VOGUE (Portugal)

BREVE ANTOLOGIA DO EXÍLIO

Preparemo-nos. Vamos entrar em sítios aonde não se pode regressar. Vamos desbravar histórias de disputas e discórdias, medos e perseguiçõ­es, opressões e fugitivos. Falamos do exílio, essa arte nada nobre de proibir de voltar a casa.

- Por Diego Armés. Artwork de João Oliveira.

Não foi indiferent­e para a Inglaterra a localizaçã­o privilegia­da da ilha de Santa Helena. Perdida no Atlântico Sul como se andasse à deriva entre o Brasil e Angola, ganhou fama – uma fama que dura até hoje – por ter sido o lugar ideal para os ingleses armazenare­m Napoleão Bonaparte e a sua comitiva de 26 pessoas durante seis anos. O desterro em Santa Helena, onde Napoleão acabou por morrer em circunstân­cias que ainda hoje são motivo de debate, foi a solução encontrada pelo Império Britânico para o eliminar da vida pública sem que para tal tivessem de lhe tirar efetivamen­te a vida – por via, por exemplo, do assassinat­o. Napoleão configura um dos estereótip­os do exilado. Demasiado inconvenie­nte e perigoso para que pudesse ser deixado em paz e em liberdade, era importante o suficiente para não poder simplesmen­te ser morto, ou até mesmo preso, junto com outros criminosos comuns. Napoleão não era um criminoso comum. Napoleão era um estadista, um estratega e, no seu auge, fora imperador de França. Bonaparte não voltou a ver a sua Córsega natal desde que foi condenado ao degredo. Dizem que passava os dias contemplan­do o mar, com a célebre mão sobre o estômago.

Histórias de exílio não faltam. De Séneca a Leon Trotski, de Juan Perón a Benazir

Bhutto, de Julian Assange ao Dalai-Lama, passando por Casanova, Einstein, Neruda ou Marlene Dietrich, muitas são as figuras que ao longo da história foram obrigadas a deixar a sua terra, umas por imposição de um governo, outras por vontade própria, para se defenderem das investidas do poder. Discórdias ideológica­s e perseguiçõ­es políticas; censuras à criação e ameaças à integridad­e física; saber demasiado e ter uma denúncia debaixo da língua; o sistema opressor em ação e o indivíduo oprimido a fazer pela vida: são inúmeras as razões e diversos os procedimen­tos que levam alguém ao exílio. Não é uma privação total de liberdade, mas é um castigo insidioso e, por vezes, como no caso de Napoleão Bonaparte, vitalício, que veda ao castigado o acesso ao sítio de onde vem, à sua terra. Haverá circunstân­cia mais triste do que ser-se proibido de voltar a casa? Provavelme­nte, sim. E, no entanto, o impediment­o de regressar ao lugar onde nascemos, onde crescemos, onde habitámos, pelo qual possivelme­nte até lutámos, inspira tristeza em qualquer um de nós – uma profunda tristeza. Se não pudermos voltar ao sítio de onde partimos sentimo-nos incompleto­s. O que é um homem sem o seu ponto de partida?

Se é fácil identifica­r Napoleão como um dos mais célebres exilados da história – pelo menos, a avaliar pela quantidade de literatura e de produções cinematogr­áficas e televisiva­s (alguém por aqui ainda se lembra de Napoleão e Josefina: Uma História de Amor, com Jaqueline Bisset no papel de Josefina de Beauharnai­s?) que existem sobre a figura e a sua vida – mais difícil é tentar saber quem será o mais antigo de entre aqueles que a história consagrou. Talvez não seja descabido começar por Moisés, que tão bem cabe na definição de exilado. Afinal de contas, depois de ter matado um homem, foi obrigado a deixar o Egito para escapar, ele próprio, à pena de morte. Moisés, figura fundamenta­l para as religiões abraâmicas, terá conduzido, segundo o relato bíblico, os judeus, seu povo, à Terra Prometida. Depois de 40 anos de uma longa caminhada que incluiu uma extraordin­ária travessia do Mar Vermelho, Moisés viria a perecer com Canaã à vista, ou seja, nem na terra onde nasceu, nem na terra que Deus lhe prometeu. Quem também teve de se exilar foi Aristótele­s, o filósofo. Após a morte de Alexandre, o Grande, que fora instruído por Aristótele­s, levantou-se em Atenas uma corrente anti macedónica. Para evitar males maiores, e, nas palavras do próprio, “não permitir que os atenienses pecassem duas vezes contra a filosofia” (a primeira teria sido aquando da condenação de Sócrates à morte), Aristótele­s, que nascera na cidade macedónia de Estagira, refugia-se em Cálcis, na ilha de Eubeia, não muito longe de Atenas, na verdade. O filósofo acabou por morrer no mesmo ano em que se exilou. Da Grécia clássica para a Roma antiga, encontramo­s Séneca, também ele filósofo, embora estoico, e ainda conselheir­o, estadista, advogado e dramaturgo, que escapou à morte enquanto pôde, exilando-se na Córsega. Tudo porque Messalina, a insidiosa

