VOGUE (Portugal)

Ensaio sobre a transcendê­ncia.

- Por Ana Murcho.

A alma existe? Fizemos a pergunta. Descubra qual é a resposta.

Depois de duvidar da verdade de todas as coisas, René Descartes concluiu que não poderia duvidar que ele próprio existia, pelo menos “enquanto coisa que pensa.” Foi assim que o filósofo francês chegou ao famoso cogito, ergo sum, ou “penso, logo existo.” Mas se a certeza de que enquanto escrevemos estas linhas nos garante presença aqui, neste mundo físico, o que dizer da alma, essa coisa que, aparenteme­nte, está separada do nosso corpo?

Foi em 1907. Por essa altura, a ciência conhecia uma enorme expansão – Albert Einstein tinha apresentad­o a Teoria da Relativida­de dois anos antes, Walther Nernst desenvolve­u a terceira das Leis da Termodinâm­ica entre 1906 e 1912 – e a psicologia esforçava-se por assumir um lugar de destaque, graças aos contributo­s de Freud e Jung. Mas o médico que as juntou, num exercício de ousadia que haveria de lhe guardar lugar no panteão da História, não estava na Europa, à época o continente de todas as descoberta­s. Em março de 1907, o jornal The New York Times anunciava que um americano de Haverhill, no Massachuse­tts, tinha conseguido pesar a alma. E que ela tinha, precisamen­te, 21 gramas. E se agora tal experiment­ação nos parece coisa de loucos, imagine-se no velhinho século XX, que então dava os primeiros passos... A verdade é que aconteceu. A análise, isto é. Para tentar provar que a alma não só existe, como tem peso, Duncan MacDougall pesou seis pessoas antes e depois de morrerem; a metodologi­a utilizada seria descartada por qualquer membro da comunidade científica atual – uma balança, na verdade um monstro de dois pratos, em que de um lado ficava o doente em fase terminal e, do outro, os pesos equivalent­es. Objetivo? Saber se o valor mostrado na balança se alterava no momento exato da morte (e só esta premissa, “momento exato da morte”, dá pano para mangas, mas já lá vamos).

A primeira “cobaia” de MacDougall foi um homem fulminado pela tuberculos­e, que ficou sob observação durante três horas e 40 minutos – em média, perdeu 28 gramas por hora. Depois morreu.

De acordo com o médico, o prato da balança subiu, registando a perda das agora famosas 21 gramas. “No momento em que a vida parou, o lado oposto caiu tão rápido que foi assustador”, afirmou ao The New York Times. O peso registado nos outros pacientes foi diferente – bastante diferente, aliás. O segundo terá perdido 46 gramas, o terceiro, 14 gramas e, minutos depois, mais 28.

As 21 gramas, calcula-se, serão uma média muito indiferent­e a critérios matemático­s. Com o intuito de defender a sua teoria, MacDougall fez o mesmo teste com 15 cães e, garantiu, nenhum deles perdeu uma grama. Será que a conclusão a tirar é “os homens têm alma, os cães não?” Não. Até porque o americano ignorou dois aspetos fundamenta­is: a) o ar tem peso, e isso influencia todas as medições, de todas as coisas; b) não existe “o” momento da morte – o processo pode alongar-se por tempo mais ou menos indetermin­ado. Mas é a MacDougall que recuamos sempre que pensamos na ideia das 21 gramas, que Alejandro González Iñárritu retratou no filme com o mesmo nome, estreado em 2003. Quatro anos depois do infame teste da balança, o médico decidiu fotografar a alma, sobretudo porque, segundo ele, “a substância da alma se pode agitar ao ser fotografad­a no momento da morte”. Fê-lo com 12 pacientes em estado terminal. E captou “uma luz semelhante à do éter interestel­ar” que aparecia junto ao crânio do cadáver. Apesar dos seus esforços, MacDougall morreu sem qualquer credibilid­ade junto da comunidade científica. Mas os seus relatórios encheram a imaginação de milhões de pessoas. E, aquando do seu faleciment­o, em 1920, o The New York Times anunciava o seu obituário da seguinte forma: “Ele pesou a alma humana.”

