VOGUE (Portugal)

Desapareci­dos sem combate

- Por Ana Murcho.

O nome oficial é ghosting, mas achamos mais bonito síndrome do abandono inesperado. É a tendência dos últimos anos nas não-relações, nas quase-relações, e nas ralações — em suma, nas aproximaçõ­es muito subtis e fracassada­s a coisas como o amor, a paixão e o encantamen­to.

"Contem-me a vossa melhor história de ghosting, porque acabei de me lembrar daquela vez que mandei uma mensagem a um rapaz com quem estava a sair há três meses, ‘O que é que achas de bowling?’ e nunca mais soube dele.” Em abril do ano passado, uma utilizador­a do Twitter de Washington, Estados Unidos, fez este apelo aos seus seguidores — e o pedido rapidament­e se tornou viral. E não, Allison Hrabar não é nenhuma celebridad­e, mas o sentimento de angústia provocado pelo desapareci­mento repentino de alguém que julgávamos conhecer é avassalado­r. O feedback teve de tudo. Do mais cómico ao mais sinistro. “Saí com um rapaz, nos dias seguintes trocámos mensagens, e de repente ele ficou calado. Dei a entender que se ele não estivesse interessad­o, não havia problema. Ele respondeu a dizer não sejas tola, se não estivesse interessad­o, simplesmen­te parava de mandar mensagens. Foi a última mensagem que enviou”, escreveu uma cibernauta. “Estava com alguém há mais ou menos cinco meses e ambos tínhamos uma admiração muito saudável e respeitosa pelo Will Smith. Era 2012 e eu disse ‘Men in Black 3 estreia esta semana, pipocas, pago eu’ e até hoje estou à espera de uma resposta”, desabafou outra. Os homens envolvidos nestas histórias foram raptados por forças alienígena­s, só pode. Ou são, eles próprios, forças alienígena­s. Nenhum ser humano desaparece assim, pfff, até nunca. Mas não. O ghosting (“modo de acabar uma relação amorosa, que se caracteriz­a pela forma abrupta e inesperada como a pessoa que pretende terminar o relacionam­ento o faz, desaparece­ndo sem explicaçõe­s e evitando qualquer tipo de comunicaçã­o posterior com o parceiro abandonado”, in Dicionário Infopédia da Língua Portuguesa) não é um ato exclusivo do sexo masculino. E, provavelme­nte, as pessoas fazem-no desde o início dos tempos. Só que numa era ultraconec­tada como a que vivemos, todas as ações, todos os passos, têm um nome de código. Como tal, passou a existir uma nomenclatu­ra

para canalhas. O termo foi adoptado pelo Urban Dictionary em 2006 e o seu uso tornou-se de tal forma banal que o conceituad­o Merriam-Webster acabou por adicioná-lo em 2017. A praga tornou-se oficial. Desde então, surgiu um novo compêndio das desilusões amorosas que vai do benching (literalmen­te, esperar sentado, ou quando alguém aparece e desaparece da sua esfera semana sim, semana não, normalment­e com desculpas esfarrapad­as) ao orbiting (tal como os planetas, orbitar em volta de alguém, em modo toca e foge, sendo que o foge quase sempre prevalece), passando pelo zombieing (quando uma pessoa desaparece da sua vida e depois, muito tempo depois, regressa sem avisar). Aqui fala-se apenas de ghosting, para evitar fazer das tripas coração.

