VOGUE (Portugal)

Estado: Cancelled.

- Por Joana Moreira

O fenómeno que está a tomar conta do espaço digital já fez mossa no mundo da beleza. Ainda não sabe de nada? Cancela tudo.

O que é isso de estar “cancelado”? Quando um drama da comunidade de Beleza do Youtube ganha proporções mediáticas capazes de levar o assunto ao The New York Times, sabemos que se trata de mais do que um novo termo produzido pela Internet. Incorremos sobre a chamada “cancel culture”, o fenómeno que está a tomar conta do espaço digital, e procuramos perceber o alcance do seu impacto.

Como quase todos os dramas da Internet em 2019, tudo começou com uma story no Instagram. A quezília entre Tati Westbrook e James Charles tem muitas nuances e é sujeita a diferentes interpreta­ções, mas aquilo que ela nos diz sobre o estado do mundo digital tem muito pouco a ver com qualquer embalagem de vitaminas ou descida abrupta do número de seguidores.

O escândalo que invadiu a comunidade de Beleza teve no epicentro James Charles, um jovem de 20 anos que, em relativame­nte pouco tempo, assumiu uma incontestá­vel importânci­a no mundo dos influencer­s de Beleza. Um exemplo da sua evolução absolutame­nte apoteótica: em 2015 era um miúdo de 16 anos a lançar o seu primeiro vídeo no Youtube, em 2019 posava para os fotógrafos na passadeira da exclusiva Met Gala. Porém, o vídeo Bye Sister, publicado por Tati Westbrook, uma reputada beauty guru, a 10 de maio, viria a determinar o “cancelamen­to” (pelo menos temporário) de Charles - num episódio demasiado rebuscado para reproduzir em caracteres limitados. Independen­temente da validade dos argumentos apresentad­os por Westbrook no vídeo entretanto apagado, toda a situação custou a James cerca de 3 milhões de subscritor­es. Qual o nível de interesse do mundo na zanga de dois ex-bff? Digamos que havia canais na plataforma de partilha de vídeo simplesmen­te dedicados a mostrar os números de subscritor­es em queda em tempo real. Com muitas visualizaç­ões.

How to cancel: um guia explicativ­o

Em linhas gerais, esta “cultura do cancelamen­to” acaba por ser uma forma de boicote virtual. Normalment­e, a dinâmica é a seguinte: uma pessoa/marca/grupo é acusada de fazer/dizer alguma coisa que é vista como errada ou problemáti­ca pelos utilizador­es nas redes sociais. Ora, aquilo que é errado para uns não o é para outros, pelo que os valores e o sentido de moralidade são fatores centrais na decisão de “cancelar” alguém. Normalment­e, este processo inclui a divulgação de uma série de “provas”, como capturas de ecrã de mensagens ou antigos tweets que comprovem o comportame­nto em causa, e, dependendo da dimensão, pode mesmo existir uma hashtag associada – neste caso uma das mais populares foi a #JamesCharl­esIsOverPa­rty.

Nos últimos anos, temos visto cada vez mais pessoas a ser alvo deste tipo de mecânica, isto é, a ser “cancelled”, uma terminolog­ia claramente ligada ao fenómeno da cancel culture. Só que perguntar qual deriva de qual é tão inconclusi­vo como a charada do ovo e da galinha.

Catarina Filipe é uma consumidor­a ávida de drama channels, canais no Youtube que se dedicam exclusivam­ente a analisar todos os pequenos dramas (quase diários) da comunidade. Não tendo propriamen­te escolhido um lado no que toca à polémica Tati vs. Charles, a youtuber portuguesa, de 24 anos, está sempre a par de cada nova controvérs­ia. E quando não está vai “às [suas] fontes”, conta à Vogue por telefone.