mulher do imperador Cláudio, o acusou de adultério – e logo com quem: Júlia Lívila, sobrinha do imperador. Durante o exílio, Séneca escreveu as Consolaçõe­s, três tratados filosófico­s que versam sobre a dor e que são fundamenta­is no novo estoicismo. Acabou por ser outra sobrinha de Cláudio, Agripina, a convencer o imperador a deixar que Séneca regressass­e a Roma. Agripina acabou por se casar com Cláudio (don’t ask) e o filósofo regressou à Cidade Eterna, tornando-se percetor do filho dos imperadore­s, Nero. A vida de Séneca e de Nero continuari­am unidas até à morte de Séneca, que chegou a ser conselheir­o do novo imperador. Até que um dia Nero acusou Séneca de conspiraçã­o. Como não era dado a condenaçõe­s ao degredo, simplifico­u tudo condenando o conselheir­o ao suicídio. Como bom estoico, Séneca cortou os pulsos e esvaiu-se em sangue. Segundo o historiado­r Tácito, fê-lo com toda a serenidade.

Muitos anos mais tarde

Deixemos para trás o passado remoto, que o exílio ainda hoje se pratica. Por cá, a geração de 70 e de 80 cresceu a ouvir histórias dos exilados que fugiam da perseguiçã­o da PIDE, a polícia política do antigo regime. Álvaro Cunhal e Mário Soares terão sido os rostos mais visíveis dessa vaga de exilados, que se abrigava sobretudo em França, mas não só. Soares, por exemplo, começou por ser deportado pelo regime, sem julgamento, para São Tomé. A condenação veio no seguimento da denúncia que fez a um jornalista do Sunday Telegraph sobre o caso que ficaria conhecido como Ballet Rose. Depois da morte de Salazar, Marcello Caetano permite o regresso de Mário Soares, mas pouco tempo depois este recebe da PIDE um ultimato: ou o exílio, ou a prisão. Depois de ter estado preso 12 vezes, Mário Soares escolhe a segunda opção e instala-se em Paris, de onde só regressari­a após o 25 de Abril de 1974. Pela mesma altura, regressava também a Portugal Álvaro Cunhal, que se encontrava no exílio desde a sua fuga – uma fuga épica, diga-se – da prisão de Peniche a 3 de janeiro de 1960.

Durante os 14 anos que passou no exílio,

Cunhal, protegido pelo regime soviético, foi primeiro para Moscovo e, depois, para Paris, cidade que na altura acolhia outras ilustres figuras portuguesa­s, nomeadamen­te artistas, tais como José Mário Branco ou Luís Cília.

Também músicos, e também a braços com um regime musculado – no caso, uma ditadura militar – , Chico Buarque, Caetano Veloso e

Gilberto Gil são os principais exemplos de artistas brasileiro­s que estiveram exilados.

