VOGUE (Portugal)

Sociedade Unipessoal Limitada.

- Por Sara Andrade.

Porque é que impomos tantos limites a nós próprios?

Limitada. Limitada mesmo. Limitada acima de tudo sem nos aperceberm­os. Limitada por nós próprios. No que diz respeito a viver, não sabemos fazê-lo sem nos contermos. Sem nos restringir­mos. Até onde vão as fronteiras do eu e porque é que temos receio de as cruzar?

São sei o que foi o meu almoço de ontem, mas sei exatamente como o decidi. Foi um compromiss­o entre tudo aquilo que me apetecia, em termos de indulgênci­a, e tudo aquilo que sabia que devia comer, e me fazia bem à saúde/corpo/mente.

Um meio caminho entre a salada e a pizza. Uma concessão entre o saudável e o desejo. Com hidratos de carbono q.b., mas outros tantos legumes e proteínas para compensar. Já nem penso nisso quando tomo a decisão: a análise é automática desde que me lembro. Umas vezes a tender para o açúcar, outras tende para as vitaminas, mas quase sempre inclui restrições. Isto é mau?

Não necessaria­mente. No entanto, isso levou-me a pensar que outras limitações inadvertid­as nos colocamos a nós mesmas.

Principalm­ente enquanto mulheres. Isto acontece com todas nós?

No campo da beleza, essas restrições são notórias para o género feminino: hoje em dia, desistimos dos hidratos porque se transforma­m em gordura; deixamos de comer leguminosa­s porque incham; evitamos o chocolate porque faz borbulhas; controlamo­s o álcool porque causa falhas de memória e provoca más decisões; abolimos o branco, porque é unforgivin­g, por isso só optamos pelo preto no guarda-roupa do dia a dia, mesmo em temperatur­as de 40 graus; o abacate, esse, só de manhã, e se estiver a vestir uma camisola azul, caso contrário, dá comichão e outras tantas coisas que ouvimos e nos convencemo­s que são verdadeira­s... Aprendemos uma série de regras – leia-se, limites – para podermos preservar aquilo que correspond­e à ideia da sociedade do que devemos ser ou parecer e já nem nos apercebemo­s que nos privamos de um rol, imenso, de experiênci­as. Atenção, não se entenda aqui a privação como algo nefasto – as privações e os limites têm um propósito e muitas vezes impedem-nos de fazer algo que resultaria em consequênc­ias muito mais nefastas do que a própria privação: quando uma pessoa evita fumar mais um cigarro ou decide conter-se a abrir mais um pacote de batatas fritas, pode estar a dizer não a um prazer momentâneo, e sim a benefícios a longo prazo. Porque a privação não é necessaria­mente má: não me arrependo dos dias em que não pedi sobremesa, porque seria um reflexo apenas de um vício e o meu bem-estar agradeceu. Mas arrependo-me dos dias em que não o fiz e era tudo o que precisava.

A questão que importa aqui relevar é que algumas (muitas? todas?) decisões que tomamos estão sempre condiciona­das pelo exterior, embora seja no interior que lhe damos uma carga mais ou menos prepondera­nte. Eu posso deixar influencia­r-me mais ou menos pelas imagens que os media, principalm­ente as redes sociais, me oferecem. Eu posso sentir-me abaixo ou acima de algo ou alguém, por causa do que quer que seja que a minha aprendizag­em me incutiu no cérebro. Ou evitar situações ou experiênci­as por receio de um mau julgamento dos demais. Por exemplo, fazer uma tatuagem ou um piercing porque isso é de gente de má rés. Não usar minissaia com 40 ou 50 anos porque não é próprio da idade – se eu não usar minissaia, tenha a idade que tiver, que seja porque não gosto do estilo ou de me ver com ela, nada mais. Ou não comer um hambúrguer num date porque as meninas pedem é alface – confesso: os meus rendez-vous normalment­e envolvem quantidade­s copiosas de sushi ou de pizza ou de hambúrguer­es. Mas por norma não incluem sobremesa porque… equilíbrio. Eu não quero fazer tudo o que me apetece, porque sei que as minhas

restrições e limites são como o anjo e o demónio, os meus conselheir­os, o meu grilo falante, a minha consciênci­a. Só gostava de, de vez em quando, não passar tanto tempo a discutir calorias e a analisar informaçõe­s nutriciona­is que aprendi a saber quase de cor.

Mas de todas as restrições que coloco a mim mesma, ou melhor, que colocamos a nós mesmas, estas, ainda que importante fonte de reflexão, serão as mais triviais. É verdade que somos subjugadas a esta ideia de um corpo perfeito que nos foi imposta pela sociedade, e que parece que estamos numa missão sem pit stop para o atingir e correspond­er a expectativ­as, mas, em última instância, desde que de um modo temperado, são limites que também nos ajudam a manter algum

wellness e bem-estar. Se eu comesse tudo o que queria, provavelme­nte teria sérios problemas de peso e colesterol – porque há limites que estão lá para prevenir vícios, não para impedir uma vivência plena. Contudo, também há limites que nos impomos a nós mesmas enquanto mulheres que são tão intrínseco­s às nossas crenças e que nem nos passa pela cabeça assumi-los como barreiras. Aceitamo-los em prol de um bem maior, sem questionar que são limitações ou fronteiras à nossa liberdade. Há ideias que temos e atitudes que adotamos de uma forma tão inata que nem as aceitamos como restrições. A três de março deste ano, Sarah Everard, uma

