A MAÇÃ DE ADÃO
Diz que o fruto proibido é o mais apetecido, mas será que esta vontade do ser humano em testar os limites e ir além do que lhe é permitido é só mesmo uma questão de curiosidade, de desafiar as regras? Ir mais longe é evolução ou é ir longe de mais? E porque é que temos este fascínio por pisar o risco? Talvez tenhamos ficado com a maçã de Adão encravada e, por isso, não descansamos enquanto não a tirarmos do sistema.
Deste tipo de desafios e perigos não espoleta tamanho entusiasmo ou satisfação, pelo que não se revela uma escolha apelativa.”
De acordo com a especialista, “este fenómeno da busca por sensações relaciona-se muito com o sistema límbico dos nossos cérebros, a parte responsável pelas emoções, impulsos básicos e comportamentos instintivos, também conhecido como ‘cérebro emocional’. É neste sistema que encontramos estruturas como: o hipotálamo, que organiza os comportamentos mais importantes ligados à sobrevivência da espécie (luta, alimentação, fuga e reprodução), o hipocampo, uma das áreas mais ancestrais do encéfalo humano e, por isso, decisiva na regulação dos processos básicos da nossa sobrevivência, e a amígdala, cuja principal função é a de integrar as emoções com os padrões de resposta correspondentes a nível fisiológico e comportamental. Assim, o sistema límbico surge associado à regulação de emoções, a respostas de stress e a memória de longo prazo. Sempre que recebemos uma recompensa ou criamos a expectativa de a receber, o sistema límbico liberta dopamina, um dos neurotransmissores geradores de bem-estar, e a insula, uma estrutura que trabalha com o córtex pré-frontal e a amígdala, também é ativada. Essencialmente, as pessoas com uma maior procura por sensações intensas têm uma resposta neuroquímica mais significativa ao prazer, entusiasmo e recompensa, o que as leva a buscar por mais desafios e experiências novas, ignorando ou desvalorizando alguns dos perigos envolvidos”. Ou seja, a ideia, ou concretização, do ir atrás do que não é permitido dá aquele rush de adrenalina que nos alimenta a atração pelo que “não se pode”, sendo que alguns se movem mais por esta sensação do que outros. Mas, de uma maneira geral, todos procuramos esta resposta neuroquímica que nos dá aquela sensação de “estarmos vivos”, mesmo se isso significar abrir mão da segurança – até porque o ser humano não consegue lidar com o aborrecimento (e há pouco ou nada que seja menos aborrecido do que o arrojo em quebrar regras). A nossa principal tarefa na vida é evitar o ócio, afirma o professor de Filosofia Brian O’Connor, da University College Dublin, no seu livro Idleness - A Philosophical Essay, introduzindo a publicação com a ideia de que somos incapazes de viver bem quando não temos nada para fazer e que “acabamos por encontrar formas de ocupar o tempo de modo a não nos aborrecermos”. iz o livro do Génesis, na Bíblia, que a primeira conversa da qual se tem conhecimento entre Deus e Adão foi sobre limites. Deus, que criou primeiro o Homem e depois a Mulher, Eva, disse ao primeiro Homem do mundo que tudo no Jardim do Éden estava ao seu alcance, exceto o fruto da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal e que, se quebrasse a regra, morreria. A perspetiva de um infindável rol de opções, com uma única excepção, pareceu não satisfazer o casal, que comeu do fruto proibido e foi banido do Paraíso. Foi daí que nasceu a expressão, mas a vontade pelo que é marginal chega antes: a propensão por quebrar barreiras chega quando ainda somos crianças (e consolida-se na adolescência), constantemente fascinadas pelo que é novo e desconhecido e, por isso, movidas pela curiosidade inata, ao mesmo tempo que há uma tentação de desafiar a autoridade parental. O não saber e o querer descobrir é também um móbil que nos atrai, desde petizes, ao que não se pode fazer, ao que nos é interdito, seja pela novidade, seja pela sensação que provoca, aquela adrenalina que nos faz sentir vivos. O facto de não haver ainda uma clara noção das consequências e dos perigos também nos torna