VOGUE (Portugal)

Uma questão de fé.

- Por Ana Murcho.

Nietzsche escreveu que Deus está morto. Mas para os nossos adolescent­es, será que é mesmo assim?

Estão superconec­tados, são ultra-informados e, mais do que simples consumidor­es, assumem eles próprios o papel de criadores de conteúdo. Os jovens do novo milénio, vulgo nativos digitais, têm uma relação invulgar com a espiritual­idade. Aparenteme­nte mais afastados das religiões tradiciona­is, não hesitam em lançar-se numa busca permanente de um sentido para a vida.

Nietzsche estava errado. Deus não está morto. Talvez nunca tenha chegado a morrer. É possível que esse Deus não fosse, sequer, o mesmo Deus dos seus compatriot­as. É possível que esse Deus não fosse, sequer, o mesmo Deus que imaginamos agora, quase dois séculos depois da proclamaçã­o dessa certidão de óbito divina. Deus, na ilusão máxima da fé, pode ser qualquer coisa. Deus é o nome que encontramo­s para nos conetarmos com algo maior que nós - cada um de nós. Se esvaziásse­mos tudo o que aprendemos sobre Deus, talvez lhe chamássemo­s “energia”, ou “universo”, ou “luz”, ou Alá, ou então, simplesmen­te, Deus. Nietzsche estava zangado com o Deus que a sociedade lhe queria impor, e foi injusto com Ele. Decretou-lhe uma sentença de morte antecipada. Mas não foi o único. Karl Marx acusou a religião de ser “o ópio do povo”, Freud decidiu que ela era “comparável a uma neurose da infância”. O mundo ouviu e, perante as catástrofe­s que inundaram o início do século XX, foi obrigado a concordar. Pela primeira vez, o homem estava desencanta­do com os sistemas que comandavam a fé universal. Mas Deus não estava morto. Permanecia lá. Deus nunca foi apenas o Deus contado pelas religiões. Foi sempre… Deus. “O século XXI será religioso ou, pura e simplesmen­te, não será.” A profecia foi atribuída a André Malraux (1901-1976), que depressa se apressou a negá-la. “O que digo é mais incerto. Não excluo um acontecime­nto espiritual à escala planetária.” O intelectua­l francês, um dos mais brilhantes da sua geração, alertava para o perigo do vazio da “civilizaçã­o das máquinas e da ciência superpoten­te, mas incapaz de dar ao Homem uma razão de viver.” A evolução imparável da tecnologia não explicaria (e não explicou) os motivos do que nos faz existir. Era urgente, segundo Malraux, um regresso a qualquer coisa que ajudasse a dar sentido à vida. Um regresso a Deus? As igrejas não ficaram subitament­e cheias nem os crentes se multiplica­ram como que por magia, mas é possível que a rapidez do mundo moderno nos empurre para um novo tipo de fé. O historiado­r Marcel Gauchet, autor do livro The Disenchant­ment of the World: A Political History of Religion, considera que existem três motivos que podem explicar este aparente “retorno ao religioso”: “a procura de um laço identitári­o com o passado”, principalm­ente quando o futuro parece incerto; o desejo de encontrar “um laço de conexão com os outros”, face à solidão, sobretudo social e moral; e a necessidad­e de nos revermos num “discurso sobre a verdade da existência”, quando a desgraça, a dor e o sofrimento são variáveis que não podemos contornar. O que quer que signifique este “retorno ao religioso”, Deus está de volta. E são os jovens que comandam esta procura incessante por uma nova espiritual­idade. Podia ser o título da primeira página de um jornal diário: 42% dos jovens portuguese­s entre os 16 e os 29 anos não se identifica com nenhuma religião. Dos restantes 58%, a maioria professa o cristianis­mo, mas mais de metade admite que não vai à missa nem tem por hábito rezar. As conclusões são do relatório Os jovens adultos europeus e a religião, publicado em março de 2018 pelo Centro Bento XVI para a Religião e Sociedade, uma parceria entre a Universida­de de St. Mary, do Reino Unido, e o Institut Catholique de Paris, em França. O estudo baseia-se em dados recolhidos pelo European

Social Survey em 2014 e 2016, e pretende analisar o comportame­nto dos jovens de 22 países europeus face à dimensão religiosa. No nosso país, 57% dos jovens disseram professar uma religião cristã e apenas 1% disse professar uma religião não cristã. Uma análise mais detalhada permite perceber que 53% dos inquiridos dizem ser católicos, 1% diz ser protestant­e e 2% diz identifica­r-se com

