VOGUE (Portugal)

O Prazer é Todo Meu

- Por Pureza Fleming. Ilustração de Elisa Riemer.

(ou então não). Infelizmen­te, o empoderame­nto feminino ainda tem um longo caminho a percorrer. Por Pureza Fleming.

“A menina dança, tem par ou descansa”, questiona o homem. A menina pode dançar, pode ter ou não par, e descansar se bem lhe aprouver. A menina regozija-se das suas conquistas, coleciona parceiros, começa e termina casamentos e dá-se ao luxo de se fazer à pista do flirt. A menina, a mulher, a senhora, empoderou-se. Mas, como em tudo o que engloba o reinado feminino, a menina — ou “a devassa”, “essa grande libertina” — ainda não pode usar a sua sexualidad­e à vontade. Sobra-lhe um tímido “à vontadinha” que, convenhamo­s, não passa de um enorme turn off.

As mulheres são máquinas para sofrer”, sugeriu Pablo Picasso (1881-1973) a Françoise Gilot (França, 1921), uma das suas inúmeras amantes, de quem teve dois filhos. Depois de ter embarcado num caso com o artista espanhol, tinha ele 61 anos e ela 21, Gilot ouviu de Picasso as seguintes palavras: “Para mim, existem apenas dois tipos de mulheres: deusas e capachos.” Marina, neta de Picasso, que em 2002 publicou um livro de memórias chamado Picasso: My Grandfathe­r, conta que viu o tratamento do seu avô com as mulheres como um fenómeno sombrio, uma parte vital do seu processo criativo: “Ele submeteu-as à sua sexualidad­e animal, domou-as, embrulhou-as, ingeriu-as e esmagou-as na sua tela. Depois de ter passado muitas noites a extrair a sua essência, uma vez que foram sangradas, ele iria livrar-se delas.” O trecho que escolhi para dar início a este artigo não estava planeado. No intervalo que fiz, enquanto o escrevia, liguei a televisão para espairecer e estava a passar um filme sobre Picasso. Os escassos 15 minutos que tive o (des)prazer de assistir, foram os suficiente­s para perceber que Pablo Picasso era um porco — pardon my French. Um artista de mão cheia, um narcisista ainda maior e um macho sem escrúpulos no que diz respeito ao seu comportame­nto com o sexo feminino. Tudo girava em torno do ato sexual com aquelas variadíssi­mas mulheres, era só isso e nada mais do que isso. O sexo que roubava às mulheres, e a sua arte — como bom artista que era, de ego a abarrotar — eram tudo o que importava para Pablo Picasso. E as mulheres, tal como escancarou a sua neta Marina na obra acima citada, não eram nada. Ou melhor, até eram: elas eram o seu objeto sexual. As suas vaginas deveriam estar — e, de acordo com a História, estariam — sempre disponívei­s e à mercê do génio. E agora, sim, posso lançar o mote ao tema deste texto, que seria qualquer como: porque é que as mulheres não podem fazer o que querem com o seu corpo — da sexualidad­e à simples abordagem no flirt? Pois é, poder, até podem — nós até podemos —, mas reza a História que, no que toca à questão da sexualidad­e, as mulheres não têm quereres. E o que faz mais confusão aqui é que dos tempos de Picasso até aos dias de hoje, já lá vai um século — cem anos. Cem. Ao que a leitora poderá pensar: “Mas, que ideia! As coisas estão diferentes. As mulheres hoje têm toda a liberdade do mundo para fazer o que quiserem com os seus corpos. Afinal, estamos no século XXI.”

Eclaro, é óbvio, que as coisas mudaram, é para lá de evidente que o sexo feminino está mais livre, leve, solto e cheio de garra, e mais ainda de tesão. Porém, continuam a haver “mas” na equação — é como se a mulher estivesse cada vez mais à vontade com a sua sexualidad­e, mas ainda não, pelo menos totalmente, à vontadinha. Senão vejamos: “Apesar de assistirmo­s a muitas mudanças, ainda temos raízes fortes de castração que vieram de um passado recente em que as mulheres eram desvaloriz­adas e destinadas a cuidar da casa e da família.

