Sociedade Unipessoal Limitada.
Porque é que impomos tantos limites a nós próprios?
Limitada. Limitada mesmo. Limitada acima de tudo sem nos apercebermos. Limitada por nós próprios. No que diz respeito a viver, não sabemos fazê-lo sem nos contermos. Sem nos restringirmos. Até onde vão as fronteiras do eu e porque é que temos receio de as cruzar?
São sei o que foi o meu almoço de ontem, mas sei exatamente como o decidi. Foi um compromisso entre tudo aquilo que me apetecia, em termos de indulgência, e tudo aquilo que sabia que devia comer, e me fazia bem à saúde/corpo/mente.
Um meio caminho entre a salada e a pizza. Uma concessão entre o saudável e o desejo. Com hidratos de carbono q.b., mas outros tantos legumes e proteínas para compensar. Já nem penso nisso quando tomo a decisão: a análise é automática desde que me lembro. Umas vezes a tender para o açúcar, outras tende para as vitaminas, mas quase sempre inclui restrições. Isto é mau?
Não necessariamente. No entanto, isso levou-me a pensar que outras limitações inadvertidas nos colocamos a nós mesmas.
Principalmente enquanto mulheres. Isto acontece com todas nós?
No campo da beleza, essas restrições são notórias para o género feminino: hoje em dia, desistimos dos hidratos porque se transformam em gordura; deixamos de comer leguminosas porque incham; evitamos o chocolate porque faz borbulhas; controlamos o álcool porque causa falhas de memória e provoca más decisões; abolimos o branco, porque é unforgiving, por isso só optamos pelo preto no guarda-roupa do dia a dia, mesmo em temperaturas de 40 graus; o abacate, esse, só de manhã, e se estiver a vestir uma camisola azul, caso contrário, dá comichão e outras tantas coisas que ouvimos e nos convencemos que são verdadeiras... Aprendemos uma série de regras – leia-se, limites – para podermos preservar aquilo que corresponde à ideia da sociedade do que devemos ser ou parecer e já nem nos apercebemos que nos privamos de um rol, imenso, de experiências. Atenção, não se entenda aqui a privação como algo nefasto – as privações e os limites têm um propósito e muitas vezes impedem-nos de fazer algo que resultaria em consequências muito mais nefastas do que a própria privação: quando uma pessoa evita fumar mais um cigarro ou decide conter-se a abrir mais um pacote de batatas fritas, pode estar a dizer não a um prazer momentâneo, e sim a benefícios a longo prazo. Porque a privação não é necessariamente má: não me arrependo dos dias em que não pedi sobremesa, porque seria um reflexo apenas de um vício e o meu bem-estar agradeceu. Mas arrependo-me dos dias em que não o fiz e era tudo o que precisava.
A questão que importa aqui relevar é que algumas (muitas? todas?) decisões que tomamos estão sempre condicionadas pelo exterior, embora seja no interior que lhe damos uma carga mais ou menos preponderante. Eu posso deixar influenciar-me mais ou menos pelas imagens que os media, principalmente as redes sociais, me oferecem. Eu posso sentir-me abaixo ou acima de algo ou alguém, por causa do que quer que seja que a minha aprendizagem me incutiu no cérebro. Ou evitar situações ou experiências por receio de um mau julgamento dos demais. Por exemplo, fazer uma tatuagem ou um piercing porque isso é de gente de má rés. Não usar minissaia com 40 ou 50 anos porque não é próprio da idade – se eu não usar minissaia, tenha a idade que tiver, que seja porque não gosto do estilo ou de me ver com ela, nada mais. Ou não comer um hambúrguer num date porque as meninas pedem é alface – confesso: os meus rendez-vous normalmente envolvem quantidades copiosas de sushi ou de pizza ou de hambúrgueres. Mas por norma não incluem sobremesa porque… equilíbrio. Eu não quero fazer tudo o que me apetece, porque sei que as minhas
restrições e limites são como o anjo e o demónio, os meus conselheiros, o meu grilo falante, a minha consciência. Só gostava de, de vez em quando, não passar tanto tempo a discutir calorias e a analisar informações nutricionais que aprendi a saber quase de cor.