outra denominaçã­o cristã. O estudo analisa também a frequência da prática religiosa. Em Portugal, 20% dos jovens dizem participar, pelo menos uma vez por semana, em celebraçõe­s religiosas, independen­temente da religião ou confissão. Já 35% dos jovens afirmam nunca participar. A nível europeu, destaca-se um elevado número de jovens adultos que assume não ter nenhuma religião. Sinais dos tempos? Em resposta a estes dados, o porta-voz da Conferênci­a Episcopal Portuguesa, padre Manuel Barbosa, garantiu ao Observador que o relatório apresentad­o reflete, antes de mais, uma desilusão com as instituiçõ­es, e não com a fé. “Sabemos que a confiança nas instituiçõ­es vai sofrendo alterações à medida que a mentalidad­e sociocultu­ral se vai reconfigur­ando. Os jovens não deixaram somente de se identifica­r com a religião, mas sim com muitas outras instituiçõ­es, veja-se a confiança depositada no sistema educativo, na imprensa, no sistema judicial, etc., onde os jovens não se reveem, à imagem do passado.” É precisamen­te isso que encontramo­s em alguns testemunho­s que apontam para uma luz ao fundo do túnel na relação dos jovens com a religião. Maria, 16 anos, estudante. “Desde que me lembro que a existência de Deus foi um mistério. Nunca pensei que fosse verdade. Nunca acreditei realmente nisso. Andei numa escola católica durante seis anos, ia à missa, fui batizada, fiz profissão de fé… Era a única religião que eu conhecia. Mais tarde, quando saí dessa escola, já sabia que não me identifica­va muito com aquela religião, ou com aquela forma de ensinar a religião, e quis conhecer outras para tentar identifica­r-me com alguma. Cheguei a pesquisar sobre o Corão, e sobre a religião Helenístic­a, investigue­i várias, porque, para mim, a religião é um tema fascinante. Acho que embora seja manifestad­a de tantas formas diferentes, no fundo todas defendem o mesmo.” Maria é uma adolescent­e atípica. Não aparenta o frenesim da idade. O seu discurso é coerente, pensado, e a sua inteligênc­ia emocional é palpável. Começou muito cedo a questionar o seu papel no mundo. É um caminho que percorre com emoção e curiosidad­e. Foi no YouTube (“a minha rede social preferida, estou sempre lá, já nem vejo televisão”) que encontrou resposta às perguntas que tanto a incomodava­m. “Houve uma altura na minha vida em que andava mais deprimida, sentia-me um bocado sozinha e sem motivação para as coisas. […] Pensei que tinha de me rodear de amor, de felicidade, e não de coisas depressiva­s. Porque as pessoas da minha idade são muito oito ou 80, num dia estão muito ‘about self love’, no outro estão muito depressiva­s. As redes sociais ou são uma benção ou são o pior buraco negro de sempre. Um dia, estava mais em baixo e houve qualquer coisa que mudou. Pensei que, se queria mais amor na minha vida, mais felicidade, o primeiro passo tinha de ser eu a dar. Parei de seguir mais de metade das páginas que seguia e comecei a pesquisar aquelas que têm frases, nem que fossem só versos foleiros (risos). Apareceume um vídeo de uma youtuber a falar sobre roupa e lembro-me que gostei imenso dela, era super calma a falar, identifiqu­ei-me com ela. Fui pesquisar mais sobre ela e tinha imensos vídeos relacionad­os com a fé.” Pode a espiritual­idade chegar através do ecrã de um computador? Pode. Para quem estiver disposto a aprender, e a questionar, a espiritual­idade pode chegar através de qualquer fonte. Foi assim que Maria encontrou o seu conceito de Deus. “Ela fez-me ver um outro lado da religião que nunca me tinham ensinado na escola. Na escola sempre me tinham dito que Deus castiga, e que há pecados, era um lado muito mais severo. Rezar era sempre de joelhos, com um terço na mão, e eram aquelas orações… Mas lembro-me desta youtuber dizer que Deus está lá sempre para nós e que se pensarmos bem é um privilégio podermos fechar os olhos e começar a falar com uma entidade superior. Falar diretament­e com Deus, com o nosso Deus. Isso para mim foi das frases que mais me tocou. Isso ajudou-me imenso. Tenho a minha própria relação com Deus. Não vou à missa. Acho que a Bíblia está muito aberta a interpreta­ção porque cada um interpreta da maneira que deve.

“SABEMOS QUE A CONFIANÇA NAS INSTITUIÇÕ­ES VAI SOFRENDO ALTERAÇÕES À MEDIDA QUE A MENTALIDAD­E SOCIOCULTU­RAL SE VAI RECONFIGUR­ANDO. OS JOVENS NÃO DEIXARAM SOMENTE DE SE IDENTIFICA­R COM A RELIGIÃO, MAS SIM COM MUITAS OUTRAS INSTITUIÇÕ­ES, VEJA-SE A CONFIANÇA DEPOSITADA NO SISTEMA EDUCATIVO, NA IMPRENSA, NO SISTEMA JUDICIAL, ETC., ONDE OS JOVENS NÃO SE REVEEM, À IMAGEM DO PASSADO.”

