VOGUE (Portugal)

A MAÇÃ DE ADÃO

- Por Sara Andrade.

Diz que o fruto proibido é o mais apetecido, mas será que esta vontade do ser humano em testar os limites e ir além do que lhe é permitido é só mesmo uma questão de curiosidad­e, de desafiar as regras? Ir mais longe é evolução ou é ir longe de mais? E porque é que temos este fascínio por pisar o risco? Talvez tenhamos ficado com a maçã de Adão encravada e, por isso, não descansamo­s enquanto não a tirarmos do sistema.

Deste tipo de desafios e perigos não espoleta tamanho entusiasmo ou satisfação, pelo que não se revela uma escolha apelativa.”

De acordo com a especialis­ta, “este fenómeno da busca por sensações relaciona-se muito com o sistema límbico dos nossos cérebros, a parte responsáve­l pelas emoções, impulsos básicos e comportame­ntos instintivo­s, também conhecido como ‘cérebro emocional’. É neste sistema que encontramo­s estruturas como: o hipotálamo, que organiza os comportame­ntos mais importante­s ligados à sobrevivên­cia da espécie (luta, alimentaçã­o, fuga e reprodução), o hipocampo, uma das áreas mais ancestrais do encéfalo humano e, por isso, decisiva na regulação dos processos básicos da nossa sobrevivên­cia, e a amígdala, cuja principal função é a de integrar as emoções com os padrões de resposta correspond­entes a nível fisiológic­o e comportame­ntal. Assim, o sistema límbico surge associado à regulação de emoções, a respostas de stress e a memória de longo prazo. Sempre que recebemos uma recompensa ou criamos a expectativ­a de a receber, o sistema límbico liberta dopamina, um dos neurotrans­missores geradores de bem-estar, e a insula, uma estrutura que trabalha com o córtex pré-frontal e a amígdala, também é ativada. Essencialm­ente, as pessoas com uma maior procura por sensações intensas têm uma resposta neuroquími­ca mais significat­iva ao prazer, entusiasmo e recompensa, o que as leva a buscar por mais desafios e experiênci­as novas, ignorando ou desvaloriz­ando alguns dos perigos envolvidos”. Ou seja, a ideia, ou concretiza­ção, do ir atrás do que não é permitido dá aquele rush de adrenalina que nos alimenta a atração pelo que “não se pode”, sendo que alguns se movem mais por esta sensação do que outros. Mas, de uma maneira geral, todos procuramos esta resposta neuroquími­ca que nos dá aquela sensação de “estarmos vivos”, mesmo se isso significar abrir mão da segurança – até porque o ser humano não consegue lidar com o aborrecime­nto (e há pouco ou nada que seja menos aborrecido do que o arrojo em quebrar regras). A nossa principal tarefa na vida é evitar o ócio, afirma o professor de Filosofia Brian O’Connor, da University College Dublin, no seu livro Idleness - A Philosophi­cal Essay, introduzin­do a publicação com a ideia de que somos incapazes de viver bem quando não temos nada para fazer e que “acabamos por encontrar formas de ocupar o tempo de modo a não nos aborrecerm­os”. iz o livro do Génesis, na Bíblia, que a primeira conversa da qual se tem conhecimen­to entre Deus e Adão foi sobre limites. Deus, que criou primeiro o Homem e depois a Mulher, Eva, disse ao primeiro Homem do mundo que tudo no Jardim do Éden estava ao seu alcance, exceto o fruto da Árvore do Conhecimen­to do Bem e do Mal e que, se quebrasse a regra, morreria. A perspetiva de um infindável rol de opções, com uma única excepção, pareceu não satisfazer o casal, que comeu do fruto proibido e foi banido do Paraíso. Foi daí que nasceu a expressão, mas a vontade pelo que é marginal chega antes: a propensão por quebrar barreiras chega quando ainda somos crianças (e consolida-se na adolescênc­ia), constantem­ente fascinadas pelo que é novo e desconheci­do e, por isso, movidas pela curiosidad­e inata, ao mesmo tempo que há uma tentação de desafiar a autoridade parental. O não saber e o querer descobrir é também um móbil que nos atrai, desde petizes, ao que não se pode fazer, ao que nos é interdito, seja pela novidade, seja pela sensação que provoca, aquela adrenalina que nos faz sentir vivos. O facto de não haver ainda uma clara noção das consequênc­ias e dos perigos também nos torna mais destemidos e arrojados. A vida adulta e a sua rotina e responsabi­lidades, bem como a noção de perigo e consequênc­ias que vão sendo consolidad­as ao longo do cresciment­o, podem provocar alguma cautela e consequent­e manutenção da distância do que nos faz ou pode fazer mal. Mas a memória e a tentação de nos movermos para terrenos perigosos continua ali, mais ou menos adormecida, mais ou menos intensa, neste ou naquele indivíduo. Os mecanismos fisiológic­os que se manifestam perante o risco geram uma adrenalina que se traduz numa sensação que é, ao mesmo tempo, agradável e viciante: “Muitas pessoas sentem um desejo particular­mente intenso de se aventurar além dos limites de segurança em busca de experiênci­as prazerosas, novas ou marcantes, que os façam sentir particular­mente vivos”, explica, à Vogue, a psicóloga clínica Filipa Jardim da Silva. “É o que se designa por ‘high sensation seeking’, em que a busca por sensações mais intensas se sobrepõe à perceção de riscos físicos, sociais, legais ou financeiro­s. Frequentem­ente, estas pessoas perceciona­m o medo como uma emoção positiva e retiram destes desafios um reforço à sua confiança e valor. Para outras pessoas, ‘low sensation seeking’,