marketing executive de 33 anos, saiu da casa de um amigo deviam ser nove da noite para regressar a casa – um percurso não muito longo para se fazer a pé. A jovem nunca chegou ao destino. O seu corpo foi encontrado cerca de uma semana depois. Como o de Sarah, deve haver tantos outros casos menos mediáticos de situações similares a preencher um rol de relatórios da polícia, mas o de Everard espoletou uma consciênci­a global como nunca outro o tinha feito: porque é que não é seguro para as mulheres andarem numa cidade movimentad­a a horas não muito tardias? E porque é que aprendemos a viver com isso sem questionar? É normal que evitemos bairros problemáti­cos, sejamos homens ou mulheres, mas, no caso do género feminino, o cuidado é redobrado. Desde que me lembro que tenho noção da minha condição quando estou em situações em que me vejo sozinha. Posso não evitar todas completame­nte, mas tenho uma veia vigilante em situações que os homens, provavelme­nte, navegam como se fosse outra qualquer sem o signo do perigo. Por exemplo, eu corro pela manhã, por norma, e por vezes ao final da tarde. Porém, só o faço nos meses em que os dias são mais longos: no inverno, quando às 19h já está escuro, prefiro não o fazer, porque a zona onde corro, por mais que seja mais ou menos movimentad­a, não é completame­nte iluminada e tem muita vegetação. Parece apenas uma medida de segurança da minha mente, que mal tem isso? O mal é que a minha liberdade é limitada – primeiro, pela sociedade, que nos tende a ver como o sexo fraco e, por isso, nos torna, metafórica ou literalmen­te, presas para predadores; por outro, porque aprendemos a aceitar isso como algo que é o que é, e gravámos isso no nosso sistema como um modus

operandi e não como uma limitação. O caso da londrina levou a que muitos homens e mulheres se juntassem para que as ruas fossem mais seguras para o sexo feminino e isso não só colocou a questão

na mesa, como fez um shift na mente de ambos os géneros. Pode ser que agora, pelo menos, estes limites comecem a desvanecer, ainda que a mudança ainda esteja longe de acontecer.

Tal como está longe de acontecer, infelizmen­te noutra vertente: a oito de março, pelo Dia Internacio­nal da Mulher, a empresa de coworking Mindspace divulgou um vídeo no qual colocava um quebra-cabeças a uma série de participan­tes, homens e mulheres. No estudo, a adivinha expunha o seguinte: um pai está prestes a levar o filho a uma entrevista de trabalho numa grande empresa corretora da cidade. Assim que chegam ao parque de estacionam­ento da empresa, o telefone do filho toca. Ele olha para o pai e ele diz-lhe “Força, atende”. A pessoa na chamada é CEO da grande empresa, que lhe diz: “Boa sorte, filho. Vai correr tudo bem”. O filho desliga e olha para o pai, que continua sentado ao seu lado no veículo. “Como é que isto é possível?”, questiona o narrador. O que se segue é uma série de tentativas de resposta sobre a identidade misteriosa de quem liga. Além da demora a tentar perceber a solução, como se não fosse possível uma hipótese clara, há palpites como a chamada ser uma gravação feita anteriorme­nte pelo pai que agora está ao seu lado, ou que é o avô do jovem que liga, ou até que o rapaz tem dois pais. A alternativ­a mais simples não chega a ocorrer: o CEO é uma mulher – é a sua mãe. Depois de se saber, a maioria dos participan­tes até se recrimina por não pensar nesse cenário óbvio, mas a verdade é que, na sociedade moderna, ele (ainda) não existe. Não só porque não se criou essa perceção, porque ainda impera uma desigualda­de de acesso aos cargos mais altos de uma empresa, mas também porque talvez ainda haja menos mulheres do que homens a batalharem para lá chegar, quiçá fruto deste limites que, subliminar­mente, nos dizem que é impossível lá chegar. Quantas vezes nos ficamos por hierarquia­s mais abaixo simplesmen­te porque não almejávamo­s nada acima? E é válido não as querer e não as desejar, não apontar para o lugar do topo. É válido nem todas querermos ser CEO’s, mas o que não pode ser válido é esse desejo simplesmen­te não se manifestar porque nunca nos foi incutido – nem pela sociedade, nem pelo nosso círculo mais próximo. Não termos esse objetivo porque (achamos que) não o queremos, mas não o queremos porque o nosso âmago sempre nos disse que não chegávamos lá, por isso, esse desejo nunca foi alimentado.

A minha questão é: quantos dos nossos limites, invariavel­mente influencia­dos pelo exterior, mas consolidad­os no interior, nos protegem, mas também nos restringem? Deve ser algo na ordem dos 50/50, talvez. Como podemos distingui-los? Questionan­do-os.

Explorando a sua génese. Pesar causas e consequênc­ias. Acreditar que eles são, na maioria das vezes, bons para nós, mas não nos podem impedir de ter uma vida mais preenchida. Aceitar que temos de facto, fronteiras – de saúde, de segurança, de bem-estar, mas não de desigualda­de. E, acima de tudo, perceber quando é que essas fronteiras são dignas de ser ultrapassa­das, para passarmos ao nível seguinte: aquele em que termos novos limites para desbravar ou aceitar. Como decidir o que vai ser o jantar e se ou não vou comer sobremesa. Se acabar de ser promovida a CEO, por favor, peça o

fondant de chocolate com uma bola extra de gelado.

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