Tudo por um Canudo.
Na era das redes e na emergência de novas profissões e estilos de vida, falar de universidade ainda faz sentido? Por Ana Murcho.
… ou quase tudo. Nas próximas semanas, milhares de alunos terminam o ensino secundário e preparam-se para dar início a uma das etapas mais importantes das suas vidas: a entrada na universidade. Mas há cada vez mais jovens que questionam este caminho. Será que tirar um curso superior ainda é sinónimo de segurança?
Nota: o seguinte excerto poderia ter sido escrito por qualquer adulto com mais de 37 anos. Só por acaso é assinado pela jornalista que compôs o texto. Adiante. No meu tempo é que era. No meu tempo, que não foi assim há tanto tempo, ninguém pensava duas vezes sobre ir ou não para a faculdade. Se desse para ir, íamos e pronto. Era uma não questão. Ok, talvez 1999 fosse, de facto, outro tempo. Foi no século passado, afinal de contas. Tirar um curso superior era uma coisa incrível. Muitos de nós ouvimos os nossos pais queixarem-se da ditadura, da mentalidade fechada, do acesso difícil às coisas. Muitos de nós crescemos com avós que nunca aprenderam realmente a escrever mais do que o nome próprio e a morada, não fosse o diabo tecê-las. Não foram tempos melhores, foram outros tempos. Por isso, em 1999, ir para a universidade era mais ou menos como entrar numa nave ultra-espacial, sem bilhete de regresso. Só os sortudos conseguiam um lugar na nave mais fixe. Esses passavam dias e noites de pé, agarrados aos livros e à curiosidade, porque o futuro ia ser do outro mundo - só podia ser. A escola era um passaporte para outro universo. Ai de quem não aproveitasse esse oráculo de sabedoria. Foi no século passado (mesmo). A Internet era lenta e incipiente, o Google era uma biblioteca com informação duvidosa, os telemóveis serviam para pouco mais do que telefonar e enviar mensagens com cinco ou seis caracteres. A vida era fácil e maravilhosa, sim, apenas não era esta avalanche de opções que nos atiram à cara, diariamente. Também podíamos ser o que quiséssemos, só que de outras formas. Ninguém tomava decisões ao ritmo de tweets e upgrades. Lá está. Não foram tempos melhores, foram outros tempos.
Isto para dizer que não nos espanta nada, a nós que crescemos antes da explosão da tecnologia, que agora se ponha em causa uma coisa tão natural como ir para a faculdade (“ir para a faculdade” era uma expressão tão normal como ir ao Boom Festival). Nem podia ser de outra forma. Não está cientificamente provado mas, arriscamos, a vida em sociedade faz-se de fases e, neste momento, é provável que estejamos a passar um dos maiores momentos de questionamento das instituições tais como as conhecemos - onde se insere o ensino. Será preciso reaproximá-lo dos estudantes? Torná-lo mais atual? Mais humano? É possível. É nesse sentido que aponta um estudo pedido pelo Governo e divulgado em março de 2018. Determinantes e Significados do Ingresso dos Jovens no Ensino Superior foi encomendado pela Direcção-Geral do Ensino Superior (DGES) e levou a sua autora, Diana Aguiar Vieira, investigadora e vice-presidente do Instituto Superior de Contabilidade e Administração do Porto (ISCAP), a afirmar que os portugueses “não conhecem o ensino superior”. Segundo o trabalho, cerca de 45% dos estudantes do ensino secundário frequentam cursos profissionais, com 16% deste grupo a prosseguir os estudos após o 12.º ano, e apenas quatro em cada 10 jovens com 20 anos
frequentam o ensino superior. Além disso, o estudo mostra que 24% da população portuguesa tem formação superior. O estudo, que ouviu 1.091 estudantes, sobretudo do ensino secundário, mas também do primeiro ano do ensino superior, tinha como objetivo perceber os fatores que facilitam ou inibem a entrada dos alunos em cursos universitários ou politécnicos. A investigação permitiu perceber, por exemplo, que os jovens estão pouco informados sobre as opções existentes além do concurso nacional (cursos técnicos superiores profissionais, conhecidos por Tesp, concursos locais, contingente para maiores de 23) e dos apoios existentes por parte do Estado, como as bolsas de ação social ou as residências universitárias. O relatório indica igualmente que as barreiras financeiras, as experiências negativas, as fracas expectativas quanto ao retorno do investimento, a localização e o funcionamento dos cursos, a indecisão, a insuficiente orientação vocacional e o desejo de autonomia são outros dos fatores que inibem a entrada no ensino superior.