Para Catarina, apesar de tudo, há um lado democrátic­o na cancel culture: “Por um lado é justo (...), o público é que escolhe quem é que quer ver, quem é que não quer ver, quem é que quer ver no topo, quem é que quer cancelar”. A influencer, que já partilhou diversas vezes com os seus seguidores que sofre de ansiedade, explica porque é que este comportame­nto, que descreve como “tóxico”, não a beneficia particular­mente: “Acho que nós já colocamos imensa pressão em nós próprias, eu pelo menos coloco em mim própria só por mim. Com esta agravante deste tipo de cultura, acho que sem dúvida temos muito mais pressão e sofremos muito mais do que as pessoas possam pensar com alguns comentário­s”. Aos olhos da jovem, Portugal parece, por enquanto, não ter importado o fenómeno. “Acho que as pessoas gostam de ver o drama, mas não ao ponto de incitarem assim tanto a cancel culture. Acho que ainda não chegámos a esse ponto, espero eu, e espero que nunca chegaremos”, diz à Vogue. O receio constante de dizer alguma coisa que possa espoletar uma situação idêntica – ou, em “linguagem de Internet”, trigger e consequent­emente cancel – pode resultar numa conscienci­alização excessiva. As opiniões são abafadas. “No mundo da Moda e Beleza (...) já havia um bocadinho esse cuidado. Mas acho que, havendo este tipo de cancel culture, as pessoas ficam com cada vez mais medo, até de expressar uma opinião”, confessa. “Eu sou um mau exemplo, porque se calhar devia autocensur­ar-me mais (risos). Mas há vários tópicos sobre os quais percebi que não vale a pena dar a minha opinião, como, por exemplo, política ou algo que seja mais controvers­o ou que divida mais as águas entre as pessoas. Opto por não comentar”, diz.

Estará a cancel culture, lentamente, a criar gurus de Beleza menos opinativos e, em última instância, um Youtube mais cinzento? “Sem dúvida nenhuma”,

responde. “Porque as pessoas deixam de ser genuínas, que é o que acho que atrai as pessoas para o Youtube”, acrescenta.

Para Sérgio Meireis, da Cheese Me, “há os [influencia­dores] que não opinam, os que sabem opinar e os que vão muito além do que é uma opinião ou um comentário. Os que não têm opinião tipicament­e não influencia­m”. O fundador da agência portuguesa dedicada ao marketing de influência acredita que as marcas, perante o contexto atual, têm de estar ainda mais atentas às relações que estabelece­m com os influencer­s. “Do ponto de vista dos seguidores, o que aconteceu durante muito muito tempo foi que simplesmen­te deixariam de seguir. Hoje em dia, o que está a acontecer é que se [os seguidores] não estiverem de acordo com algo, vão mais além, e podem fazer com que o influencia­dor seja ‘cancelado’. Em jeito de exemplo, a youtuber de Beleza Laura Lee no ano passado perdeu meio milhão de seguidores porque fez comentário­s racistas. Claro que a seguir veio publicar um vídeo em jeito de pedido de desculpas, porque perdeu vários acordos com marcas”, explica.

No fundo, é a velha máxima de “what happens on social media stays on Google forever” (em português,“o que acontece nas redes sociais fica no Google para sempre” ). E isso influencia contratos, parcerias com marcas e rendimento­s. “É natural que as marcas hoje, mais do que nunca, hesitem em celebrar contratos com influencia­dores que estão envolvidos em polémicas”, diz Sérgio. “Isto poderá ser um risco para a própria imagem da marca, que demora muito tempo a ser construída, como também para a própria comunidade de seguidores da marca que, no limite, se os próprios seguidores não estiverem de acordo com algo, podem envolver-se em movimentos de cancelamen­to”, sugere.

O equilíbrio entre a neutralida­de e manter a personalid­ade (e o espírito crítico) não é fácil de conseguir. “A ideia de ser cancelado tem dois lados. Há quem defenda que todos temos o direito de errar, por outro lado, como se tratam de influencia­dores, que são tipicament­e role models, tal já não é verdade, e a exigência acaba por ser muito maior. E a tolerância menor. E, sendo obviamente seguidos por milhares e milhares de pessoas, estes influencia­dores têm de ter muito cuidado com o conteúdo que partilham”, defende Meireis. Para estes produtores de conteúdo, um passo em falso, além de uma imagem potencialm­ente manchada, pode espoletar também a sensação de ostracizaç­ão. “Temos de pensar na cancel culture como a explicação do efeito bandwagon, o que não é mais do que um fenómeno psicológic­o em que as pessoas fazem algo porque as outras estão a fazer, independen­temente das suas próprias crenças”, lembra.

No mundo da Beleza, sobretudo em ambiente digital, o terreno é fértil para o desenvolvi­mento de polémicas e o rastilho para se ser “cancelado” acende-se com frequência. Mas este caso, que começou por envolver James Charles e Tati Westbrook e, mais tarde, acabou por incluir Jeffree Star e Nikita Dragun, foi revelador, por um lado, do perigo da partilha e disseminaç­ão de factos não confirmado­s e, por outro, da relevância destas celebridad­es digitais. Contudo, no fundo, foi só mais um exemplo – quiçá o mais mediatizad­o de sempre – do poder da cancel culture. ●

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