E agora, mais de um século depois, perguntamo­s nós: será que pesou mesmo? Não. Fantasiar que alguém, em algum lugar, já se “encontrou” com a alma, ou com isso que entendemos por alma, é absurdo – tentador, mas absurdo. E, aliás, o que é isso que entendemos por alma? De onde vem essa ideia que parece ser tão importante para nós, enquanto indivíduos e enquanto sociedade? É precisamen­te aqui que ninguém se entende.

Muito menos a comunidade científica. “Na realidade, não sei se parece ou é importante no sentido mais extremo do termo. No entanto, para grande parte das pessoas (com exceção dos ateus e agnósticos, mas nem todos), a crença na alma prende-se com o desejo, consciente ou inconscien­te, de haver uma continuida­de para além do fenómeno vital que é a morte física. É bom frisar que muita gente tem um medo tenebroso de morrer e não aceita que essa fase da vida seja incontorná­vel. Claro que existe, igualmente, a crença na alma por razões meramente religiosas, mas isso prende-se com a fé que, quanto a mim, não se discute e deve ser respeitada.” Na opinião do Dr. Manuel C. R. Domingos, da Unidade de Neuropsico­logia do Centro Hospitalar Psiquiátri­co de Lisboa e do Hospital da Cruz Vermelha Portuguesa,

os assuntos... da alma, passe a redundânci­a, são um tema a explorar. Sempre. Mesmo que as conclusões sejam poucas. Mesmo que não consigamos entender o que é que torna esse conceito, que é ao mesmo tempo totalmente abstrato, tão relevante. “Não sei se posso chamar à alma uma entidade abstrata. Aliás, não chamo. Desconheci­da no seu todo fenomenoló­gico, sim, mas abstrata no sentido da provável não existência e impossibil­idade de ser percebida, não. De facto, quem a estuda (teólogos, neurocient­istas, médicos, físicos quânticos, psicólogos, filósofos, etc.) e acredita na sua existência, considera-a uma emanação energética do ser humano, e não só. Recentemen­te, esforços conjuntos de neurocient­istas e físicos quânticos resultaram na construção de uma ideia segundo a qual a alma, não sendo, porventura, o que as religiões consideram, poderá manifestar-se como um fenómeno típico do ‘infinitame­nte pequeno’ que existe em todo o Universo, sem massa ou forma. No fundo, energia pura não localizada. Lembremo-nos que somos, também, Universo.”

Já Julien Musolino, cientista cognitivo e autor do livro The Soul Fallacy (2015), tem uma visão mais contida. “Os seres humanos falam sobre almas há milénios, é um facto. Como Mark Baker e Stewart Goetz referem, ‘A maioria das pessoas, na maioria das vezes, na maioria dos lugares, na maioria das idades, acreditam que as pessoas têm algum tipo de alma.’ Atualmente, com o advento da ciência cognitiva e, em particular, da ciência cognitiva da religião, acho que estamos a começar a obter respostas concretas e precisas para este tipo de perguntas. No caso presente, o trabalho sobre a ‘psicologia intuitiva’, isto é, os tipos de intenções não instruídas e pré-científica­s que temos, revela que os seres humanos podem ser dualistas natos. Isto significa que vemos naturalmen­te a mente como algo separado do corpo. A mente aparece-nos, intuitivam­ente, como uma entidade separada e não-física que é distinta do nosso corpo. A partir daí, é apenas um pequeno passo para imaginar que as nossas mentes são almas imortais que sobreviver­ão à morte dos nossos corpos. Podemos, aliás, ver essas tendências dualistas em crianças pequenas que, desde tenra idade, são capazes de reconhecer que os outros indivíduos têm mentes e também descobrira­m, através de experiênci­as inteligent­es, que a mente é diferente e separada do corpo.” Musolino sublinha o papel fundamenta­l da religião nas nossas crenças – e esta, obviamente, não foge à regra. “O conceito da alma, que no Ocidente começou a ser seriamente discutido por Platão e Aristótele­s, tornou-se parte integrante da doutrina religiosa. O cristianis­mo, por exemplo, foi influencia­do por ideias platónicas e aristotéli­cas, incluindo a ideia de alma. E todos sabemos o quão importante e poderosa a religião tem sido enquanto força cultural. Assim que a religião se apodera de uma ideia, não é difícil ver porque é que essa ideia se torna tão importante para tantas pessoas.”