mais destemidos e arrojados. A vida adulta e a sua rotina e responsabilidades, bem como a noção de perigo e consequências que vão sendo consolidadas ao longo do crescimento, podem provocar alguma cautela e consequente manutenção da distância do que nos faz ou pode fazer mal. Mas a memória e a tentação de nos movermos para terrenos perigosos continua ali, mais ou menos adormecida, mais ou menos intensa, neste ou naquele indivíduo. Os mecanismos fisiológicos que se manifestam perante o risco geram uma adrenalina que se traduz numa sensação que é, ao mesmo tempo, agradável e viciante: “Muitas pessoas sentem um desejo particularmente intenso de se aventurar além dos limites de segurança em busca de experiências prazerosas, novas ou marcantes, que os façam sentir particularmente vivos”, explica, à Vogue, a psicóloga clínica Filipa Jardim da Silva. “É o que se designa por ‘high sensation seeking’, em que a busca por sensações mais intensas se sobrepõe à perceção de riscos físicos, sociais, legais ou financeiros. Frequentemente, estas pessoas percecionam o medo como uma emoção positiva e retiram destes desafios um reforço à sua confiança e valor. Para outras pessoas, ‘low sensation seeking’,
Quer então dizer que somos capazes de tudo para não nos aborrecermos? Não. Até porque, conforme refere Filipa Jardim da Silva, cada um de nós procura atividades com maior ou menor risco – nem todas as formas de combater o aborrecimento passam pela ilegalidade ou pelo questionamento do status quo. Significa, no entanto, que o fruto proibido é o mais apetecido, mas apenas para alguns, e que traços como a personalidade e a satisfação final de cada experiência ditam uma maior ou menor propensão para o interdito. Características como a idade e o género podem influenciar essa tendência, refere a psicóloga: “Vários fatores tenderão a influenciar o nível de desafio às regras, desde os ligados à química cerebral, género e traços de personalidade, até à educação, grupo de pares e experiências de vida”, começa por contextualizar Filipa. “O género é um fator a considerar na adoção de riscos. Existem exceções, naturalmente, mas, em geral, o género masculino tende a correr mais riscos do que o género feminino, ou pelo menos, riscos diferentes. Para além dos fatores sociais e culturais, há também uma base biológica que, em parte, impulsiona a diferença entre os sexos. Recai sobre os homens a expectativa de adotarem comportamentos de ousadia e força, que tendem a aumentar de prevalência se estiverem a ser observados, quer por pares quer pelo género oposto. Assim, o género masculino tende a assumir mais riscos recreativos e financeiros. Tal não significa que as mulheres não assumam riscos,“ressalva. “De acordo com alguns estudos, as mulheres tendem a assumir mais riscos sociais do que os homens. É mais provável, por isso, que mudem de carreira mais tarde ou expressem opiniões menos consensuais em reuniões de trabalho. São riscos diferentes, como vemos.
A par do género, a idade é outra variável a considerar. Os adolescentes e jovens adultos são mais propensos a correr riscos do que qualquer outro grupo etário, adotando mais vezes comportamentos como condução perigosa, ingestão excessiva de álcool, uso de drogas e comportamento sexual de risco. Apesar de a investigação nesta área ter demonstrado que os adolescentes são tão bons quanto os adultos na avaliação de risco numa ampla gama de comportamentos perigosos, percebeu-se também que no cérebro dos adolescentes a expansão inicial da substância cinzenta significa que os caminhos neurais são mais abundantes, o que torna os jovens mais abertos a experiências e mais dispostos a experimentar e a aprender coisas novas do que os adultos em geral. Este facto por si só pode ter uma componente positiva. Todavia, conjugado com o facto de a pressão dos pares ativar certos sinais cerebrais ligados ao centro de recompensa, os adolescentes tendem a concentrar-se e a valorizar mais o seu grupo etário de referência em situações de tomada de decisão do que nos adultos à sua