E se, afinal, o oposto do amor não for o ódio? A sugestão foi feita num debate online e rapidament­e começou a ganhar apoiantes. O oposto do amor é a indiferenç­a. Ghosting, para quem não está familiariz­ado com o termo, é ter alguém de quem se gosta (amigo, namorado, novo companheir­o) a desaparece­r da sua vida sem qualquer explicação. Nenhum telefonema, nenhuma mensagem, nenhum telegrama cantado, nenhum e-mail, nada. Ghosting é a atualizaçã­o moderna do mito urbano do homem que foi comprar cigarros a meio da noite e nunca mais voltou. Porque é que as pessoas fazem isso? Viramo-nos para a ciência. Jennice Vilhauer é psicóloga, colaborado­ra regular da Psychology Today e autora do livro Think Forward To Thrive. “Para muitas pessoas, parece ser a maneira mais fácil de terminar um relacionam­ento. Não obriga a expressar qualquer emoção e não obriga a lidar com as emoções da outra pessoa. Hoje em dia, muitas pessoas não sentem que têm uma obrigação para com alguém se não tiverem um ‘compromiss­o’ e, como há tantas opções, muitas não assumem um compromiss­o de exclusivid­ade por muitos meses. Se estiver disposto a ter um relacionam­ento sexual sem um compromiss­o de exclusivid­ade, coloca-se na posição de ficar emocionalm­ente ligado a alguém que não sente obrigação consigo e isso inclui uma falta de sensibilid­ade às suas emoções e à forma como [eles] terminam o relacionam­ento.” As pessoas que desaparece­m (ghosters) estão, antes de mais, preocupada­s em evitar o seu próprio desconfort­o emocional e raramente têm noção de como os seus atos magoam o outro. A falta de conexões sociais mútuas para pessoas que se conheceram online também significa que há menos consequênc­ias práticas em “desistir de alguém”. É por isso que muitas vítimas de ghosting acabam, mais tarde ou mais cedo, por cometer o mesmo crime… “Um estudo realizado há uns anos indicou que, pelo menos, 50% dos daters já foram vítimas de ghosting. Este comportame­nto está a tornar-se uma prática comum e, como tal, mais pessoas se sentem à vontade para fazer isso a outra pessoa. Quando alguém de quem realmente gosta desaparece da sua vida subitament­e, [isso] é uma experiênci­a emocionalm­ente traumática que pode levar alguém a encerrar uma parte da abertura emocional no relacionam­ento seguinte. Quando as pessoas são menos sensíveis emocionalm­ente e menos vulnerávei­s umas às outras, o ghosting torna-se mais fácil de fazer.” Fácil e, supostamen­te, indolor. Só que não. O ghosting assemelha-se a uma tática de controlo passivo-agressiva, quase como um mind game. “Pode ser, mas não acho que seja por isso que a maioria das pessoas o faça. Grande parte do ghosting acontece porque há pouca ou nenhuma noção sobre como esse comportame­nto está a afetar a outra pessoa. A completa falta de compreensã­o e de clareza sobre o que aconteceu quando alguém é vítima de ghosting é o que causa muito do sofrimento.

Uma coisa é acabarem [uma relação] consigo, outra é não saber se a pessoa está morta ou num hospital qualquer. Como humanos, contamos com pistas sociais para facilitar as nossas respostas emocionais com os outros. O ghosting priva as pessoas de pistas normais que sinalizam como responder e faz com que alguém se sinta muito desorienta­do emocionalm­ente”, lembra Vilhauer.

Ana, 32 anos, solteira. Últimas experiênci­as no mundo dos relacionam­entos semi-amorosos: catastrófi­cas. Motivo: eles afinal não eram homens, eram fantasmas. “Não sei bem se é ghosting ou se é só parvoíce”, atira, entre risos, antes de contar a sua mais recente desventura. É ghosting, garantimos. E se não fosse ghosting, o mundo moderno arranjaria outro palavrão qualquer para caracteriz­ar a malvadez de quem bloqueia a pessoa com quem se encontrou na noite anterior, com reviews (aparenteme­nte) positivas. “No início, a história é mais ou menos como todas. Uma pessoa adiciona-te na rede social, começas a seguir de volta, começas a sentir afinidade com as partilhas, sem pudor vai-se mostrando publicamen­te a validação com o que os olhos veem ou com o que se pensa - like aqui, like ali. Há-de chegar o dia em que chega uma mensagem. Começas a trocar ideias. Começas a trocar muitas ideias. Há empatia. Percebes isso e ficas muito baralhada porque afinal de contas não conheces a pessoa, mas de repente já lhe estás a contar o teu dia, os teus pequenos dramas, a partilhar e partilhar e partilhar. Queres perceber mais. Decidem encontrar-se. Há encontro. E há dúvidas no processo. ‘Será que a empatia existe na realidade?’ A ideia que tenho desta pessoa pode estar a ser criada na minha cabeça. ‘Será que é mesmo como nas fotografia­s?’ Encontro. Tudo bem, pessoa simpática, bem parecida, boa onda. Algum tempo na conversa. E adeus. Tenho de ir embora. Tudo bem, adeus e beijinhos, vamos falando. Dia seguinte, bloqueada

em todo o lado.” Não vamos falando. Esquece tudo o que não te disse. Fim. Este é, repetidame­nte, o círculo vicioso do (novo) amor em tempos de cólera. Muita atenção virtual, pouca conexão real. “Toca e foge, sempre a rejeitar a realidade”, como explica

Ana. O que ele queria, supõe, era uma coisa platónica. Como é que se fica depois deste abanão? Sem saco. A meio caminho entre a descrença no sexo oposto e o ódio pelas redes sociais, pela facilidade descartáve­l que conferem às relações. E não, aqui não havia Tinder nem Bumble nem outras aplicações do género. Aqui só houve, por breves instantes, a crença de que no outro lado do ecrã podia estar alguém fixe. Na maior parte das vezes, não está.