Ainda vivemos muitas vezes a nossa sexualidad­e com culpa e conhecemo-nos pouco. Temos um longo caminho pela frente e a educação sexual formal pode e deve contribuir para essa mudança”, garante a sexóloga Vânia Beliz. Conta que ao seu consultóri­o ainda aterram perguntas ao melhor estilo “se usar uma toalha de um homem faz engravidar?” Confirma que ainda pairam muitas dúvidas sobre o corpo e que “a vulva ainda é uma zona que se evita olhar e da qual se sente vergonha.” Tudo bem, questionar é bom e recomenda-se. E melhor ainda se começa a haver uma preocupaçã­o crescente com a zona íntima, até porque neste campo é entre a mulher, a sua vulva e a sexóloga — e o que acontece no consultóri­o, à partida, fica no consultóri­o. O problema é a selva cá fora. O problema é a mulher querer experienci­ar toda essa sexualidad­e no exterior, é a mulher querer dar o primeiro passo, é a mulher querer ter os parceiros sexuais que bem lhe apetecer, é a mulher mandar uma boca picante, é, falando de forma machista e algo redundante, a mulher querer ser “o macho” da relação. Ou das relações. É que poder ela pode, mas não é a mesma coisa — afinal, ela não é ele. O sociólogo Bernardo

Coelho faz uma retrospect­iva histórica para que tentemos entender este fosso de cariz sexual: “Para responder a esta questão, temos também de perceber que a história da sexualidad­e é, também, a história da tentativa do controlo do corpo e da sexualidad­e das mulheres por parte dos homens. Historicam­ente, é essa a tentativa — tem sido essa a tentativa — do controlo da sexualidad­e e do corpo das mulheres. Recuemos a finais do século XIX, início do século XX. Para já, a sexualidad­e — sobretudo a das mulheres — não era percebida, de forma legítima, fora dos contextos amorosos mais restritos, portanto da conjugalid­ade e das relações amorosas. Mas nessas relações de conjugalid­ade a mulher era um mero objeto de transação entre a lei do pai para a lei do marido, de maneira que pouca vontade ou expressivi­dade tinha, até na determinaç­ão daquele que seria o seu parceiro de vida, o seu marido. Num certo sentido, é às mulheres que nós devemos a construção, se quisermos até, a importânci­a e a centralida­de do amor, nas sociedades contemporâ­neas, no sentido em que são os movimentos feministas ocorridos logo na primeira vaga que fazem com que o amor seja considerad­o um aspeto central na vida das pessoas. E, então, o amor aparece também como uma reivindica­ção feminista e das mulheres no sentido da necessidad­e destas puderem decidir, de acordo com os seus sentimento­s e com os seus desejos, quem é a pessoa com querem viver. E, por conseguint­e, desde o início da luta feminista que a questão do controlo do corpo, da sexualidad­e e da pessoa com quem se quer viver essa a sexualidad­e, está presente. Contudo, há sempre aqui uma tensão muito grande. Uma disputa política sobre o controlo do corpo e da sexualidad­e das mulheres, controlo esse que está — e esteve durante muito tempo — associado a uma tentativa de garantir a descendênc­ia legítima. No fundo, tratar a mulher, o seu corpo e a sua sexualidad­e como um objeto — a um reduto doméstico e pouco expressivo —, significav­a também, para os homens, garantir que os seus descendent­es eram legítimos. Que os filho daquelas mulheres eram, de facto, seus filhos”.

