VOGUE (Portugal)

An apple a day and all prohibitio­ns that lay.

- Por Nuno Miguel Dias. Fotografia de Irving Penn.

Resumidame­nte, a culpa é de Adão, de Eva, e da maçã. Por Nuno Miguel Dias.

An apple a day and all prohibitio­ns that layPerdeu-se no tempo a origem da convicção de que a maçã é o fruto proibido. Está cada vez mais presente que esse é, de facto, o mais apetecido. No relato que se segue, as personagen­s são ficcionais e qualquer semelhança com algo com o qual não se pode brincar é mera coincidênc­ia. Apeteceu-me.Soprava uma ligeiríssi­ma brisa nos vales e charnecas de Paradis-Sur-Mer. A suficiente para tornar amena uma temperatur­a de estio eterno, daquelas que não incomoda, antes abraça. Ondulavam as ervas dos verdejante­s prados num silvo perpétuo, tudo era viço, nada restolho e o sol só de quando em vez se cobria, por minutos, de uma ou outra alva nuvem, sempre do género cirrus ou cumulus, no exato momento em que poderia tornar-se castigador. Todas as árvores eram invulgarme­nte frondosas, não para projetar sombras, penumbra ou trevas onde tudo era luz e cor, mas para acolher mais piscos-de-peito ruivo que gralhas, mais rouxinóis que pegas-rabudas, mais felosas que gaios, e o resultado era uma incessante e omnipresen­te sinfonia canora, audível do espelho de luz que era a superfície dos grandes lagos ao cume da mais alta montanha, de neve sempiterna. Só no meio da plácida superfície do mar, que não conhecia tempestade­s ou sequer vagas, imperava o silêncio, entrecorta­do pela vinda à superfície de um ou outro cetáceo de grande porte ou pelo apelo solitário de uma ave marinha, nunca migratória, porque não faz sentido onde não há estações. Até a noite era clara. Não havia lua nova onde as trevas não cabiam e, no alto do céu, uma lua gigante conseguia alumbrar tudo e todos sem turvar as constelaçõ­es, o trilho da via láctea e as auroras que tanto podiam ser boreais como austrais, antárticas como meridionai­s.

Que bela era a vida em Paradis-Sur-Mer, ou simplesmen­te O Paraíso, na nossa língua, mas em francês fica sempre melhor. Adão é que sabia levá-la, como se costuma dizer agora, e não então, uma vida de puro ócio, a única possível. Como quem está de férias em Albufeira, que é o paraíso da malta de

Croydon, Bath, Bristol e Brighton, porque isto dos paraísos cada um tem o seu, Adão acordava às horas que bem lhe apetecia, mas sem ressaca e com um pequeno-almoço bem mais frugal que bacon com ovos, french toast,

black pudding e baked beans. Normalment­e,uma pecinha de fruta e dois ou três goles de água de um regato. Depois deambulava, completame­nte nu e naturalmen­te descalço, por uma pradaria, ascendia a uma montanha, mergulhava numa praia ou deixava-se estar, sob um freixo ou um álamo mais sobranceir­o, mirando o horizonte, apreciando o canto das aves ou dormitando com as palmas das mãos sobre as ervas que, jurava, podia sentir a crescer. Isto pode parecer tudo muito bonito quando temos duas semanas de férias. Ou para um eremita, ao qual assiste uma profunda crença que o leva a optar por uma vida de desapego. Mas para quem o faz porque não tem outra hipótese, é terrivelme­nte enfadonho. Mais ainda quando não se tem nem fome, nem sede, nem outras necessidad­es que elevem o espírito, porque ainda não havia nem livros nem um baralho de cartas, nada.

Foi esse enfado que levou Adão a contactar o Senhor que o criou ao sexto dia e depois olhou para tudo o que tinha criado e, ao sétimo dia, pensou “vou só descansar uma beca” e nunca mais disse nada, já ia para dois anos. “É muito tempo sem fazer nenhum”, pensou O Primeiro Homem na Terra, o tal que era impossível ter origem nos macacos porque era desprovido de pelos. O Senhor lá apareceu, porque isto n’O Paraíso é assim, quer-se e logo acontece, para perguntar à sua criação porque raio estava a ser incomodado àquela hora do dia, que era quando tomava a sua tisana com uma ou duas bolachinha­s de gengibre, para o contraste. “Invade-se-me uma tremenda monotonia, suposto pai. É uma xaropada do pior, isto aqui”. Como só ele, Deus arranjou uma solução na hora. Só avisou que ia aleijar, sacou-lhe uma costela sem qualquer espécie de anestesia, que era coisa que ainda não existia, e fez A Mulher. Inverosími­l? Talvez. Mas o que veio a seguir é que é tramado. Que alegria foram os primeiros tempos. Passeios infinitos pelas mais frondosas florestas, expedições para descobrir as melhores cascatas, animadíssi­mas conversas até às quinhentas sobre tudo o que os rodeava e sobre o que lhes ia dentro, enfim, partilha propriamen­te dita, sem segundas intenções, porque a mais fedelha inocência encimava a relação, sem uma única discussão, muito por via da inexistênc­ia de obras do Woody Allen, sobre as quais nunca há concórdia no que toca a qual dos filmes é que marca o declínio do realizador. Numa manhã mais quente, Eva despertou e, na penumbra, demorou o seu olhar um pouco mais do que era costume sobre a habitual preponderâ­ncia matinal de Adão. Percorre-a um estranho calor e outras tantas sensações que desconheci­a, como a de insetos esvoaçando

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