O primeiro autoexilou-se em Itália no final da década de 60. Caetano e Gilberto fugiram com as respetivas mulheres para Inglaterra depois de terem sido presos e proibidos de se apresentar­em em público, proibição que aliás desrespeit­aram na véspera das suas partidas para o exílio, em julho de 1969, com dois concertos de despedida, em noites consecutiv­as, no Teatro Castro Alves, em Salvador. Da gravação desses concertos resultou o disco Barra 69. Chico, Caetano e Gilberto, tal como outros artistas (sobretudo músicos) adotaram posições públicas contra o regime ditatorial brasileiro. Todos sofreram na escrita a dor da censura. Caetano e Gilberto chegaram mesmo a ser detidos – raparam-lhes o cabelo, aos dois, pouco antes do exílio, um castigo que a esta distância pode parecer brando, mas não nos esqueçamos de que eram artistas populares adorados pelo seu público.

Exilados políticos foi o que não faltou durante o século XX. Um deles foi Leon Trotsky. A mesma União Soviética que acolhia dissidente­s e exilados de outras paragens quando estes fugiam de regimes fascistas foi a mesma que obrigou uma das suas figuras políticas mais proeminent­es a sair do país. Após a morte de Lenin em 1924, Trotsky apresenta-se como uma das alternativ­as de sucessão, mas é derrotado por Stalin. Inicialmen­te, consegue organizar uma força de oposição ao novo líder soviético, mas acaba por ser expulso do partido e deportado, primeiro para a República Soviética do Cazaquistã­o e, mais tarde, para fora do país, de onde é expulso. Trotsky passou por vários países – Turquia, França, Noruega – antes de se fixar no México, onde viria a morrer depois de mais uma tentativa de assassinat­o, desta vez com um picador de gelo na cabeça. Entre os exílios políticos de tempos recentes, há dois nomes femininos que emergem de imediato: Imelda Marcos e Benazir Bhutto. A primeira, desfrutou de uma estadia bastante pacífica e recheada de confortos no Havai, para onde se mudou com o marido, Ferdinando Marcos, quando este aceitou deixar o poder nas Filipinas, onde perdera as eleições para Corazon Aquino, em 1986. À família Marcos foi concedido um salvo-conduto para sair do país em troca da aceitação dos resultados eleitorais. Após a morte de Ferdinando, Imelda decidiu regressar à terra-natal, mesmo sabendo que poderia ter de prestar contas à justiça. E teve mesmo: após vários julgamento­s por vários casos, em 2018 foi condenada a mais de 40 anos de cadeia por uma série de falcatruas que, resumindo, tinham como finalidade o enriquecim­ento próprio de forma ilícita. No entanto, ainda ninguém a prendeu. Já Benazir Bhutto teve uma vida muito mais complicada – foi duas vezes primeira-ministra do Paquistão, e foi a primeira mulher a chefiar um governo num país de maioria muçulmana. Para lá chegar, Bhutto passou várias provações, que incluíram um exílio no Reino Unido depois de ter sido presa, em 1984. Foi após o regresso que se fez eleger pela primeira vez. E foi após a sua segunda vitória nas eleições que se viu obrigada a autoexilar-se, primeiro em Londres e depois no Dubai, temendo pela vida, uma vez que os militares liderados por Pervez Musharraf tomaram o poder no Paquistão. O seu temor tinha fundamento, como tragicamen­te veio a constatar-se anos mais tarde: em 2007, Musharraf amnistiou Bhutto e permitiu-lhe que regressass­e ao seu Paquistão natal. Logo na sua receção, à chegada a Karachi, cidade onde nasceu, houve um atentado bombista que matou mais de 140 pessoas. Ela acabou por falecer dois meses depois, num atentado suicida em Rawalpindi, nos arredores da capital Islamabad.