volta. Uma outra variável que ajuda a compreender a maior prevalência de comportamentos de risco em jovens adolescentes, passa pela maior ativação emocional em situações de exclusão social. Os adolescentes têm mais dificuldade em mobilizar uma região do cérebro (córtex pré-frontal ventrolateral direito) que ajuda a lidar com a avaliação negativa de outros e a regular o nível de sofrimento, uma vez que durante a adolescência essa região cerebral ainda está em desenvolvimento. Assim, compreende-se a tentação de aderir a comportamentos de risco como forma de evitar uma exclusão ou gozo por parte dos pares” aponta a especialista. É tudo uma questão de auto-controlo. Ou falta (propositada ou não) dele. Aliás, há testes cognitivos que não apontam apenas a nossa inteligência geral, mas também a
risk inteligence, uma forma de nomear ou, de certa forma, qualificar ou quantificar a predisposição de cada um para correr riscos. “Podemos aceder a informação em testes cognitivos e testes de personalidade que nos ajudam a quantificar a apetência individual para correr riscos. O que tem surgido em alguma investigação que gostaria de destacar é uma correlação entre a apetência para se correr riscos e o nível de inteligência. Tem-se descoberto que os jovens adultos que habitualmente correm mais riscos, e que por isso são mais ativos, sempre em busca de desafios e em permanente aprendizagem, tendem a ter um cérebro com uma rede neuronal maior, o que se traduz em competências cognitivas mais desenvolvidas como tomada de decisão, resolução de problemas e flexibilização de pensamento.”
De certa forma, correr riscos e cruzar limites é também o que faz com que desafiemos o estabelecido e, em última instância, façamos descobertas e se contribua para a evolução. Afinal, o que nos move também é a noção de que há algo de novo, seja a nível de experiência, seja a nível de superação, seja a nível de melhorias, do outro lado do risco, do outro lado da linha, do outro lado do proibido, do outro lado do limite. A verdade é que Eva, e depois Adão, não trincaram o fruto proibido aleatoriamente ou só porque sim: fizeram-no por promessas de novos horizontes, de um conhecimento mais alargado, de uma aproximação divina. Porque se o fizessem, dizia a sedutora serpente – i.e., Satã disfarçado – seriam como Deus. Foi a perspectiva de algo maior, de uma vontade de se melhorarem, de evoluírem, que os levou a comer da árvore do Conhecimento (ainda que, em última instância, o tenham feito sem terem pesado os danos
colaterais…). O que não deixa de ser uma boa metáfora para este fascínio por pisar o risco – não o fazemos simplesmente porque não podemos; fazêmo-lo na esperança ou na crença que fazê-lo nos trará recompensas, acreditando que o que está do outro lado é algo de evolução. “Diversa investigação tem evidenciado que, no que diz respeito aos comportamentos de procura de risco e desafio de limites, a química cerebral desempenha um papel significativo. De certa forma, fatores como o nível de motivação e entusiasmo pelo desconhecido, a perceção de perigo, o grau de autocontrolo e a necessidade de se desafiar determinam a adoção de mais ou menos comportamentos/escolhas de risco. O género e a definição pessoal de ousadia também interferem”, afirma Filipa Jardim da Silva. “Como na maioria dos aspetos do nosso comportamento, é no nosso passado evolucionário que encontramos respostas para o facto de os impulsos para comportamentos de risco terem evoluído, apesar dos perigos inerentes, e para a prevalência desses comportamentos ser distinta em diferentes pessoas. Assim, há algo de adaptativo e vantajoso em algumas destas escolhas mais arriscadas, caso contrário já se teriam extinto. Alguns estudos têm incidido sobre os atletas de desportos radicais, por exemplo, e encontraram um conjunto de características comuns como optimismo, originalidade, elevada autoconfiança, energia exacerbada e uma vontade em querer controlar o próprio destino. Muitos destes atletas não revelam traços de impulsividade, pelo contrário; os