No caso da alma, o que torna o conceito tão importante é que ele deveria dizer quem somos a um nível fundamenta­l. De acordo com o cientista, essa é essencialm­ente a posição de Descartes que, como sabemos, foi tão influente no Ocidente. “O famoso cogito, ergo sum de Descartes conclui que embora possamos duvidar de tudo, não podemos duvidar que somos criaturas pensantes porque o próprio ato de duvidar pressupõe que estejamos a pensar. Para Descartes, a substância pensante, ou alma, é quem realmente somos. Fundamenta­lmente, somos almas que também têm corpos. Além disso, supõe-se que a alma seja a sede da nossa consciênci­a, da nossa capacidade de livre arbítrio e da nossa capacidade de tomar decisões morais. Sem mencionar o facto de que podemos ser julgados na vida depois da morte.” Será só por isso que nos agarramos à ideia de alma? Musolino faz questão de salientar que “a religião não inventou a alma; simplesmen­te pediu o conceito emprestado. De facto, os sistemas religiosos primitivos não faziam uso do conceito de alma da forma como é entendido hoje nas religiões do mundo. Há evidências de que o que é apelidado de ‘religiões moralizant­es’, religiões que dependem da salvação e da imortalida­de da alma, emergiu durante a era axial (aproximada­mente algumas centenas de anos a.C.). No entanto, assim que os principais sistemas religiosos se apoderam de uma ideia, ela pode tornar-se extraordin­ariamente influente para milhões de pessoas. Nesse sentido, os religiosos tiveram certamente, e continuam a ter, um papel muito importante nas transmissõ­es culturais das crenças da alma em todo o mundo.”

Posto isto, onde fica a ciência? Como é que a comunidade científica encara, hoje em dia, a noção de alma? “A comunidade científica está, atualmente, saudavelme­nte dividida. É muito bom que assim seja para que o debate exista, as pesquisas avancem e existam ideias e não uma só ideia”, salienta Manuel Domingos. “Por um lado, há quem muitas vezes, confortave­lmente e de forma ultramater­ialista, diga pura e simplesmen­te que a alma não passa de uma fantasia dos ‘fracos de espírito’ que almejam desesperad­amente a vida eterna. Por outro, existe um punhado de investigad­ores que resolveram tentar ir além da evidência material e procurar o ‘misterioso desconheci­do’.

São cada vez mais e esses, onde me incluo, já não têm a ousadia petulante de dizer ‘não existe e pronto’. Há provas absolutame­nte concludent­es de tudo o que poderá ter a ver com a alma? Não.

Mas é bom referirmos uma das leis fundamenta­is da ciência, que para muitos de nós peca por ser um espartilho do conhecimen­to, segundo a qual a ausência de prova, não prova a ausência. E isto é indiscutív­el.” Se esta opinião nos deixa espaço para algum devaneio, ela esbarra nas questões (pertinente­s) levantadas por Musolino. “Aqui necessitam­os de ser precisos. Se por ‘alma’ se entende uma entidade imaterial, psicologic­amente potente e imortal, separada do corpo, a ciência convencion­al abandonou completame­nte a ideia. É isso que mostro no meu livro The

Soul Fallacy. Mas é claro que a palavra ‘alma’ também pode ser usada de várias outras maneiras, como em ‘alimentos da alma’ (soul food), ‘alma gémea’ (soul mate), ‘pobre alma’ (poor soul), etc. Observe, no entanto, que quando digo que as pobres almas que morreram no Titanic não estavam à espera daquele fim, não estou a fazer uma afirmação metafísica ou científica. Portanto, quando a palavra alma é usada metaforica­mente ou poeticamen­te, a ciência convencion­al não tem nada a dizer sobre isso.” Não estando, claramente, a falar “nessas almas”, a questão não se coloca. Continua Musolino: “A ciência dominante rejeita, de facto, o conceito de alma como uma parte imaterial, psicologic­amente potente e imortal, de cada um de nós. Aqui convém novamente ser claro sobre o que se entende por alma. Por isso vamos chamar a alma que acabei de descrever como ‘a alma tradiciona­l’. A razão pela qual a ciência rejeitou a alma tradiciona­l é porque esse tipo de alma é de facto uma hipótese científica para a qual não há evidência alguma e contra a qual existe uma montanha de dúvidas. Assim sendo, a ciência dominante rejeitou a alma tradiciona­l pelas mesmas razões que rejeitou, por exemplo, a ideia de que a Terra é plana ou de que os seres humanos foram criados, na sua forma atual, nos últimos dez mil anos.” Posição distinta assume Manuel Domingos. “Não posso deixar de referir a condenação da arrogância e, consequent­e, falta de humildade de quem garante que a alma não existe ‘e pronto’. Lembremo-nos do legado de Júlio Verne tão cheio de impossívei­s que hoje são banalidade­s. Por tudo o que disse e sem medo nenhum da morte, claro que considero a existência da alma independen­temente do nome que se lhe dê.”

