas, a cirurgiã ficou incomodada com a situação. “A ideia de, um dia, uma delas me dizer que quer ser igual a um filtro do Instagram parte-me o coração (…). Nestas situações tento explicar que é impossível ficar assim. Se houver indicação para fazer algo que possa ajudar a melhorar a aparência, avalio e explico, mas nestes casos precisam de ajuda de um psicólogo e, pelo menos no imediato, não serão candidatas a cirurgias plásticas devido a expectativ­as irreais.”

Promover ou desmistifi­car?

Luísa é a responsáve­l pelas cirurgias de muitas influencia­doras digitais portuguesa­s. “Há umas que optam por desmistifi­car o problema que tinham, e abordá-lo sem tabus, e acabam por assumir, falar e discutir o tema; outras preferem reservar a sua privacidad­e. É curioso ver que, sempre que uma influencer assume que fez um tratamento ou uma cirurgia plástica e cria conteúdos sobre o tema, esses conteúdos rapidament­e se tornam nos que têm mais visualizaç­ões. Ou seja, há alguma avidez de informação das pessoas sobre este tema”, refere. A diferença, acredita a cirurgiã, está na particular­idade da informação partilhada. Nos sites dos médicos e das clínicas estão informaçõe­s técnicas. Nos relatos das influencia­doras digitais está uma versão mais humanizada e digerível. “Se doeu ou não, se ficou muito inchada, se ficou com hematomas, quanto tempo demorou a ver-se o resultado, como se sentem com a nova aparência, etc. Muitas pessoas têm essas mesmas dúvidas, ou seja, como é que eu me vou sentir e vou ficar depois da cirurgia?”, diz. Entre a promoção e a desmistifi­cação, a cirurgiã plástica não toma partidos. Acredita que ambos acabam por acontecer. “Ao abordarem os temas, inspiram mulheres com problemas semelhante­s”.

The new normal

A youtuber espanhola de Beleza Ratolina é acompanhad­a por um milhão de subscritor­es. “Creio que 99% das youtubers americanas têm a mesma cara”, disse num vídeo recente, em resposta à pergunta “tens alguma opinião impopular?”. “Sinto muito, mas dá-me a sensação de que temos 150 Huda Beauty’s no Instagram. Sou a favor das operações estéticas, mas, (...) mais no Instagram do que no Youtube, tenho a sensação que muitas raparigas têm a mesma cara, têm umas as caras das outras”, desabafou.

A sensação de estar a ver sempre as mesmas feições em qualquer feed das principais redes sociais não é fruto da imaginação. “O problema das redes sociais é precisamen­te a normalizaç­ão”, explica, à Vogue, Nuno Augusto, sociólogo e professor na Universida­de da Beira Interior. “As redes sociais constroem um padrão normalizad­o. Temos de perceber que a jovem que vê aquele nariz vai partilhar com outros e dizer ‘eu quero ter um nariz assim’. E isso pode multiplica­r-se de uma forma assustador­a. As pessoas até podem ter um nariz muito bonito, mas querem ter aquele, porque viram aquele. E isto é uma bola de neve. A rapariga tem mil amigos e partilha com estes amigos. E vai ter um efeito multiplica­dor dentro das próprias redes sociais.” E se for uma influencia­dora com 100 mil “amigos”? “É pior”, avisa o sociólogo. “Sobretudo na adolescênc­ia em que há uma grande influência de indivíduos padrão, têm os seus ídolos padrão, os seus ídolos musicais, e também têm os seus ídolos corporais, os seus ídolos. Nos anos 90, as pessoas vestiam-se como os músicos, penteavam-se como os músicos, ouviam aquela música, e acontece o mesmo com as influencer­s. As pessoas reproduzem um perfil, procuram reproduzir por vezes até comportame­ntos – e aqui falamos de todo o tipo de comportame­ntos, desde familiares a sexuais – dessas mesmas influencer­s”.

O controlo parental é, para Nuno Augusto, uma das formas de evitar algumas situações indesejada­s. “Quando falamos de adolescênc­ia, que é quando há mais processos de imitação e de reprodução de perfis de comportame­ntos, aí tem de haver, e isto está farto de ser discutido, uma regulação dos pais sobre o acesso que os jovens têm às redes sociais. Aqui é indiscutív­el”, diz. “Numa fase mais adiantada de idade tem de haver um autocontro­lo, isto é: as pessoas têm de perceber que a situação que ali está não é necessaria­mente a delas. Que aquilo é um perfil psicossoci­al que é criado também, e que tem interesses também no processo. Porque uma influencer quer ter o maior número de seguidores possível. De algum modo vive disto. E, portanto, tem esse intuito também”. O sociólogo acredita que este é um problema sério dos dias de hoje: a forma como se gerem as redes sociais.

“HÁ UMA BUSCA ACENTUADA DE DEFEITOS CORPORAIS QUE A PESSOA PODE NÃO POSSUIR, MAS QUE COMEÇA A ACREDITAR POR ESTAR CONSTANTEM­ENTE EXPOSTA A ESTE TIPO DE SITUAÇÕES.”

EVA FRANCISCO PINHEIRO, PSICÓLOGA

Share it, like it, do it (?)

“Estes vídeos, que contam as experiênci­as reais, fazem com que nos estejamos a rever naquelas pessoas… quase como se de uma conversa de amigas se tratasse”. Adriana da Silva, influencia­dora digital, com quase 150 mil subscritor­es no Youtube, responde à Vogue, por e-mail, depois de ter publicado um vídeo sobre a sua cirurgia, um aumento mamário.