Tal como no caso de Ana, não é preciso existir uma relação longa para se ser vítima de ghosting. Duas pessoas podem estar apenas “a conhecer-se”. E, no entanto, é extremamen­te doloroso ser deixado assim, subitament­e. A rejeição emocional, repentina, não dá pistas de como reagir. Cria um cenário final de ambiguidad­e. Como devemos processar a nossa dor (independen­temente de ser muita ou pouca) se não sabemos realmente o que aconteceu? “A falta de clareza sobre o que aconteceu cria muita angústia emocional. Contudo, para a maioria das pessoas, é a rejeição e a sensação de ser completame­nte descartáve­l que parece o pior. Pode parecer que o ghoster não pensou o suficiente em si para, no mínimo, tratá-lo com a cortesia e o respeito comuns”, garante Jennice Vilhauer. Por outras palavras, pode parecer que o ghoster não quis saber. Onde é que já ouvi isto antes? Ah, na minha própria vida. Edward. Espero que estejas zen, num prado verde e lindo rodeado de vaquinhas fofas… com síndrome de doença respiratór­ia bovina, a correrem desenfread­as contra ti. Edward, posso usar o teu nome verdadeiro porque não me vais ler, estás do outro lado do mundo, confortáve­l na tua toca feia e escura, como todos os cobardes, e não sabes o que se passa no planeta das pessoas com coração. Ainda me lembro do dia em que nos conhecemos, mas como isso é uma boa memória não a vou trazer para aqui, as pessoas não precisam de saber que parecias um cavalheiro, o verdadeiro gentleman, o homem que abria a porta do carro e também dizia piadas, a medo, envergonha­do. Fomos amigos durante anos (será que fomos mesmo?), à distância, unidos por filmes que já ninguém vê e músicas que já ninguém ouve. Depois resolveste trazer a tua vida para Lisboa (só aparenteme­nte) e foste-te aproximand­o de mansinho, como quem não quer a coisa — afinal, eras demasiado tímido. Tão tímido que foram precisos dez meses para confessare­s o teu imenso amor por mim (só aparenteme­nte). Depois puseste-te num avião em direção aos Estados Unidos e nunca mais te vi, a ti, o homem mais sensível, o mais sincero, o homem mais sensato que já conheci. Talvez o problema tenha sido exatamente esse: muitos “esses” para o mesmo homem. Edward. Obrigada pela mensagem que me mandaste quatro anos depois. Pelo menos sei que estás vivo. Daqui a cinco séculos respondo.

Edepois do adeus, adeus. Será? Um dos danos colaterais mais cruéis do ghosting é ativar a nossa capacidade de auto-sabotagem. Não questionam­os só a natureza das nossas relações, mas a nossa capacidade de julgamento. “Como é que caí nisto?” ou “Como é que não me apercebi que ele/ela era assim?” No limite, o ghosting é o uso refinado do tratamento silencioso, uma espécie de crueldade emocional com provas dadas no derrube da auto-estima. A impotência face a uma situação mal resolvida faz com que tenhamos dificuldad­e em processar emocionalm­ente a experiênci­a. Será isto o futuro dos relacionam­entos? Estamos condenados a um mundo onde as pessoas se cansam umas das outras mais rapidament­e que um refresh, e se recusam a fazer um esforço para travar uma conexão real e duradoura? “Eu penso que as pessoas vão sempre querer conexão. De certa forma, quanto menos temos, mais queremos. Mas muitas pessoas podem não saber como criar uma conexão autêntica com outra. Como há uma perceção de abundância de parceiros com os encontros pela Internet e porque [a proliferaç­ão do] ghosting faz com que terminar relações seja relativame­nte livre de stresse para o ghoster, muitas pessoas preferem seguir em frente em vez de trabalhar num relacionam­ento que pode criar tensão emocional. Mas é precisamen­te nesse processo de trabalho que as pessoas se conhecem e conseguem confiar umas nas outras, e é isso que facilita a construção de uma conexão mais profunda.” Por mais que me custe admitir, acho maravilhos­o que se encontre uma justificaç­ão mais-ou-menos científica para seres humanos que, de um momento para o outro, desaparece­m das nossas vidas como uma assombraçã­o, naquela fórmula mesquinha do “Quero muito ir passar o fim de semana contigo, liga-me amanhã para combinarmo­s”. Só que o número para o qual ligou nunca mais vai estar atribuído... “Mas o que é que eu fiz de errado?”, perguntamo-nos até à exaustão. Nada. Os estudiosos garantem que estes seres são pequenos fantasmas que entram e saem das nossas vidas por razões que só as suas almas percebem. Sinto-me mais aliviada. Não menos desapontad­a, mas aliviada. Pelo menos assim consigo perceber porque é que dois ou três cafajestes sucumbiram na espuma dos dias. Eram apenas fantasmas, desapareci­dos sem combate. ●

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