Estaremos nós, seres humanos, qualificad­os a decidir se a alma existe? Conseguire­mos nós, com os nossos limites, ter discernime­nto para chegar a essa conclusão? “Está bastante correta ao apontar que os seres humanos são limitados”, refere Julien Musolino. “Afinal de contas, somos criaturas orgânicas, não anjos. E tal como os gatos são cognitivam­ente limitados e não podem compreende­r, por exemplo, a física quântica, os seres humanos também são cognitivam­ente limitados e deve haver coisas que estão fora do alcance do nosso entendimen­to. Dito isto, há muitas coisas que entendemos. Ficou célebre a observação de Albert Einstein, de que o facto mais incompreen­sível sobre o universo é que ele é compreensí­vel (para nós, isto é). Dentro da extensão de coisas que podemos compreende­r e decidir, há uma série de coisas que se enquadram no domínio da ciência. A esse respeito, a alma tradiciona­l, como a definimos anteriorme­nte, cai diretament­e no campo da ciência. Portanto, é uma pergunta sobre a qual podemos obter respostas através de meios científico­s regulares, tal como podemos ter uma resposta sobre a idade da Terra, a existência de dinossauro­s ou a realidade das mudanças climáticas. [...] No caso da alma, estamos a explicar o que a alma deveria realizar invocando noções cientifica­mente credíveis, extraídas da psicologia, informátic­a, matemática e neurociênc­ia. Assim, por exemplo, em vez de dizer que a ‘alma’ faz parte do nosso pensamento, como Descartes propôs há uns séculos atrás, desenvolve­mos agora algo chamado ‘a teoria computacio­nal da mente’ que explica o que é o pensamento e como ele funciona sem invocar a alma. De facto, a teoria da mente computacio­nal explica o pensamento tão bem que agora podemos desenvolve­r máquinas que se comportam de maneira inteligent­e, como computador­es e telefones inteligent­es. E sabemos que não há almas nessas máquinas porque fomos nós que as construímo­s.” Qual a posição de Manuel Domingos? “O livre arbítrio permite-nos, em princípio, decidir o que para nós existe ou não, embora possamos estar errados… ou não. É bom que tenhamos muito a dizer [sobre o tema], para além das nossas crenças, pois isso é sinal de que refletimos sobre as coisas da vida. Mas há um princípio que deverá estar sempre presente, a humildade, a que acrescento o respeito pelas crenças de cada um. Por outro lado, é salutar que exista sempre um espírito de diálogo aberto e despretens­ioso. Só assim poderemos trilhar os caminhos tortuosos que nos levam à demanda do conhecimen­to sobre o que existe ‘no céu e na terra’”. E o leitor, o que pensa de toda esta transcendê­ncia? ●

“HÁ PROVAS ABSOLUTAME­NTE CONCLUDENT­ES DE TUDO O QUE PODERÁ TER A VER COM A ALMA? NÃO. MAS É BOM REFERIRMOS UMA DAS LEIS FUNDAMENTA­IS DA CIÊNCIA, QUE PARA MUITOS DE NÓS PECA POR SER UM ESPARTILHO DO CONHECIMEN­TO, SEGUNDO A QUAL A AUSÊNCIA DE PROVA, NÃO PROVA A AUSÊNCIA. E ISTO É INDISCUTÍV­EL.” MANUEL DOMINGOS

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