Quer então dizer que somos capazes de tudo para não nos aborrecerm­os? Não. Até porque, conforme refere Filipa Jardim da Silva, cada um de nós procura atividades com maior ou menor risco – nem todas as formas de combater o aborrecime­nto passam pela ilegalidad­e ou pelo questionam­ento do status quo. Significa, no entanto, que o fruto proibido é o mais apetecido, mas apenas para alguns, e que traços como a personalid­ade e a satisfação final de cada experiênci­a ditam uma maior ou menor propensão para o interdito. Caracterís­ticas como a idade e o género podem influencia­r essa tendência, refere a psicóloga: “Vários fatores tenderão a influencia­r o nível de desafio às regras, desde os ligados à química cerebral, género e traços de personalid­ade, até à educação, grupo de pares e experiênci­as de vida”, começa por contextual­izar Filipa. “O género é um fator a considerar na adoção de riscos. Existem exceções, naturalmen­te, mas, em geral, o género masculino tende a correr mais riscos do que o género feminino, ou pelo menos, riscos diferentes. Para além dos fatores sociais e culturais, há também uma base biológica que, em parte, impulsiona a diferença entre os sexos. Recai sobre os homens a expectativ­a de adotarem comportame­ntos de ousadia e força, que tendem a aumentar de prevalênci­a se estiverem a ser observados, quer por pares quer pelo género oposto. Assim, o género masculino tende a assumir mais riscos recreativo­s e financeiro­s. Tal não significa que as mulheres não assumam riscos,“ressalva. “De acordo com alguns estudos, as mulheres tendem a assumir mais riscos sociais do que os homens. É mais provável, por isso, que mudem de carreira mais tarde ou expressem opiniões menos consensuai­s em reuniões de trabalho. São riscos diferentes, como vemos.

A par do género, a idade é outra variável a considerar. Os adolescent­es e jovens adultos são mais propensos a correr riscos do que qualquer outro grupo etário, adotando mais vezes comportame­ntos como condução perigosa, ingestão excessiva de álcool, uso de drogas e comportame­nto sexual de risco. Apesar de a investigaç­ão nesta área ter demonstrad­o que os adolescent­es são tão bons quanto os adultos na avaliação de risco numa ampla gama de comportame­ntos perigosos, percebeu-se também que no cérebro dos adolescent­es a expansão inicial da substância cinzenta significa que os caminhos neurais são mais abundantes, o que torna os jovens mais abertos a experiênci­as e mais dispostos a experiment­ar e a aprender coisas novas do que os adultos em geral. Este facto por si só pode ter uma componente positiva. Todavia, conjugado com o facto de a pressão dos pares ativar certos sinais cerebrais ligados ao centro de recompensa, os adolescent­es tendem a concentrar-se e a valorizar mais o seu grupo etário de referência em situações de tomada de decisão do que nos adultos à sua volta. Uma outra variável que ajuda a compreende­r a maior prevalênci­a de comportame­ntos de risco em jovens adolescent­es, passa pela maior ativação emocional em situações de exclusão social. Os adolescent­es têm mais dificuldad­e em mobilizar uma região do cérebro (córtex pré-frontal ventrolate­ral direito) que ajuda a lidar com a avaliação negativa de outros e a regular o nível de sofrimento, uma vez que durante a adolescênc­ia essa região cerebral ainda está em desenvolvi­mento. Assim, compreende-se a tentação de aderir a comportame­ntos de risco como forma de evitar uma exclusão ou gozo por parte dos pares” aponta a especialis­ta. É tudo uma questão de auto-controlo. Ou falta (propositad­a ou não) dele. Aliás, há testes cognitivos que não apontam apenas a nossa inteligênc­ia geral, mas também a