“Adicionalmente, conclui-se que é preciso rever o sistema de acesso ao Ensino Superior, como também reforçar a aproximação do tecido empresarial e social aos contextos educativos”, lia-se num comunicado publicado pelo ISCAP. De forma a contrariar este défice de conhecimento, seria importante a realização de uma campanha de divulgação do ensino superior, que conseguisse mostrar “casos de sucesso que explicitem as vantagens de uma qualificação de nível superior”, usando especialmente os meios de comunicação digitais, de modo a chegar a um público mais jovem. Diana Vieira, citada pelo jornal Público, salientou mesmo que a persistência de “expetativas negativas” em relação ao retorno do investimento numa qualificação de nível superior é um dos fatores que mais condiciona o prosseguimento de estudos após o 12.º ano. “Foi algo muito salientado pelos participantes. Mantém-se a ideia de que não vale a pena tirar um curso”. Em janeiro de 2019, na Convenção do Ensino Superior, representantes de universidades e politécnicos debateram um outro número alarmante: 60% dos jovens portugueses entram no mercado de trabalho sem qualificações superiores. E, no entanto, de acordo com o relatório Education at a Glance da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), os portugueses com o ensino superior ganham, em média, mais 69% do que aqueles que têm apenas o ensino secundário, um dos valores mais altos de todos os países que participam nesse estudo. Como explicar estes valores tão díspares?
Luís Aguiar-Conraria, Professor de Economia e Gestão na Universidade do Minho, escrevia a propósito no Observador. “É razoável argumentar que são as pessoas mais produtivas aquelas que vão estudar para o ensino superior e que se não tivessem ido teriam, na mesma, remunerações mais elevadas. Ou seja, em vez de haver uma relação causa-efeito entre tirar um curso e ser mais bem tratado no mercado de trabalho, há simplesmente uma causa comum: são os mais produtivos que tiram cursos superiores e que são premiados pelo mercado. Mas, mesmo aceitando o argumento anterior como razoável, a verdade é que é incompleto. Há todo um conjunto de profissões que está vedado a quem não tem formação académica adequada - juízes, engenheiros, professores, médicos, etc. Tudo profissões que têm remunerações acima da média.” E acrescentava, a propósito da situação portuguesa: “Além dos indicadores estatísticos e dos estudos da OCDE […] existem bons estudos para Portugal sobre este assunto. Um dos últimos, com um conjunto de investigadores (Hugo Figueiredo, Miguel Portela, Carla Sá, João Cerejeira, André Almeida e Diogo Lourenço) que garante a sua qualidade, foi promovido pela Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) e tem como título Benefícios do Ensino Superior. Este estudo da FFMS tem a vantagem de se debruçar, não só sobre indicadores pecuniários, mas também sobre outros indicadores de qualidade de vida. Relativamente ao lado financeiro (e deixando claro que se está apenas a falar de salários de trabalhadores por conta de outrem), os resultados confirmam os de outros estudos, mas vão um pouco mais além.
Por exemplo, mostram que o prémio salarial de quem tem uma licenciatura ou mestrado em Ciências, Tecnologias, Engenharias e Matemática é maior do que o de quem tem o título académico em outras áreas.” É precisamente este relatório que revela um outro lado, não tão visível em gráficos e percentagens. “Os licenciados revelam estar mais satisfeitos com o tipo de emprego que têm e até com a vida que levam de um modo geral. Revelam também que os licenciados levam um estilo de vida mais saudável, que são mais tolerantes (menos racistas, menos xenófobos e menos homofóbicos) e com níveis de participação cívica mais elevados.” Claro que nem tudo é um mar de rosas. Nunca é.
Rui, 23 anos, jornalista, licenciado pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. A sua história é o espelho de tantas outras, escondidas atrás de relatórios sem rosto e números
NO MEU TEMPO, QUE NÃO FOI ASSIM HÁ TANTO TEMPO, NINGUÉM PENSAVA DUAS VEZES SOBRE IR OU NÃO PARA A FACULDADE. SE DESSE PARA IR, ÍAMOS E PRONTO. ERA UMA NÃO QUESTÃO.