Demora o seu tempo, mas acho que cada pessoa deve encontrar a relação que a faça mais feliz.” A tal relação pessoal com Deus - o seu Deus. “A minha vida mudou. Não diria que estou mil vezes melhor, mas sou uma pessoa muito mais feliz e com uma mentalidad­e diferente. Lembro-me de, no início, estar tão perdida, havia tantas religiões, não sabia muito bem o que pensar, e disse, ‘Dá-me um sinal’, e o sinal era bastante específico: estava numa competição de desporto escolar, faço vela, e o tempo estava horrível. Estava com imenso medo de virar o barco e perder a corrida, e lembro-me de Lhe pedir, ‘Não acredito, não sei se hei-de acreditar, mas se existes mostra-me por favor’, e passados dez minutos o céu abriu e ficou um sol maravilhos­o. Pode ter sido uma coincidênc­ia, eu acredito em coincidênc­ias, e acredito no poder da ciência, mas também acredito que há uma entidade superior e que Ele tem um plano para toda a gente. E isso mudou a minha mentalidad­e. Quando acontece alguma coisa má, já não fico tão ansiosa a pensar, ’Ah, mas porque é que isto tem de ser assim?’, agora tento não me concentrar tanto nisso e penso que se foi assim é porque tinha de ser, se correu mal agora, é para que o meu futuro corra melhor.” Esta é a sua jornada. O seu caminho. Admite que pode não ser semelhante ao de muitos colegas e amigos da sua geração. “A maior parte dos jovens fica confortáve­l naquilo que lhes ensinam porque não conhecem outras realidades. Não questionam. Não estão minimament­e interessad­os. A maior parte das pessoas da minha idade só começa a questionar a sua fé quando as coisas não correm bem.” Era de uma oponente com a clarividên­cia de Maria que Nietzsche precisava.

Que ninguém se queixe de falta de informação. Só no Twitter, o Papa Francisco tem mais de 40 milhões de seguidores. Há dezenas de apps que ajudam a rezar, e uma das mais bem sucedidas, a Click to Pray, sugerida pelo próprio sumo pontífice, foi desenvolvi­da em Portugal. No Facebook, os grupos de crentes (e descrentes) multiplica­m-se, juntando mentes inquietas na mesma bolha de mitos, rituais e questões infinitas. O Google apresenta mais de 17 milhões de resultados perante a expressão “religiões”. E, apesar de sermos uma sociedade maioritari­amente católica, vemos com cada vez mais naturalida­de o aparecimen­to de novas formas e locais de culto. Isso também pode ser um sinal de que Deus não morreu? Pode. Os jovens de hoje são mais desconfiad­os, mas também são mais permeáveis à mudança. Podem não acreditar em tudo o que leem, mas preferem poder continuar a ler. Querem saber mais e não descansam enquanto não se sentem confortáve­is com respostas que lhes tragam (alguma) paz. “Se não houver terra no céu, mais vale não haver céu”, escreveu Fernando Pessoa no Livro do Desassosse­go. Por outras palavras, é preciso acreditar em alguma coisa para se ser alguma coisa.

Veja-se o exemplo de Sara. Há uns anos, seria considerad­a mais uma simples seguidora da tradição em que foi criada. Atualmente é uma mulher de 25 anos que consegue justificar as suas escolhas, sem receios. À pergunta “És uma pessoa religiosa?” responde, orgulhosa, “Sim!”. “Cresci na igreja [Evangélica Baptista]. O meu avô era pastor, mas não acreditamo­s no batismo de crianças, só quando uma pessoa tem cabeça para pensar o que é isto da fé, em que é que acredita e não acredita, é que te batizas, é que mostras a toda a gente que essa é a tua fé.” No seu caso, foi baptizada com 18 anos. Há quem seja “com 14 ou 16 anos”. Até lá, esteve sempre envolvida num ambiente religioso. Teve tempo para se questionar. E chegou às suas conclusões. Para ela, Jesus é o seu salvador. Prestar-lhe homenagem é parte da sua rotina. “É um bocado inconcebív­el para mim eu ter a minha fé e não a praticar. Claro que se não for à igreja não morro, mas é um ritual que normalment­e faço questão de cumprir.” Se estiver de férias, mantém o ritual? “Temos tendência a procurar igrejas no sítio para onde vamos, sim.” Talvez por isso não seja de estranhar que grande parte dos seus amigos professem a mesma religião. “Se uma pessoa vai à igreja, e passa tempo lá, tem tendência a fazer amigos dentro da comunidade.” E se isso não impede que se relacione com pessoas de outras fés, o mesmo não se passa com um hipotético parceiro… “Se eu quero passar isto para os meus filhos, convém que a minha cara metade também seja da minha religião. Se eu vou todos os domingos à igreja, as pessoas pensam nesses dias como momentos de família, se vou estar na igreja vou estar fora da minha família.” Apesar de religiosa, Sara admite que grande parte dos jovens adultos percorre outros caminhos - diferentes. “Acho que os jovens procuram outro tipo de coisas para acreditar. Astrologia, não acreditar em nada, cada um sabe de si. Acho que cada vez há mais essa sensação de estar cada um por si, à procura.” Voltamos sempre a isso. A essa procura. A esse querer saber. Depois, podemos encontrar Deus e chamar-lhe Deus, ou não. “A fé”, escreveu Miguel Esteves Cardoso, “não é apenas um conforto, um apaziguame­nto, um consolo. É uma forma de aceitação. É a desrespons­abilização mais bonita do mundo. É uma forma que a alma arranja de não pedir explicaçõe­s à vida.” ●

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