desafios físicos elevados que abraçam exigem uma grande capacidade de foco e concentração, apesar de toda a adrenalina inerente. Assim, o principal é a superação pessoal e as sensações inerentes a essa superação, mais do que a opinião de terceiros”. A ideia de superação e de desafiar riscos, mesmo que para tal seja preciso trincar o fruto proibido, não é estapafúrdia. Afinal, Eva não estava completamente errada e a serpente não estava de facto a mentir (ainda que se possa debater a decisão de arriscar um Jardim inteiro de prazeres satisfatórios por um único interdito): Deus diz, no Génesis, que Adão e Eva tinham agora o conhecimento de Deus, sendo equiparado a Ele enquanto conhecedor da distinção entre Bem e Mal (“Então disse o Senhor Deus: Eis que o homem é como um de nós, sabendo o bem e o mal. Ora, para que não estenda a sua mão, e tome também da árvore da vida, e coma e viva eternamente, O Senhor Deus, pois, o lançou fora do jardim do Éden, para lavrar a terra de que fora tomado”, Génesis 3, versículos 22, 23, da Bíblia), e por isso não puderam mais entrar no Paraíso, sob risco de lhe serem iguais. De facto, a transgressão trouxe-lhes uma adição de sabedoria, ou de novidade, mas a que custo? Devemos sempre desafiar os limites, porque isso resultará inevitavelmente em evolução? Nim. “Como em tudo, a noção de equilíbrio deve imperar”, adverte e corrobora a psicóloga. “Se pensarmos na adoção de riscos numa lógica de espectro, podemos olhar para ambos os extremos como pouco saudáveis e adaptativos, quer o extremo do evitar total de riscos, quer o pólo contrário de adoção permanente de comportamentos arriscados que quebram regras. Se pensarmos que risco é uma situação que envolve exposição ao perigo, percebemos que muitos contextos da nossa rotina diária envolvem inevitavelmente alguma exposição a um potencial perigo e que fecharmo-nos a isso é deixarmos de viver. Inerentemente ao nosso desenvolvimento, existirão escolhas que terão de implicar algum nível de risco, faz parte. Sendo a vida dinâmica também traz novidade, pelo que a exposição ao novo pode ser desafiante mas é produtiva. É também não seguindo as regras impostas, mas pensando com mais criatividade e flexibilidade, que se encontram soluções para problemas antigos e que se dá o processo de criação de tantas invenções, projetos e serviços úteis para a sociedade. Evitar riscos por absoluto é uma ilusão e tenderá a refletir conformismo, pouca autoconfiança, dificuldade em lidar com o medo, uma necessidade de controlo e previsibilidade exacerbadas e/ou até falta de definição de metas e objetivos pessoais motivadores. Flexibilizar algumas regras e algum risco é saudável para o nosso cérebro, para as nossas vidas e para a nossa sobrevivência enquanto sociedade. O risco permanente e o desrespeito absoluto pelas regras são geradores de caos”, adverte. Pois. É que para a expressão “o fruto proibido é o mais apetecido”, também há aquela que diz que “a curiosidade matou o gato”. No que diz respeito a transgredir, a regra é saber pesar as consequências, o custo-benefício do ato, não só para quem o pratica como para os demais. Porque muitos dos riscos que corremos, ou transgressões que cometemos, não dizem respeito apenas a nós, mas a terceiros. E é por isso que os riscos existem. Se há uns demasiado apertados e que deveriam ser alargados, não se esconde que há margem para debate. Mas, no final, evoluir também significa saber arriscar com equilíbrio. No meio é que está a virtude. Por isso, da próxima vez que lhe apetecer uma maçã, pense bem nas consequências. Às vezes, mais vale optar pela laranja. Outras não.
DE CERTA FORMA, CORRER RISCOS E CRUZAR LIMITES É TAMBÉM O QUE FAZ COM QUE DESAFIEMOS O ESTABELECIDO E, EM ÚLTIMA INSTÂNCIA, FAÇAMOS DESCOBERTAS E SE CONTRIBUA PARA A EVOLUÇÃO. AFINAL, O QUE NOS MOVE TAMBÉM É A NOÇÃO DE QUE HÁ ALGO DE NOVO, SEJA A NÍVEL DE EXPERIÊNCIA, SEJA A NÍVEL DE SUPERAÇÃO, SEJA A NÍVEL DE MELHORIAS, DO OUTRO LADO DO RISCO, DO OUTRO LADO DA LINHA, DO OUTRO LADO DO PROIBIDO, DO OUTRO LADO DO LIMITE.