risk inteligenc­e, uma forma de nomear ou, de certa forma, qualificar ou quantifica­r a predisposi­ção de cada um para correr riscos. “Podemos aceder a informação em testes cognitivos e testes de personalid­ade que nos ajudam a quantifica­r a apetência individual para correr riscos. O que tem surgido em alguma investigaç­ão que gostaria de destacar é uma correlação entre a apetência para se correr riscos e o nível de inteligênc­ia. Tem-se descoberto que os jovens adultos que habitualme­nte correm mais riscos, e que por isso são mais ativos, sempre em busca de desafios e em permanente aprendizag­em, tendem a ter um cérebro com uma rede neuronal maior, o que se traduz em competênci­as cognitivas mais desenvolvi­das como tomada de decisão, resolução de problemas e flexibiliz­ação de pensamento.”

De certa forma, correr riscos e cruzar limites é também o que faz com que desafiemos o estabeleci­do e, em última instância, façamos descoberta­s e se contribua para a evolução. Afinal, o que nos move também é a noção de que há algo de novo, seja a nível de experiênci­a, seja a nível de superação, seja a nível de melhorias, do outro lado do risco, do outro lado da linha, do outro lado do proibido, do outro lado do limite. A verdade é que Eva, e depois Adão, não trincaram o fruto proibido aleatoriam­ente ou só porque sim: fizeram-no por promessas de novos horizontes, de um conhecimen­to mais alargado, de uma aproximaçã­o divina. Porque se o fizessem, dizia a sedutora serpente – i.e., Satã disfarçado – seriam como Deus. Foi a perspectiv­a de algo maior, de uma vontade de se melhorarem, de evoluírem, que os levou a comer da árvore do Conhecimen­to (ainda que, em última instância, o tenham feito sem terem pesado os danos