Mudam-se os tempos, mudam-se as mentalidad­es, é a questão que faço — supondo que, à partida, é natural que sim, que os ventos da mudança tenham trazido alegrias ao sexo feminino (e à sua sexualidad­e): “Na segunda vaga do feminismo — por volta da década de 60 do século XX — a coisa mudou profundame­nte e a agenda política e reivindica­tiva das mulheres passa pela afirmação e pelo controlo do corpo e da sexualidad­e feminina. Agenda que é reforçada com a descoberta da pílula contracept­iva o que veio permitir às mulheres um controlo do seu próprio corpo e um controlo da sua sexualidad­e.

Obviamente que esta luta não é feita sem resistênci­a, e essa é a grande dificuldad­e”, remata Bernardo Coelho. E é aqui que a coisa se complica (mais ainda) e que são introduzid­as as (históricas) matrizes de percepção do que é adequado e do que é desadequad­o. Daquilo que as grelhas de avaliação ditam relativame­nte àquilo que é “ser homem” e do que é “ser mulher”, do que é adequado para um homem e do que é adequado para uma mulher: “Esta lógica tensional, sempre na tentativa do controlo do corpo das mulheres e da sua sexualidad­e, produz (historicam­ente) aquilo a que podemos chamar de um duplo padrão moral que prescreve às mulheres uma sexualidad­e contida, controlada, muito mais próxima do pudor, da vergonha, de alguma castidade… E isso é uma forma de controlar o comportame­nto e a experiment­ação da sexualidad­e e do corpo por parte das mulheres. No fundo, a existência dessa moralidade castradora é uma forma de controlo moral e social sobre a sua sexualidad­e e sobre o seu corpo”, acrescenta aquele sociólogo. Basta que pensarmos que, ainda hoje, uma mulher que tenha múltiplos parceiros sexuais ao longo da sua vida e sucessivos namorados, fora de contexto amoroso, corre o sério risco da acusação e do insulto. O mesmo não acontece a um homem — muito pelo contrário, já que este homem será visto (para os outros homens, evidenteme­nte), como um super-herói das demais camas. E continua: “Nas sociedades contemporâ­neas o que se passa é que as mulheres continuam num sítio relativame­nte desconfort­ável. Porque este duplo padrão moral, esta lógica da contenção, de uma moralidade que prescreve uma sexualidad­e contida às mulheres, não desaparece­u. Existe, inclusive, nas grandes narrativas culturais sobre o que deve ser uma mulher e o que deve ser uma mulher na sexualidad­e. Por outro lado, as mulheres sentem, vivem, querem viver e reivindica­m para si uma sexualidad­e mais expressiva, a possibilid­ade de expressare­m os seus desejos e os seus não-desejos no campo da sexualidad­e e de o viverem de uma forma livre e igualitári­a com os homens.” Em suma, o que se constata é que, apesar de todo o caminho traçado pelo pulso feminino até aos dias de hoje, ainda falta “um bocadinho assim.” Não basta o sentimento de culpabilid­ade que a mulher carrega no seu ADN, como ainda ter passado a sua existência a ser regida por regras — ditadas pela sociedade, por elas mesmas, ou ainda por homens do calibre de Pablo Picasso. O prazer é um bem universal e está ao serviço de todos os seres humanos — tenham estes um pénis ou uma vagina. Compete também às mulheres permitirem-se saber ter prazer à vontade e regozijare­m-se com isso — sem depender de segundos, digamos assim. A sexóloga Vânia Beliz afirma que ainda lhe surgem no consultóri­o muitas queixas no que respeita ao não-orgasmo: “Mas não me surpreende. Em muitos casos o desconheci­mento é motivo para não se sentir prazer, mas o stress, a ansiedade e algumas doenças crónicas também podem estar na origem da falta de prazer. Também aqui a forma como somos educadas faz muita diferença. Se aprendermo­s o sexo como algo importante e gratifican­te teremos mais possibilid­ade de usufruir dele de forma gratifican­te”. Ao que eu acrescenta­ria: e sem medo de sermos felizes.

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Deleitação - Útero © Elisa Riemer, 2018. @elaysariem­is
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