Mas de todas as restrições que coloco a mim mesma, ou melhor, que colocamos a nós mesmas, estas, ainda que importante fonte de reflexão, serão as mais triviais. É verdade que somos subjugadas a esta ideia de um corpo perfeito que nos foi imposta pela sociedade, e que parece que estamos numa missão sem pit stop para o atingir e corresponder a expectativas, mas, em última instância, desde que de um modo temperado, são limites que também nos ajudam a manter algum
wellness e bem-estar. Se eu comesse tudo o que queria, provavelmente teria sérios problemas de peso e colesterol – porque há limites que estão lá para prevenir vícios, não para impedir uma vivência plena. Contudo, também há limites que nos impomos a nós mesmas enquanto mulheres que são tão intrínsecos às nossas crenças e que nem nos passa pela cabeça assumi-los como barreiras. Aceitamo-los em prol de um bem maior, sem questionar que são limitações ou fronteiras à nossa liberdade. Há ideias que temos e atitudes que adotamos de uma forma tão inata que nem as aceitamos como restrições. A três de março deste ano, Sarah Everard, uma
marketing executive de 33 anos, saiu da casa de um amigo deviam ser nove da noite para regressar a casa – um percurso não muito longo para se fazer a pé. A jovem nunca chegou ao destino. O seu corpo foi encontrado cerca de uma semana depois. Como o de Sarah, deve haver tantos outros casos menos mediáticos de situações similares a preencher um rol de relatórios da polícia, mas o de Everard espoletou uma consciência global como nunca outro o tinha feito: porque é que não é seguro para as mulheres andarem numa cidade movimentada a horas não muito tardias? E porque é que aprendemos a viver com isso sem questionar? É normal que evitemos bairros problemáticos, sejamos homens ou mulheres, mas, no caso do género feminino, o cuidado é redobrado. Desde que me lembro que tenho noção da minha condição quando estou em situações em que me vejo sozinha. Posso não evitar todas completamente, mas tenho uma veia vigilante em situações que os homens, provavelmente, navegam como se fosse outra qualquer sem o signo do perigo. Por exemplo, eu corro pela manhã, por norma, e por vezes ao final da tarde. Porém, só o faço nos meses em que os dias são mais longos: no inverno, quando às 19h já está escuro, prefiro não o fazer, porque a zona onde corro, por mais que seja mais ou menos movimentada, não é completamente iluminada e tem muita vegetação. Parece apenas uma medida de segurança da minha mente, que mal tem isso? O mal é que a minha liberdade é limitada – primeiro, pela sociedade, que nos tende a ver como o sexo fraco e, por isso, nos torna, metafórica ou literalmente, presas para predadores; por outro, porque aprendemos a aceitar isso como algo que é o que é, e gravámos isso no nosso sistema como um modus
operandi e não como uma limitação. O caso da londrina levou a que muitos homens e mulheres se juntassem para que as ruas fossem mais seguras para o sexo feminino e isso não só colocou a questão
na mesa, como fez um shift na mente de ambos os géneros. Pode ser que agora, pelo menos, estes limites comecem a desvanecer, ainda que a mudança ainda esteja longe de acontecer.
Tal como está longe de acontecer, infelizmente noutra vertente: a oito de março, pelo Dia Internacional da Mulher, a empresa de coworking Mindspace divulgou um vídeo no qual colocava um quebra-cabeças a uma série de participantes, homens e mulheres. No estudo, a adivinha expunha o seguinte: um pai está prestes a levar o filho a uma entrevista de trabalho numa grande empresa corretora da cidade. Assim que chegam ao parque de estacionamento da empresa, o telefone do filho toca. Ele olha para o pai e ele diz-lhe “Força, atende”. A pessoa na chamada é CEO da grande empresa, que lhe diz: “Boa sorte, filho. Vai correr tudo bem”. O filho desliga e olha para o pai, que continua sentado ao seu lado no veículo. “Como é que isto é possível?”, questiona o narrador. O que se segue é uma série de tentativas de resposta sobre a identidade misteriosa de quem liga. Além da demora a tentar perceber a solução, como se não fosse possível uma hipótese clara, há palpites como a chamada ser uma gravação feita anteriormente pelo pai que agora está ao seu lado, ou que é o avô do jovem que liga, ou até que o rapaz tem dois pais. A alternativa mais simples não chega a ocorrer: o CEO é uma mulher – é a sua mãe. Depois de se saber, a maioria dos participantes até se recrimina por não pensar nesse cenário óbvio, mas a verdade é que, na sociedade moderna, ele (ainda) não existe. Não só porque não se criou essa perceção, porque ainda impera uma desigualdade de acesso aos cargos mais altos de uma empresa, mas também porque talvez ainda haja menos mulheres do que homens a batalharem para lá chegar, quiçá fruto deste limites que, subliminarmente, nos dizem que é impossível lá chegar. Quantas vezes nos ficamos por hierarquias mais abaixo simplesmente porque não almejávamos nada acima? E é válido não as querer e não as desejar, não apontar para o lugar do topo. É válido nem todas querermos ser CEO’s, mas o que não pode ser válido é esse desejo simplesmente não se manifestar porque nunca nos foi incutido – nem pela sociedade, nem pelo nosso círculo mais próximo. Não termos esse objetivo porque (achamos que) não o queremos, mas não o queremos porque o nosso âmago sempre nos disse que não chegávamos lá, por isso, esse desejo nunca foi alimentado.
A minha questão é: quantos dos nossos limites, invariavelmente influenciados pelo exterior, mas consolidados no interior, nos protegem, mas também nos restringem? Deve ser algo na ordem dos 50/50, talvez. Como podemos distingui-los? Questionando-os.
Explorando a sua génese. Pesar causas e consequências. Acreditar que eles são, na maioria das vezes, bons para nós, mas não nos podem impedir de ter uma vida mais preenchida. Aceitar que temos de facto, fronteiras – de saúde, de segurança, de bem-estar, mas não de desigualdade. E, acima de tudo, perceber quando é que essas fronteiras são dignas de ser ultrapassadas, para passarmos ao nível seguinte: aquele em que termos novos limites para desbravar ou aceitar. Como decidir o que vai ser o jantar e se ou não vou comer sobremesa. Se acabar de ser promovida a CEO, por favor, peça o
fondant de chocolate com uma bola extra de gelado.