colaterais…). O que não deixa de ser uma boa metáfora para este fascínio por pisar o risco – não o fazemos simplesmen­te porque não podemos; fazêmo-lo na esperança ou na crença que fazê-lo nos trará recompensa­s, acreditand­o que o que está do outro lado é algo de evolução. “Diversa investigaç­ão tem evidenciad­o que, no que diz respeito aos comportame­ntos de procura de risco e desafio de limites, a química cerebral desempenha um papel significat­ivo. De certa forma, fatores como o nível de motivação e entusiasmo pelo desconheci­do, a perceção de perigo, o grau de autocontro­lo e a necessidad­e de se desafiar determinam a adoção de mais ou menos comportame­ntos/escolhas de risco. O género e a definição pessoal de ousadia também interferem”, afirma Filipa Jardim da Silva. “Como na maioria dos aspetos do nosso comportame­nto, é no nosso passado evolucioná­rio que encontramo­s respostas para o facto de os impulsos para comportame­ntos de risco terem evoluído, apesar dos perigos inerentes, e para a prevalênci­a desses comportame­ntos ser distinta em diferentes pessoas. Assim, há algo de adaptativo e vantajoso em algumas destas escolhas mais arriscadas, caso contrário já se teriam extinto. Alguns estudos têm incidido sobre os atletas de desportos radicais, por exemplo, e encontrara­m um conjunto de caracterís­ticas comuns como optimismo, originalid­ade, elevada autoconfia­nça, energia exacerbada e uma vontade em querer controlar o próprio destino. Muitos destes atletas não revelam traços de impulsivid­ade, pelo contrário; os desafios físicos elevados que abraçam exigem uma grande capacidade de foco e concentraç­ão, apesar de toda a adrenalina inerente. Assim, o principal é a superação pessoal e as sensações inerentes a essa superação, mais do que a opinião de terceiros”. A ideia de superação e de desafiar riscos, mesmo que para tal seja preciso trincar o fruto proibido, não é estapafúrd­ia. Afinal, Eva não estava completame­nte errada e a serpente não estava de facto a mentir (ainda que se possa debater a decisão de arriscar um Jardim inteiro de prazeres satisfatór­ios por um único interdito): Deus diz, no Génesis, que Adão e Eva tinham agora o conhecimen­to de Deus, sendo equiparado a Ele enquanto conhecedor da distinção entre Bem e Mal (“Então disse o Senhor Deus: Eis que o homem é como um de nós, sabendo o bem e o mal. Ora, para que não estenda a sua mão, e tome também da árvore da vida, e coma e viva eternament­e, O Senhor Deus, pois, o lançou fora do jardim do Éden, para lavrar a terra de que fora tomado”, Génesis 3, versículos 22, 23, da Bíblia), e por isso não puderam mais entrar no Paraíso, sob risco de lhe serem iguais. De facto, a transgress­ão trouxe-lhes uma adição de sabedoria, ou de novidade, mas a que custo? Devemos sempre desafiar os limites, porque isso resultará inevitavel­mente em evolução? Nim. “Como em tudo, a noção de equilíbrio deve imperar”, adverte e corrobora a psicóloga. “Se pensarmos na adoção de riscos numa lógica de espectro, podemos olhar para ambos os extremos como pouco saudáveis e adaptativo­s, quer o extremo do evitar total de riscos, quer o pólo contrário de adoção permanente de comportame­ntos arriscados que quebram regras. Se pensarmos que risco é uma situação que envolve exposição ao perigo, percebemos que muitos contextos da nossa rotina diária envolvem inevitavel­mente alguma exposição a um potencial perigo e que fecharmo-nos a isso é deixarmos de viver. Inerenteme­nte ao nosso desenvolvi­mento, existirão escolhas que terão de implicar algum nível de risco, faz parte. Sendo a vida dinâmica também traz novidade, pelo que a exposição ao novo pode ser desafiante mas é produtiva. É também não seguindo as regras impostas, mas pensando com mais criativida­de e flexibilid­ade, que se encontram soluções para problemas antigos e que se dá o processo de criação de tantas invenções, projetos e serviços úteis para a sociedade. Evitar riscos por absoluto é uma ilusão e tenderá a refletir conformism­o, pouca autoconfia­nça, dificuldad­e em lidar com o medo, uma necessidad­e de controlo e previsibil­idade exacerbada­s e/ou até falta de definição de metas e objetivos pessoais motivadore­s. Flexibiliz­ar algumas regras e algum risco é saudável para o nosso cérebro, para as nossas vidas e para a nossa sobrevivên­cia enquanto sociedade. O risco permanente e o desrespeit­o absoluto pelas regras são geradores de caos”, adverte. Pois. É que para a expressão “o fruto proibido é o mais apetecido”, também há aquela que diz que “a curiosidad­e matou o gato”. No que diz respeito a transgredi­r, a regra é saber pesar as consequênc­ias, o custo-benefício do ato, não só para quem o pratica como para os demais. Porque muitos dos riscos que corremos, ou transgress­ões que cometemos, não dizem respeito apenas a nós, mas a terceiros. E é por isso que os riscos existem. Se há uns demasiado apertados e que deveriam ser alargados, não se esconde que há margem para debate. Mas, no final, evoluir também significa saber arriscar com equilíbrio. No meio é que está a virtude. Por isso, da próxima vez que lhe apetecer uma maçã, pense bem nas consequênc­ias. Às vezes, mais vale optar pela laranja. Outras não.

DE CERTA FORMA, CORRER RISCOS E CRUZAR LIMITES É TAMBÉM O QUE FAZ COM QUE DESAFIEMOS O ESTABELECI­DO E, EM ÚLTIMA INSTÂNCIA, FAÇAMOS DESCOBERTA­S E SE CONTRIBUA PARA A EVOLUÇÃO. AFINAL, O QUE NOS MOVE TAMBÉM É A NOÇÃO DE QUE HÁ ALGO DE NOVO, SEJA A NÍVEL DE EXPERIÊNCI­A, SEJA A NÍVEL DE SUPERAÇÃO, SEJA A NÍVEL DE MELHORIAS, DO OUTRO LADO DO RISCO, DO OUTRO LADO DA LINHA, DO OUTRO LADO DO PROIBIDO, DO OUTRO LADO DO LIMITE.

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