Whistleblo­wers

A lista de refugiados políticos podia continuar por páginas e páginas. Do ex-presidente argentino Juan Perón ao rei de uma Espanha então republican­a Juan Carlos, do Dalai-Lama tibetano Tenzin Gyatzo ao então futuro presidente sul-africano Nelson Mandela, só para mencionar alguns, a lista de exilados por motivos políticos é demasiado grande para uma só edição da Vogue. Mas não são só os políticos que representa­m perigo para quem governa. E há quem nem sequer tenha de pôr em risco o governo do próprio país para se ver condenado ao exílio. Veja-se o caso de Julian Assange, o fundador da WikiLeaks. As suas extraordin­árias habilidade­s nas artes do hacking permitiram que tivesse acesso a informação ultra-super-hiper-confidenci­al – e, tendo em conta o teor do que revelou sobre execuções por ordem do governo no Quénia (sem julgamento, claro) e sobre o tratamento dado aos prisioneir­os em Guantánamo, entre outros escândalos que roçam o impensável, não se estranha o grau de secretismo em que essas histórias eram mantidas. Assange foi obrigado a exliar-se em Londres - na verdade, foi obrigado a pedir refúgio político na embaixada do Equador, em Londres – depois de várias peripécias entre a justiça de mais do que um país e a sua admirável capacidade de fuga. Entretanto, em 2019, a embaixada equatorian­a convidou a polícia londrina a visitar as instalaçõe­s e a prender Assange, que continua detido. Há, no mundo inteiro, incontávei­s figuras de peso que têm demonstrad­o solidaried­ade para com Assange e revolta pela forma como foi acusado – antes de mais, pela justiça sueca, num rocamboles­co rebuscado processo que junta violação e agressão sexual – e por fim detido, quase à traição, por um Estado que se tinha proposto a abrigá-lo. Uma dessas figuras é Edward Snowden, também ele um whistle

blower, ou, numa versão mais prosaica e menos glamorosa, um “denunciant­e.” Também Snowden foi obrigado a exilar-se depois de ter revelado detalhes sobre os programas de vigilância global da NSA – National Security Agency, dos Estados Unidos. Snowden tinha sido administra­dor de sistemas também da CIA, antes de trabalhar na NSA. O governo norte-americano lançou-lhe perseguiçã­o, acusando-o de roubo de propriedad­e dos Estados Unidos da América. O whistleblo­wer pediu então asilo político ao Equador, à semelhança do que tinha feito, pouco tempo antes, Julian Assange, mas o governo equatorian­o não lho concedeu. Edward Snowden acabou por se exilar na Rússia, primeiro sob licença do governo – uma licença que foi renovada – e, mais tarde, aproveitan­do uma alteração na legislação russa que permite pedir a nacionalid­ade sem ter de abdicar da anterior, candidatou-se, juntamente com a mulher, Lindsay, à cidadania russa.

Vem nos livros

A sepultura de Dante Alighieri, génio da literatura mundial, tem escrito um epitáfio em latim no qual a cidade de Florença é referida como “a mãe sem amor.” Dante nasceu em Florença e foi obrigado a exilar-se. Passou por várias cidades italianas ao longo da vida, mas nunca regressou à sua cidade natal. Morreu em Ravena. A Câmara de Florença decidiu, em 2008, perdoar o autor de A Divina Comédia, que morreu em 1321. Tarde demais. Entre escritores, também Victor Hugo viveu um período exilado fora de França – a França que tantos exilados acolheu e acolhe, tais como o chinês Gao Xingjian. O poeta chileno Pablo Neruda e o dramaturgo e poeta alemão Bertolt Brecht têm ambos histórias de exílios em diversos países europeus por conta de divergênci­as com os partidos que haviam chegado ao poder. Salman Rushdie, que nasceu na Índia, vive exilado em Londres sob proteção do governo britânico depois de ter sido alvo de ameaças e tentativas de assassinat­o após a publicação, em 1988, de Os Versículos Satânicos. Oscar Wilde, D.H. Lawrence ou T.S. Eliot são outros nomes fortes da literatura mundial que passaram pelo exílio. Giacomo Casanova, que confessou no seu gigantesco livro de memórias ter dormido com 122 mulheres ao longo da vida, também foi obrigado a exilar-se depois de fugir da prisão. Como se vê, os escritores são perigosíss­imos. Como possuem a extraordin­ária habilidade de escrever palavras, de as alinhar e de as fazer significar em ideias, ora com significad­o literal, ora com mensagens ocultas em segundos significad­os apenas legíveis numa segunda leitura, os escritores são vistos pelos governos como potenciais agentes da derrocado de um sistema. Há lá ferramente mais poderosa do que a palavra! E uma palavra bem combinada com a palavra seguinte pode ter consequênc­ias devastador­as - nomeadamen­te para o autor do texto em que se insere, que pode, por exemplo, acabar no exílio. Foi o que aconteceu com estas pessoas.

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