“Não quis, nem quero, influencia­r ninguém a fazer qualquer tipo de procedimen­tos estéticos porque acho que é uma coisa muito pessoal”, diz, acrescenta­ndo que, apesar de tudo, depois de ter publicado o vídeo, recebeu dezenas de mensagens de pessoas que iam fazer a cirurgia. “Ficaram mais descansada­s depois de terem visto o meu testemunho. Também recebi mensagens de outras, que já tinham a vontade de fazer a cirurgia e, depois do meu vídeo, tiveram a motivação que faltava e que foram marcar as primeiras consultas. Portanto, sem querer, acabei por motivar muitas pessoas que o queriam fazer”, conclui. “Tenho raparigas muito novas a seguirem-me e que facilmente podem ficar frustradas por não conseguire­m ter o mesmo tipo de corpo que eu ou porque veem uma foto de uma revista e acham que nunca vão conseguir atingir aquilo que, na verdade, são corpos que já sofreram vários procedimen­tos”. Ainda assim, Adriana considera que continua a valer a pena partilhar este tipo de informação. “Consegui chegar a imensas pessoas novas, que não me conheciam e que me descobrira­m por causa deste mesmo vídeo”.

Para Sofia Pires, blogger, o que a incomodava eram os papos e as olheiras. Vivia na busca incessante pelo corretor de olheiras perfeito, do creme de olhos perfeito, e de todo e qualquer produto que ajudasse a melhorar, aos seus olhos, a aparência da zona em causa. “Consegues esconder uma olheira, mas o papo não. É um excesso de gordura nesta zona, não dá mesmo para esconder”, conta por telefone. Quando decidiu largar os produtos de maquilhage­m e optar por uma solução mais definitiva, nem pensou duas vezes em partilhar com quem a segue. “Acho que não tinha pensado que ia incentivar pessoas a fazer a cirurgia, mas se calhar está um bocadinho interligad­o, porque, ao esclarecer certos medos, de facto a pessoa sente-se mais confortáve­l para avançar”. Sofia revela que “mais do que duas, cinco pessoas talvez” lhe pediram detalhes e chegaram mesmo a fazer o procedimen­to. “E ficaram superconte­ntes”, garante. “Olá, o meu nome é Yolanda Tati e estes são os vídeos para os #humanlover­s”. Há três anos, Yolanda Tati estreava-se no Youtube com esta calorosa saudação e uma série de vídeos sobre temáticas como igualdade de género, racismo, feminismo ou representa­tividade. Em linha com o que se fazia já lá fora, mas a anos-luz do que se fazia em Portugal, a youtuber passava uma mensagem de aceitação e amor-próprio num formato divertido e educativo. Tour pelo meu rosto continua a ser um dos vídeos mais vistos do canal da agora influencia­dora e locutora de rádio. Publicado no final de 2017, o vídeo consiste numa verdadeira tour pelo rosto da jovem. Quando chega a hora do nariz, a jovem diz o seguinte: “Já lhe chamaram de tudo, de betoneira, de batata doce, mesmo aqui em comentário­s do Youtube já apareceu quem comentasse o meu nariz (...) eu sei que o meu nariz é marcante, e claro que eu o amo hoje em dia, não imagino a minha cara com outro nariz, mas cola bem na minha cara, não?”.

Foi esta autoconfia­nça e discurso de aceitação que muitos fãs reclamaram quando, há uns meses, Yolanda se submeteu a uma rinoplasti­a. “Contraditó­rio! Te sigo há muito tempo e parece que vai contra tudo aquilo que você acredita e defende.”; “O que percebi nesse vídeo é que sempre procuraste pela aceitação das pessoas quando na verdade nunca te aceitaste”; “Porque um nariz como o teu é grosseiro e um nariz ‘fino’ é harmonioso? Isso só serve para reforçar o padrão de estética que, como sempre, desvaloriz­a os traços negróides” são apenas alguns dos comentário­s nos vídeos da influencia­dora focados na partilha da intervençã­o estética. À Vogue, Yolanda explica como a cirurgia foi ponderada durante “um ano, um ano e meio” e como lidou com essas acusações. “Foi terrível para mim, porque afetou-me imenso, antes de fazer a rino. Quando eu decidi fazer a rino, foi quando me libertei de todas essas amarras”, diz, garantindo que nunca renegou as suas origens. “Pergunto se cada pessoa branca ou caucasiana que faz uma operação ao nariz pretende renegar a sua origem, os seus traços, a sua genética. Eu acho que não. (...). Um negro não se define pelo nariz que tem, até porque não existe um tipo de nariz negróide. O C4 Pedro tem um nariz, o Anselmo Ralph tem outro nariz, a Mariama Barbosa tem outro nariz (...) um nariz negróide pode passar de um nariz negróide para outro nariz negróide”, afirma. A influencia­dora defende-se ainda dizendo que o tipo de procedimen­to que fez garantiu que os traços habitualme­nte africanos permaneces­sem. “Na minha cara, não fazia sentido um nariz caucasiano”, frisa.

Sobre a relação entre cirurgia estética e aceitação corporal, para muitos dois conceitos incompatív­eis, Yolanda partilha a sua perspetiva: “Para mim, a auto-aceitação e o amor-próprio podem existir no meu corpo, atualmente operado, e podiam existir antes (...) É um direito meu querer estar melhor e acho que não há vergonha nenhuma nisso, nem nenhum paradoxo nisso.” ●

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