fantasmas. “Tive uma bolsa do Estado, que é atribuída de acordo com os rendimentos de cada família, e depois ainda tive outra, a + Superior, que começou no meu ano, e que era para os alunos que tinham tido boas notas e que escolhiam estudar no interior do país, para estimular a ida para o interior do país. Houve colegas meus que queriam ir para a faculdade e não foram por causa do dinheiro. Colegas que estudaram comigo até ao 12.º ano e que depois não conseguiram ir para a faculdade porque os pais não tinham dinheiro. E eles tiveram de deixar de… Se calhar ambicionavam mais para a vida deles, mas não conseguiram ir para a faculdade.” Rui está há pouco mais de três anos em Lisboa. Tempo suficiente para saber como a capital funciona. “Acho que há duas bolhas. A bolha da capital e das grandes cidades portuguesas em que as pessoas têm mais oportunidades e menosprezam as universidades, e depois há o país real, que não é tão conhecido, mas é o Portugal… Portugal. São as pessoas que moram nas aldeias e que olham para as universidades e para os cursos superiores como uma maneira de sair daquele meio em que vivem. Na verdade, na aldeia não ambicionas muito. Não [cresces] muito com essa expetativa de sonhar seres alguma coisa. Nesse sentido, ainda há muita gente que gostaria de se licenciar, que pensa nisso. E que vê nisso uma maneira de, nem tanto sair dali, mas de, se ficar, ter um [trabalho] mais estável, tanto nas aldeias como nas cidades próximas. Para não ter de ser agricultor ou trolha, como os pais foram. Nesse Portugal, acho que ainda há muita gente que ambiciona ir para a faculdade.” No seu caso, sempre soube que o futuro, se brilhasse, passaria pela universidade. “As pessoas, aqui, vivem muito nesta bolha da capital e esquecem-se do que há lá fora. Eu, se não tivesse recebido a bolsa, não tinha estudado. Os meus pais não tinham dinheiro. O meu irmão mais velho não foi para a faculdade porque nunca quis estudar, abandonou a escola por vontade própria e foi para a carpintaria, mas eu sempre quis estudar. A minha mãe chegou a dizer-me, quando cheguei ao 12.º ano, ‘Vais-te inscrever, se tiveres a bolsa ficas, se não tiveres, não te consigo pôr a estudar na faculdade’.” Vários amigos ficaram para trás, atropelados pelos gastos impossíveis exigidos pelo ensino superior. E hoje, o que fazem? “Há um que está a trabalhar na agricultura com o pai, há pessoas que estão a trabalhar em lojas de roupa, nos cafés da aldeia, outros nos supermercados…” Nenhum deles foi para a universidade? “Não.”
As contas fazem-se por alto. São cerca de 1.000 euros de propinas por ano (numa instituição pública), fora os transportes casa/universidade para os estudantes “deslocados”, o quarto na cidade, onde se passa a viver, e mais uma série de despesas variáveis (fotocópias, livros, alimentação). Os mínimos de quem fez o esforço recentemente apontam para cerca de 4.000 euros por ano. É um investimento que nem todos conseguem pagar. Daí existirem tantos jovens que, após alguns anos de licenciatura, abandonam o curso em busca de “algo mais certo” que lhes garanta um rendimento… mais urgente. Ou quem, depois de ter o canudo na mão, se encolha perante o mercado de emprego ultra-saturado, onde os salários nem sempre correspondem às promessas dos panfletos e dos anúncios da Internet. A lei da oferta e da procura está desvirtuada. E se muitas profissões perderam importância com a evolução e o progresso (datilógrafas) outras exigem conhecimentos que são, eles próprios, um work-in-progress (piloto de drones) e outras estão carentes de leis e nomenclatura (influencers). Nenhuma escapará, no entanto, ao tsunami da tecnologia. “Cada vez mais vai ser difícil distinguir o que está a ser feito por uma pessoa e o que é feito por uma máquina. Como resultado, a natureza fundamental de como funcionam os humanos será transformada e nós vamos ter de trabalhar com mais inteligência”, considera Gideon Mann, chefe de Ciência de Dados da Bloomberg LP. Com ou sem canudo, o futuro exige pensamento, raciocínio e razão crítica. Só isso definirá os vencedores. “Todas as manhãs olhava para o espelho e perguntava: ‘Se hoje fosse o último dia da minha vida, faria aquilo que estou prestes a fazer hoje?’ E sempre que a resposta era ‘não’ durante demasiados dias consecutivos, sabia que tinha de mudar alguma coisa.” O lema era de Steve Jobs, fundador da Apple, mas pode ser resgatado por qualquer um de nós. Esta é, afinal, a época do questionamento (constante) e da busca (incessante) de respostas para melhorar o nosso eu. Estudar é isso mesmo. É aprender mais sobre o mundo, sobre os outros e, principalmente, sobre nós mesmos. É absorver outras culturas, outros hábitos. É descobrir. Só faz sentido “ir para a faculdade” se isso nos fizer sentido, a nós. Há quem faça anos sabáticos depois do secundário. Há quem decida fazer trabalhos de voluntariado antes de se comprometer com uma vida adulta. Há quem prefira montar o seu próprio negócio. Há quem decida esperar para ver. Cada pessoa é um caso. Nem todos os caminhos vão dar à universidade. Mas muitos ainda vão. ●